31 dezembro 2006

Prefixos e corolários



De fato, era uma bela manhã. Ficou mais bonita quando um jovem, de aparência humilde e bastante despachado, chegou junto de mim e de Glória e comentou, entusiasmado: o mar está um prefixo. Concordamos plenamente.
Ali estava uma palavra usada pura e unicamente pela sua beleza plástica. Boa de falar, portando uma certa solenidade, prefixo expressava claramente o deslumbramento do jovem frente à maravilha que nos enchia os olhos.
Lembro de outra palavra que me encantava na infância: Corolário. Não sei como vim a conhecê-la. Provavelmente foi em algum livro dos adultos em que vez por outra enfiava o nariz. Por um bom tempo, corolário me remetia a alguma coisa colorida, como um arco-íris, e ao mesmo tempo imponente, como a coroa de um rei.
Imagine a falta de graça quando descobri que corolário significava apenas uma verdade que decorre de outra, como sua conseqüência necessária ou continuação natural. Foi no que deu estudar epistemologia. Só quase agora resgatei um pouco da antiga magia da palavra. O dicionário me informou que corolário servia primeiramente para nomear a coroa de folhas de ouro que era oferecida, na Roma antiga, aos grandes atores em reconhecimento do seu talento.
Gosto quando as palavras se despregam do seu sentido cotidiano e vêm brincar conosco, propondo novos significados. Drumond dizia que lutar com palavras é a luta mais vã. Por isso brincava com elas.
O rapaz da praia e o menino que eu fui deixaram-se levar pela beleza natural das palavras. E do reino das palavras eu trago estas duas para enfeitar o ano novo. Muitos prefixos e corolários para todos nós.

21 dezembro 2006

Sinal fechado



Ainda bem que tinha o fusca. O aperto estava tão grande que pensou em vender o velho amigo. Quinze anos de rua e estrada. Felizmente apareceu aquele bico de Papai Noel no fim do ano. Não era muito, mas dava pra fechar o mês e adiar a venda do carro.
Ainda bem que tinha o fusca. Era noite de Natal, a loja só fechou às dez da noite. Nem perdeu tempo trocando de roupa. Ninguém ia achar estranho um Papai Noel dentro de um fusca nessa noite.
Ainda bem que o fusca pegou na primeira virada de chave. Grande fusca. Não era agora que ia deixar ele na mão. Estava doido para chegar em casa. Além da mulher, do filho e da filha, tinha o pessoal da rua esperando com o rum e umas cervejas no ponto.
Tirar essa roupa quente e fedorenta. Tomar um banho demorado. Sair do banheiro assobiando, enrolado na toalha. Botar roupa limpa, comer panetone com guaraná junto com as crianças. Sair com a mulher para a calçada. Encontrar os vizinhos, beber, comer e conversar até chegar o sono. Entrar com a mulher em casa, deitar com a mulher na cama.
O fusca vencia galhardamente o asfalto da avenida. Sem muita pressa, mas resoluto. O ronco do motor mantendo o ritmo. O quebra vento mandando uma brisa pra dentro do carro. O rádio, original de fábrica, tocava uma música de louvor ao bom velhinho. Engoliu seco, emocionado. Tinha sido o bom velhinho por doze horas nesse dia. Agora o Papai Noel voltava para casa. Mais uns vinte minutos e pronto. Grande fusca.
O freio respondeu com presteza ao sinal vermelho. Tinha se distraído e quase passava direto. Mas o breque perfeito deixou a faixa livre para que o menino se aproximasse com uma garrafa pet numa mão e o rodo limpa-vidro na outra. Quando viu o motorista, o menino gritou: olha aí, eu não disse que ele vinha. Papai Noel está aqui, dentro do fusca. Ele veio entregar o meu presente.
Fusca de merda. Morrer exatamente nesta hora. Se empurrar, pega. Mas como pedir ajuda a esse bando de moleques de mãos estendidas, cada um pedindo uma coisa diferente e ele sem conseguir nem fechar a janela do carro.
Seu desespero era grande. Mas conseguiu ficar maior quando um cara, segurando alguma coisa por baixo da camisa, abriu caminho entre os meninos, enfiou a cabeça dentro do fusca e cobrou: e aí, Papai Noel, cadê o presente da molecada?

20 dezembro 2006

A nudez de Tarcísio Pereira



Levei Letícia para passar um fim-de-semana comigo em Cabedelo. Na manhã do sábado, quando voltei da praia, deitei com ela na rede com um copo de uísque ao lado. Umas poucas horas depois, saí da rede com Letícia dentro de mim.
Mas não pensem vocês que Letícia deita na rede de qualquer um. Se merece crédito o que nos conta Tarcísio Pereira em sua novela Uma noite no céu, é com certo constrangimento que ela presta favores a um cidadão americano, premida pelas necessidades da família e um vago desejo de ascensão social. De resto, Letícia é atormentada pelos recados escritos em cédulas de todos os valores pelo dono dos olhos verdes com que viveu uma invejável peripécia pelos céus do Brasil.
Não sou de estragar conversa contando fins de histórias. Por isso, apenas chamo a atenção de vocês para a precisão narrativa com que Tarcísio nos esconde mais que mostra o desempenho audacioso desta Emanuelle do interior pernambucano.
A cena do avião é emblemática do jogo de mostra-esconde com que Tarcísio brinca com nossa emoção, nossa angústia, durante toda a história. E se Letícia em nenhum momento está nua, a nudez de Tarcísio está toda lá.
É de Mario Vargas Llosa a metáfora do romance como um strip-tease invertido. Para ele, tanto quanto a moça que se desfaz das roupas para revelar seus íntimos segredos, o escritor também expõe sua nudez através de seus romances. Mas enquanto a moça mostra seus encantos, o escritor expõe a parte mais feia de si mesmo: seus demônios, suas nostalgias, suas culpas. Outra diferença, nos diz o escritor peruano, é que a moça está vestida no começo e nua no final. Inversamente, o romancista está despido no começo e vestido no fim. Veste-se com o texto tecido com as lembranças do que viveu, sonhou, ouviu e leu. E com este pano encobre sua nudez inicial.
Com Uma noite no céu, Tarcísio tenta esconder a nudez do seu desamparo com um tecido primoroso de palavras. Mas Letícia não deixa. Jogando de mostra-esconde, ela sugere sua nudez pelos meandros do texto para nos mostrar que Tarcísio está nu.

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Há poucos dias, fui levar um grande amigo no aeroporto. Ele foi para São Paulo fazer uma operação delicada. Extrair um dos rins. Isto mesmo. Estava com câncer. Estou apreensivo enquanto escrevo. Sei dos prodígios da medicina moderna, estou informado sobre as margens favoráveis de recuperação em casos idênticos ao seu. Mas estou inquieto. Uma sombra de angústia me acompanha nos mínimos afazeres do dia. É esta mínima incerteza sobre o retorno do meu amigo que me inquieta. Toda ida carrega em si o complemento da volta. Sabem disso os amantes e os pássaros migrantes. Só deixamos alguém em paz numa estação quando ele já veio e está voltando, ou se está indo com a data da volta garantida. Ver partir alguém sem a certeza de revê-lo deixa em nós a sensação de um nó desfeito. O desamparo de um fio desatado. Por isso nutrimos a esperança do perdão dos que nos deixam. Por isso inventamos a vida eterna que um dia a todos nos reunirá. Se me for permitido querer mais alguma coisa deste ano tão pródigo de afetos, quero que volte o meu amigo. Mesmo mais leve do seu lado esquerdo, quero que volte. Quero que ele esteja perto de mim com sua mulher e seus filhos, com seus cachorros e seus livros, com seu sotaque francês de Catolé do Rocha. Quero também que voltem para junto de mim todos os meus amigos distantes. Aqueles que foram e não podem vir. Os que estão ali perto e não sei por que cargas d’água não aparecem. Quero todos por perto. Quero ver suas caras, ouvir suas vozes e me assegurar de que não estou só nesta viagem.

(Ilust.: Malas y sombrero. Óleo sobre tela de Juan Valcarcel).

15 dezembro 2006

Arroba


O velho sinal gráfico formado por um a minúsculo envolto num círculo aberto vivia abandonado lá no alto do teclado desde as velhas máquinas de dactilografia. Até o dia em que foi ressuscitado por Ray Tomlinson, um engenheiro norte-americano criador do e-mail.
Mas antes de chegar aos nossos endereços eletrônicos, a palavra arroba percorreu um longo caminho. Ela se origina da palavra árabe ar-rubaHa , que queria dizer, literalmente, a quarta parte de uma unidade de peso, equivalendo mais ou menos a 14,7 kg. Quem assiste ao Canal do Boi ainda escuta o peso em arroba das vedetes lá expostas à venda.
Tal como o conhecemos hoje, o sinal gráfico foi criado pelos copistas medievais, como abreviatura da preposição at, (de). Com este mesmo sentido foi usado depois como símbolo comercial pelos ingleses, já distante do seu significado original de medida de peso. É justamente isto o que o sinal de arroba quer dizer em informática. Assim, pois, rona.monte@terra.com.br quer dizer que um certo sujeito é “de” uma determinada família, ou seja, a dos usuários de um determinado fornecedor de serviços eletrônicos. Criou-se, desta forma, um novo tipo de parentalha. Os parentes por parte de servidor.
Mas chega de enrolação erudita, pois tudo isto está disponível nos verbetes do Houaiss. O que eu quero mesmo é homenagear o gênio, por enquanto anônimo, que usou pela primeira vez a arroba para se referir aos dois gêneros numa palavra só. Agora, quando escrevo querid@os amig@os, escapo da chateação de estabelecer uma hierarquia entre os gêneros e ainda economizo energia ao eliminar a repetição. Salva-me mais ainda da ira feminina que atraio quando sou obrigado a escrever “Prezado (a) Senhor (a)”.
Ainda não sei se já inventaram uma forma de ler as novas palavras escritas com o velho símbolo. Aí sim, a economia seria perfeita.

13 dezembro 2006

Gavetas


Se precisar de alguma coisa para daqui a pouco, não a guarde numa gaveta. Você nunca saberá onde a botou. Quando acompanhar um processo do seu interesse, nunca o deixe cair na gaveta de nenhum burocrata. Ele nunca sairá de lá. Gavetas são ante-salas do esquecimento.
As coisas guardadas nas gavetas são dementes, esqueceram seus nomes e perderam todo e qualquer vestígio de suas antigas utilidades. Servem apenas para ser olhadas, com aquele ar de peças de museu. Elas só fazem sentido ali, em estado de sonolência. E não gostam de ser despertadas do seu sono.
Antes de se recolherem às gavetas, as coisas perambulam por outros espaços. Prateleiras de bibelôs, estantes de livros, mesinhas de cabeceira. Passam, portanto, por um estágio probatório, em que correm o risco de cair, vergonhosamente, na lata do lixo. É certo que com essa onda de coleta seletiva, algumas delas podem ser reaproveitada num novo ciclo de utilidade. Mas já não serão nossas. Outras gavetas, mais cedo ou mais tarde, as receberão.
As coisas da gaveta confabulam para confundir nossa memória. Fazem isso trocando de lugar, escondendo-se uma por baixo da outra, criando a cada vez um nexo diferente entre si. E a cada vez que as olhamos, lembramos de uma história diferente. Uns óculos antigos juntos de uma rolha de vinho ao lado de um passaporte vencido podem nos querer insinuar uma falsa lembrança de algo que devia ter acontecido. As coisas na gaveta são testemunhos de vidas que poderíamos ter vivido.
Mais do que meus escritos, meus livros e discos, as coisas das minhas gavetas contam a vida que tive e as que perdi. Quando, daqui a milênios, vindo de um planeta distante, um arqueólogo vasculhar minhas gavetas, abismado com a inutilidade do seus guardados, concluirá: este aqui era doido ou poeta.

09 dezembro 2006

A lua, a rua, a porta




“Rua torta./ Lua morta./ Tua porta.” Leu e agradeceu primeiro a Deus, e depois ao poeta Cassiano Ricardo. Não entendeu porque o poema se chamava “Serenata sintética”. Não tinha a menor importância. Não gostava mesmo de poesia. Tudo o que precisava estava ali, naquelas seis palavras, fáceis de decorar.
Saiu correndo no meio da noite, lendo e relendo o poema que levava escrito num guardanapo. Seria fácil. Ela iria gostar. Ela gostava de poesia. Vivia dizendo que só amaria um homem que declamasse um poema pra ela. De preferência numa noite de lua, na porta da sua casa. E se o poema fosse feito para ela, mais do que amor, prometia paixão eterna ao seu autor.
Tentar, ele bem que tentou. Perdeu noites, gastou folhas e folhas de papel almaço. Mas o poema não saiu. Implorou a um amigo poeta que se dava bem com as mulheres, mas ele se negou a fazer o poema em seu nome. Só lhe restava decorar um poema e recitar na porta dela. Perderia a paixão, mas o amor lhe bastaria.
Seu coração dobrou as batidas. Lá estava a rua dela. Rua de conjunto habitacional, riscada a régua como todas as outras. Mas era a rua dela, que se fazia torta ao seus passos desordenados. A lua também não ajudava. Simplesmente não estava onde devia estar, fingindo-se de morta.
Seu coração disparou junto com a campainha. Abriu-se uma fresta e uma voz sonolenta cortou a serenata ao meio: Puta merda, a essa hora... Falou, sintética. E bateu a porta na cara dele.

07 dezembro 2006

Angélica e a manteiga


Angélica Aparecida de Souza tem dezenove anos e um filho de dois. Angélica está desempregada e seu filho tem fome. Angélica entra num mercadinho e esconde um pote de 200 gramas de manteiga debaixo do boné. O dono do mercadinho, Seu Dadiel de Araújo, viu a tentativa de furto e chamou a polícia. Azar de Angélica. Presa em flagrante, passa 128 dias no Cadeião de Pinheiros, em São Paulo. Quatro vezes o seu advogado pede a liberdade provisória de Angélica. Só consegue depois de apelar ao Superior Tribunal de Justiça.
Depois de um tempo em liberdade, Angélica é julgada e condenada a quatro anos de prisão em regime semi-aberto. Vai poder trabalhar durante o dia, só voltando à noite para a prisão. Vejam só o privilégio. Angélica, antes desempregada, agora pode sair para trabalhar. Não adianta perguntar onde. Isto não é problema da Justiça.
A Justiça tem bem mais o que fazer. Atualmente, está ocupadíssima em justificar o aumento dos procuradores da República e dos promotores estaduais acima do teto de R$ 22.111,00, o que provocará um efeito cascata arrasador sobre as contas públicas. No que tange a Angélica, a Justiça lava as mãos.
De mãos limpas também está o poder Executivo, que apenas cumpre o seu poder de polícia. Antes dele, o Legislativo já havia usado a bacia, fazendo leis democraticamente aplicáveis a todos os cidadãos.
De mãos limpas estamos todos nós, os tais cidadãos, cumpridores da lei, obedientes à ordem, salvo nos casos em que a ocasião nos convida a cometer certos delitos.
De mãos sujas, só a Senhora Angélica Aparecida de Souza. Sujou as mãos com um pote de 200 gramas de manteiga. Vai pagar na cadeia pela besteira de roubar tão pouco.

Ray Charles em Cavaleiro



Para quem não sabe, Cavaleiro é um subúrbio do grande Recife, logo depois de Tejipió, cortado pela linha de trem que vai pra Jaboatão. Era lugar famoso pela sua feira, onde se materializava uma mescla das culturas urbana, matuta e sertaneja. Foi lá que vivi minha adolescência, arriscando minha vida pelos morros e vielas atrás dos maus pagadores da Movelaria Triunfo.
A pindaíba familiar não permitia o luxo excessivo da televisão. Por isso na minha casa se ouvia muito rádio. E era um tempo de boas músicas, principalmente na sofisticada Rádio Tamandaré, com “música, somente música e apenas um anúncio por intervalo”. Foi pela Tamandaré que pela primeira vez senti a emoção primordial que me causa até hoje a voz de Ray Charles. I can´t stop loving you foi a trilha sonora da minha pobreza suburbana. Passou meses em primeiro lugar na “Passarela de sucessos” e eu podia ouvi-la duas vezes todas as tardes na movelaria. Só saía para as cobranças quando o programa acabava.
Um dia, estourou a bomba: Ray Charles viria ao Brasil. Faria um show no Rio de Janeiro, gravado pela TV Tupy. Depois o vídeo-tape seria retransmitido por todas as televisões da rede dos Diários Associados. No Recife era a TV Rádio Clube, o canal seis. Claro que eu não podia deixar de ver. O problema era: onde?
Perto da minha casa moravam uns contra-parentes de minha mãe, sertanejos não-aculturados, mas que tinham uma televisão. Sem alternativa, tive que ser enérgico. Passei lá pela manhã e, do alto dos meus quinze anos, informei que de noite ia passar um programa com um músico muito importante e eu estaria lá para assistir.
As noites de sábado eram regidas pelo Noite de Black-tie, um programa de auditório da TV Jornal do Commercio, rival do canal 6. E eu não sei como arranjei tanta moral para conter a fúria da parentalha que não entendia patavina do que aquele cego negro estava cantando. Indiferente às ameaças de ser expulso da sala, concentrei-me na voz e nos movimentos desarticulados daquele monstro sagrado, ali, em minha frente, com suas Rayletes e uma banda fascinante. Não perderia aquilo por nada.
Claro que passei a ser persona non grata naquela casa. Mas quem liga pra isso, depois de ter enchido a alma com a voz e a imagem de um deus?

05 dezembro 2006

O beijo



Não foi intencional. Ele jamais faria isso. Não era homem de ultrapassar os limites, avançar o sinal. Foi o mais puro acaso que fez o canto de sua boca tocar no canto dos lábios dela. O tamanho daquela boca, a embocadura dos lábios, por certo tinham contribuído para o acidente. Foram apresentados na saída do cinema. O amigo a exibiu como um troféu, décadas mais nova do que ele. Avançou a mão para um cumprimento, mas ela adiantou o rosto, a face já ligeiramente virada em sua direção, os olhos obliquamente fixados nos dele. Ele quis limitar o gesto a um leve encontro das faces, mas ela não somente encostou o rosto no seu. Torceu os lábios numa mesura que a deixou estranhamente bonita. Foi aí que aconteceu. Os cantos dos seus lábios se tocaram.
O encontro foi rápido. Não teve beijo de despedida. Ele evitou até o aperto de mão. Quando se viu só, não estava mais só. No canto direito da boca alguma coisa incomodava, como uma mosca. Mesmo que a impressão geral do encontro das faces já tivesse se esvaído, teimava um ponto minimamente molhado, quase uma lembrança de umidade. Quis passar a mão, mas a mão desobedeceu. Tentou passar a língua, se arrependeu. Não sabe bem porque, mas quis manter aquele ponto ali no canto da boca.
Foi dormir sem tomar banho. Nem sequer lavou o rosto. Deitou-se de costas, fora de sua posição habitual. Se deitasse virado para o lado direito, corria o risco de perder para a sempre a marca que a cada momento ia se atenuando, prestes a desaparecer.
O sono demorou. Não queria que chegasse. Se dormisse, poderia apagar para sempre os últimos vestígios daquele quase beijo. Velou até onde pôde o ponto no canto da boca por onde aos poucos foi se infiltrando a mulher da qual nem sabia o nome. Primeiro os lábios, depois o rosto, daí todo o corpo dela deslizou para dentro do seu. Não se lembra de ter dormido. Lembra apenas do corpo pesado, dolorido, inflamado que tentou arrancar da cama de manhã. Não pôde se levantar. O corpo da mulher latejava dentro do seu, como uma infecção.

03 dezembro 2006

Às armas



Quando o telefone toca, Gerônimo dá um pulo. Já não era sem tempo. Há muito a notícia era esperada. Mesmo assim, quando chega a hora, é tomado por uma intensa emoção. Um calafrio. Um sufoco na boca do estômago.
Olha com ternura para os filhos que ressonam. Beija longamente a mulher, o tempo do beijo anunciando o tempo da ausência. Dá um tapa na cabeça do cachorro e sai batendo o portãozinho de madeira.
Na frente de cada casa da vila, um homem se despede da mulher e segue os passos de Gerônimo sem dizer nada. Quando o cortejo sonâmbulo vira a esquina, as mulheres fecham as portas e apagam as luzes. Sabem que por muito tempo ficarão sem seus homens.
O batalhão segue pelas ruas, guiado pelo instinto guerreiro de Gerônimo. Levam embrulhos apertados aos sovacos. Era carga preciosa, adivinha quem vê. E não estão para brincadeira.
O suor já desce pelas caras zangadas. Estamos quase lá, diz Gerônimo. Uma esquina, um beco, uma porta fechada com luz por dentro. O homem bate e outro homem entreabre a bandeira superior da porta de dois rolos. Podem entrar.
Entram mudos. Fazem um semicírculo frente a frente com outro formado pelos que já estavam lá. Fixam os olhos na mesa que os separam, pintada de verde, com linhas brancas demarcando os lados opostos em que se defrontarão os adversários.
Abrem os pacotes que trazem nos sovacos. Aparecem caixas muito bem cuidadas que guardam as armas com que se darão os combates. Estão prontos para começar o campeonato anual de futebol de botão.

30 novembro 2006

Passar



Passará toda marca que o tempo
me deixar sulcar sobre a terra.
Toda marca que o tempo sulcar
no meu corpo também passará.

Passará toda marca que o tempo fizer
do teu corpo em meu corpo.
Passará o meu tempo e eu sei
que o teu tempo também passará.

Na lembrança do leito, arena
de liça de cavalaria,
passará um tropel no meu peito
e em teu peito também passará.

Quando, enfim, o tempo decidir
que será fim de tarde em meu corpo,
certamente teu corpo também
como o meu não amanhecerá.

Quando a noite baixar em meu corpo
e fizer escuro em teu corpo,
certamente sobre novos corpos
amanhecerá.

28 novembro 2006

Vítima da seca


Cometi meu primeiro poema comovido pelas fotos da seca estampadas nas páginas marrons da revista O Cruzeiro. Tinha meus oito anos de idade e virei uma espécie de gênio da família. Claro que não vou mostrar o poema para vocês. Guardo a sete chaves o pequeno caderno datilografado por meu pai com os meus poemas de infância. Meus filhos têm ordem expressa de incinerá-lo junto com o autor.
Mas o que mais me encabula até hoje não é a forma do poema, perdoável pela idade do poeta. O que não me perdôo é ter me deixado emocionar por uma reportagem que apresentava como novidade aos meus olhos de menino uma farsa que só fui compreender com o passar do tempo. A seca, a famosa seca, com suas caveiras de boi, seus flagelados, seus retirantes, suas terras calcinadas, seus urubus, é um espetáculo periódico que até hoje a imprensa joga em nossa cara. Espetáculo, sim, com seus atores principais, seus coadjuvantes, seus diretores, seus patrocinadores.
Há pouco tempo uma deputada estadual bradava pelo rádio do carro que era preciso levar ajuda urgente aos nossos irmãos nordestinos que sofrem o flagelo da seca. Queria poder dizer à nobre deputada que se tivessem aplicado honestamente toda a grana destinada a resolver os problemas da seca, os tais irmãos nordestinos estariam irrigando suas terras com água Perrier. Basta somar o que foi anunciado desde a célebre última jóia da coroa de Pedro II até o que foi torrado na discussão bizantina da transposição das águas do São Francisco.
Duvido muito que João Cabral ou Graciliano ainda gastassem tinta e tutano falando de seca no nordeste. Eles sabiam, como eu sei, que a seca é um fenômeno natural, de incidência previsível, e que seus efeitos podem ser combatidos com medidas efetivas e racionais. Fora isto, é um espetáculo competentemente encenado para fornecer bons lucros aos seus eternos gerentes e motivo para lágrimas aos poetas franzinos e inocentes.

26 novembro 2006

O Deus das formigas



Quando era menino, ganhei de presente um avião de baquelite dourado. A novidade era que a parte de cima da fuselagem, móvel e transparente, deixava ver as fileiras de poltronas lá dentro. Passava horas sozinho no oitão da casa, entretido com meu tesouro alado. A vantagem de brincar sozinho é que se pode brincar do que quiser. Então, eu brincava de ser Deus. E como o Deus bondoso da religião dos meus pais, eu levava as formigas para passear no meu avião. Como um Deus, eu adivinhava as vontades das formigas de roça e as levava de um formigueiro a outro para visitar seus parentes, resolver problemas de trabalho ou apenas para um passeio de férias. Abria a tampa do avião, lotava o salão com aquelas pequenas criaturas avermelhadas e lá iam elas, certamente alegres, pois não paravam quietas em suas poltronas.
Meu avião dourado perdeu-se no tempo e as formigas perderam sua divindade, pois perdi minha vocação para ser Deus. Mas o que para mim foi uma brincadeira de menino, para muitos ainda é um delírio levado a sério. Quantos deuses de formigas vemos hoje à nossa volta. Quanta presunção nesses homens que pensam que controlam nossas vidas, adivinham nossos desejos, satisfazem nossas necessidades. Quanta empáfia em seus julgamentos, quanta desenvoltura em dispor do bem público, quanta soberba em suas exibições auto-promocionais.
Interferem em nossas vidas, esses deuses, como o menino fazia com as formigas. Mas como as formigas do brinquedo do menino, tocamos nossas vidas à revelia da vontade das pretensas divindades. Pois sabemos que um dia o tempo irá roubar-lhes o brinquedo das mãos. E de mãos vazias eles reconhecerão a sua pobre condição de formigas.

22 novembro 2006

Dois poemas


Herança

Cuido com carinho
das palavras que herdei.
Das antigas e das novas.

As antigas,
gordas de sentido,
deixo-as descansar em minhas mãos
antes de lançá-las
de volta ao carrossel dos signos.
Relíquias
impregnadas de hálitos ancestrais.

As novas,
verdes de memória,
guardo no berço das mãos
até que estejam prontas
para a ciranda dos verbos.
Pontos luminosos
no discurso opaco do cotidiano.

Novas antigas palavras.
herança e testamento
de minha breve passagem pelo mundo.

05.12.04


Ofício paterno

Ouvir
o grito do teu corpo
no escuro.

Salvar
teu corpo dessa morte
prematura.

Colher
teu corpo desmembrado
do naufrágio.

Lançar
teu corpo derrelito
em praia firme.

Reter
o todo do teu corpo
nas retinas.

Rever-me no teu corpo.
Deixar-te com teu corpo
longe de mim.

12.11.04

19 novembro 2006

A rainha do arame



Vivia na corda bamba. Desde que entrou na troupe do Gran Circo Gitano, viver passou a ser uma atividade de risco. Seu coração andava por um fio.
Carlos Gonzalez, esse era o nome do seu desequilíbrio. Dono do circo, foi ele mesmo quem convidou Alice para fazer parte da companhia. Disse que ela era linda, que ia fazer o maior sucesso. Disse isso e a levou para dentro do seu trailer. Beberam cerveja, comeram galeto e foram pra cama. A cama apertada que Carlos Gonzalez nunca dividiu com ela. Desde a primeira noite, mandou que ela fosse dormir na barraca de Zuleide, a contorcionista.
Da boca de Carlos Gonzalez nunca saiu uma palavra de amor. Cigano só ama os cavalos, Alice ouvia do anão Meia Légua, seu melhor amigo no circo. Ficavam horas, os dois, sentados em cima do baú do anão. Alice contando e recontando sua vida, Meia Légua ouvindo tudo calado, só falando, no fim, alguma coisa para consolar Alice. Mas quando os lamentos falavam da falta de amor do dono do circo, ele sempre repetia: cigano só ama os cavalos.
Domingo sempre tem matinal. Todo mundo acorda cedo para preparar o espetáculo. Alice não acordou, pelo simples motivo de não ter dormido. Chorou tanto que Zuleide botou ela da barraca pra fora. Foi chorar no escuro, olhando para o trailer de Gonzalez a meia luz, balançando de vez em quando, Alice sabia muito bem por quê. Não queria saber quem estava lá. Foi acabar de chorar lá pras bandas da barraca de Meia Légua. Já sabia o que ia ouvir quando o anão desse por sua presença: cigano só ama os cavalos.
Não vá, Alice. Você não está em condições de andar nesse arame. Você não dormiu, está nervosa, tremendo. Capaz de você cair. Zuleide disse isso quando voltou do seu número e cruzou com Alice que se cobria com sua capa de cetim azul, pronta para entrar no picadeiro.
Eu sou a rainha do arame, Alice falou para si mesma, de olhos fixos no seu reino. De olhos fixos em Alice estava Meia Légua, no meio do picadeiro. Era ele que apresentava os espetáculos das matinais, para Carlos Gonzalez descansar. E agora, senhoras e senhores, Alice, a rainha do arame, vai realizar a perigosa façanha de atravessar o fio movimentando três malabares de ponta a ponta do picadeiro.
A mísera orquestra atacou um mambo e Alice partiu para a sua perigosa façanha. Fazia isso desde menina, não era uma noite sem dormir que lhe faria desistir. Do alto do seu arame, já no meio do caminho, os olhos de Alice ultrapassam a lona lateral do palco, indo bater no trailer de Gonzalez. Aí sua vista escurece, os malabares caem e o pé esquerdo derrapa do fio de aço. Alice não cai. É a rainha do arame. Mas o lado de dentro de sua perna mostra um risco vermelho sob a meia rasgada.
Ô, Alice... Lamenta Zuleide, já de roupa trocada, na última tábua do poleiro. Pra quê você foi olhar. Toda a troupe sabia que Gonzalez tinha passado a noite com a nova contratada. Diana, a deusa amazona.

16 novembro 2006

Hino a Epa



Grande mãe dos desastrados,
Deusa das pequenas quedas,
amparo dos escorregos.
Salve Epa.

Deusa dos palhaços,
dos velhos saltimbancos,
dos chefes provisórios,
dos reis da falta de jeito,
dos distraídos.
Salve Epa.

Bendita seja a Deusa
que revela o estranho sentimento
de quem ri da queda alheia
e ainda rindo
ajuda o outro a levantar.
Salve Epa.

Volta teu olhar
aos que tropeçam,
aos que não vêem os degraus
e perdem a pose,
aos que torcem o pé,
aos claudicantes.
Salve Epa.

Tende piedade de nós,
homens caídos
neste planeta
em
sua
eterna
queda
pelo
espaço.

14 novembro 2006

Apressados



Tem um ditado que diz: apressado come cru. Discordo. Apressado simplesmente não come. E, se come, não sente o gosto da comida. Falo isso por conta de dois comentários apressados sobre coisas que me dizem respeito.
O primeiro, foi feito no jornal virtual No mínimo – todo prosa, a respeito de um trecho do meu romance, Memória do fogo. Estava lá: “Pelo trecho, não acrescenta mais do que assistir a um episódio de ‘O Vidente’, do SBT. Trash de quinta categoria.”
O segundo, foi publicado por um leitor de uma coluna social a respeito da apresentação do Clube do Conto na Primeira Bienal do Livro da Paraíba: “Estive na Bienal ontem e fiquei feliz com o que vi nos estandes. Causou-me espanto, no entanto, discussão ocorrida no auditório com o pessoal do Clube do Conto da Paraíba. Pensei encontrar uma discussão literária, mas aqueles escritores me pareceram anacrônicos e medíocres. Saí com quinze minutos...”
Maria Valéria Rezende, um dos membros do clube, autora de O vôo da guará vermelha e de Modos de apanhar pássaros a mão, ambos publicados pela Objetiva, espantou-se com o prodígio adjetivante do comentarista: “Bastaram quinze minutos para o moço descobrir que somos anacrônicos e medíocres!”
A única coisa que consigo sentir por estes ejaculadores precoces da cultura é pena. Se não tivessem tanta pressa em exibir sua bile, se pudessem se abster do rancor a tudo que não satisfaz de imediato suas expectativas mesquinhas, ganhariam um quinhão maior de prazer em suas experiências com o mundo.
Apresados costumam morrer de inanição. A vida, meus caros, é algo a ser degustado com calma e cuidado.

12 novembro 2006

Moto contínuo



Lá vem o som que não me diz o que me quer e entra em mim cravando garras num lugar qualquer de dentro de onde fica espinhando querendo dizer, querendo dizer e não dizendo e me fazendo repetir o que eu não sei.
Lá vem a sombra e sua luz em movimento, vem de longe, chega perto e logo foge, me embaraça, sem dizer a que me vinha. Fica presa nos meus olhos essa luz e sua sombra, sugerindo uma forma que não sei denunciar.
Lá vem o frio e seu calor que me envolve e me acarinha, que me toca, me aperta, me alisa, me conforta, que me larga, me abandona, desampara e se aloja num lugar que não sei como alcançar.
Lá vem cheiro e catinga com notícias de outro mundo que me entra pelas ventas e se entranha nas entranhas desta carne que deseja ela mesma se juntar à outra carne de onde partem os odores sem jamais a encontrar.
Lá vem esta carne tenra se alojar em minha boca, jorrar essa água morna que desliza nos meus ocos e se infiltra nos meus ossos, construindo meus volumes, definindo meus limites para logo mais deixar-me no mais profundo abandono, no mais atroz desamparo, na mais cruenta agonia.
Lá vem, lá vem a palavra que me recria o som perdido nos meus ouvidos, que me compõe o fantasma, que me devolve o calor, que me relembra os cheiros, que me devolve o seio, que me lembra quem eu sou.
Lá vem, lá vem a palavra, reavivando os enigmas, desabrigando fantasmas, me deixando sem dormir.

05 novembro 2006

Ponto final



Desde a primeira vez que conversamos eu lhe disse: sou ciumento. Muito ciumento. Mulher que quiser casar comigo vai ter que pensar muitas vezes. Vou transformar a vida dela num inferno. Você não casou comigo enganada. Sabia que ao entrar nesta casa só sairia dela para o cemitério. Em vez de fugir de mim, você ficou fascinada pela idéia de viver numa prisão até a morte.
Durante todo o tempo em que vivemos juntos, nunca ouvi você reclamar dos meus zelos. Nunca mais você viu nenhum parente. Nem seu pai, nem sua mãe. Nunca deixei nenhum homem entrar em nossa casa. Mas você não pode reclamar que lhe tenha faltado alguma coisa. Nunca reclamei de sair para comprar suas roupas, mesmo as de baixo. Nem me recusei em consultar os médicos nas suas raras doenças. Nunca lhe faltou nenhum remédio.
Contratei uma empregada velha para cuidar de você, mas logo mandei embora, pois você começou a se afeiçoar a ela. E era isto que eu queria evitar. Que você se apegasse a qualquer pessoa. E não só isso. Quebrei ou joguei fora todos os objetos que você usasse com mais freqüência. Não suporto, nunca suportei que você tivesse a mais mínima atenção a qualquer pessoa ou coisa que não fosse eu. Mais do que isso, minha vontade mesmo era que você não tivesse nenhum desejo, nenhum apego por ninguém e por nada. Nem mesmo por mim. Só assim estaria seguro de que nada no mundo mereceria sua atenção. Só assim eu ficaria em paz sabendo que nada de você transitaria para outro lugar além de você.
Por algum tempo pensei que teria conseguido enfim mantê-la como prisioneira. Na forma mais pura e completa de aprisionamento. Mas agora, que chego em casa e vejo você olhando para o meu retrato, vejo que falhei no meu mais caro projeto. Adeus.

02 novembro 2006

Microcontos



A sombra

Nada que ele pudesse fazer contra o fato consumado. Sua sombra era de uma mulher. Estava lá, na parede do quarto, a silhueta: saia rodada até os pés, o cabelo preso num coque. Virava-se de lado e via, pelo canto do olho, os óculos redondos na ponta do nariz. Era de uma mulher antiga, sua sombra. Tinha seios fartos e braços roliços. Não queria reconhecer, mas cada vez mais tinha vontade de igualar-se à sua sombra.




Nas nuvens

Um elefante, um cavalo, uma girafa. Um monte, uma casa, uma barca. Uma cara de menino, uma cara de palhaço, uma ponte entre arbustos. Deitada na praia uma moça olha as nuvens. Dois olhos, dois seios, um umbigo. Um púbis, um joelho, um dedão do pé. Ao lado da moça, passeiam olhos no céu do seu corpo.




Plebiscito

- Se der sim, eu a mato. Se der não, eu me mato.
Deu não.

31 outubro 2006

As coisas inúteis



Numa mesa de bar, comíamos ostras. Cruas, frescas, com limão e azeite. Sei que muita gente torce a cara me vendo sugar uma ostra diretamente da sua casca, arrematando com um gole generoso de cerveja gelada. Desculpe-me chocá-la, minha senhora, mas comíamos ostras. Terminada a farra, peguei a maior e mais bonita das cascas de ostras e embrulhei num guardanapo para levar pra casa. Pra quê?, perguntou um amigo. Para lembrar que estivemos aqui, neste domingo de sol. Lembrar que conversamos fraternalmente, gozamos a rara companhia do outro e que comemos ostras.
Para cada lugar que olhe em minha casa vou encontrar uma coisa assim, com a utilidade única de me lembrar um momento bom, vivido com pessoas de quem gosto. Tem um fruto de sapucaia, tem uma pelota de pinheiro, tem uma lasca de pedra do Ingá, tem embalagens vazias de charutos, um olho de boi e uma escama enorme de um peixe chamado piramutanga. E tem dois vidros de compota cheios de rolhas de vinhos que tomei em momentos de celebração.
E vejam que não estou falando do conteúdo de minhas gavetas, dos meus armários, nem das centenas de pedaços de papel enfurnados nos lugares mais improváveis. Abro um livro e lá está a entrada de uma peça de teatro maravilhosa vista há tantos anos. Vou procurar um papel e dou de cara com uma passagem de trem entre cidades vistas apenas uma vez. Levanto os olhos em busca de uma idéia e lá vai a imaginação puxada por uma moeda cunhada no ano do meu nascimento.
Não desdenho dos objetos e das máquinas que me servem no dia-a-dia. Facilitam minha vida, economizam meu tempo, me dão conforto e prazer. Pelo menos enquanto não me negam seus serviços, transformando-se então em objetos de tortura. Mas pelas coisas inúteis que me cercam tenho um carinho calmo e grato. As coisas inúteis me alimentam e me dão sentido.

28 outubro 2006

Iolanda?


Noite de autógrafo é um sofrimento. O autor, qualquer autor, sabe que fatalmente esquecerá o nome de alguém. E será sempre alguém bem conhecido, às vezes até um parente próximo. Com André não podia ser diferente. Era o seu primeiro romance. Sucesso de crítica e, coisa rara, sucesso de público. Todos os seus amigos estavam ali. Boa parte de seus parentes, muitos vindos de longe, fazia a fila de autógrafos dar voltas pelas gôndolas da livraria. E como não podia deixar de acontecer, as namoradas de André também estavam lá.
Era o que André mais temia. Esquecer o nome de uma de suas namoradas. Podia não lembrar o nome do seu melhor amigo, titubear com o nome do pai, mas nunca se perdoaria esquecer o nome de uma namorada. Para evitar qualquer vexame, tinha sido enfático com a moça do caixa. Nenhum livro podia sair dali sem uma etiqueta gomada com o nome do comprador escrito em letra de forma. Que ninguém se metesse a engraçado. Devolvesse o dinheiro, mas não deixasse ninguém sair dali sem o nome na etiqueta.
A fila andava sem atropelos. Cuidado para não repetir dedicatória de conhecidos comuns, beijinhos, apertos de mão, que bom você por aqui. De repente, André fica inquieto. Dali a dez corpos, um rosto conhecido sorria para ele. Mais do que conhecido, o rosto lhe era íntimo. Aquele sorriso lhe trazia um misto de saudade e esperança. Saudade de algo que não se lembrava muito bem, esperança de que se lembrasse do nome da dona do rosto e do corpo que já avançavam para a sétima posição da fila. André começou a suar. Sua inquietação foi se transformando em angústia à medida que a mulher sem nome se aproximava da mesa. Seu olhar era de confiança e intimidade. Entrava fundo pelos olhos de André que já não sabia o que escrever nos livros que passavam em suas mãos. Um nome, Senhor, dizei-me um único nome e serei salvo.
Mas Deus tem mais o que fazer do que ter pena de escritores. Não são eles seus maiores concorrentes? Criam mundos, inventam seres, determinam o bem e o mal de suas criaturas. Nunca socorreu nenhum deles em suas crises de criação. Muito pelo contrário, divertia-se com as agruras desses demiurgos de meia-tigela que perdiam o prumo de suas invenções. Vire-se meu caro André. Estão me chamando lá pras bandas de Andrômeda. Dito isto, Deus colocou a mulher, seu olhar e seu sorriso frente a frente com André e retirou-se da livraria.
Vendo o caminho livre do seu principal adversário, um certo ser caviloso soprou no ouvido esquerdo de André: vai dar parte de fraco, meu rapaz? Confie no seu taco. Mostre que nem precisa olhar o papelzinho. Assente a caneta na folha de rosto e escreva o primeiro nome que lhe vier à cabeça. Confie em mim. Vai ser o nome dela. Desesperado, André obedeceu. Encarou o olhar, respondeu ao sorriso e atacou: Para Iolanda...
Não pôde ir mais adiante. Sem abandonar o sorriso nem desviar o olhar, a mulher disse: meu nome é Sandra, André. Iolanda é o mesmo nome que você falou depois que trocamos o primeiro beijo. Você jurou pela alma da sua mãe que não sabia quem era Iolanda. E jurou com tanta força que acabei acreditando. Adeus, André. Lembranças a Iolanda. Sandra falou isto com calma e se afastou da mesa, deixando André com o livro abanando na mão esquerda.
Por um momento, André esqueceu-se da fila. Queria ir atrás de Sandra, beijar novamente sua boca e mais uma vez jurar, pela alma de sua mãe, que não conhecia nenhuma Iolanda.

25 outubro 2006

O peixe e meu pai




O mergulhador voltou à tona com um peixe na ponta do arpão. O peixe ainda estava vivo e se mexia no fundo do barco. Era verde, brilhante, um Bico de Papagaio, maior que a palma de minha mão. E a minha mão espalmada pousou sobre o peixe para que ele morresse quieto. Estava ferido de morte. Eu o ajudava a morrer. Quem conhece esse peixe, sabe. O Bico de Papagaio é verde, mas vai ficando azul enquanto morre. Então ele foi ficando azul, ali debaixo de minha mão. Parecia que eu fazia uma mágica. Uma mágica macabra, minha mão tendo o poder de mudar a cor do peixe que morria. E ele ficou sob a palma da minha mão, até se tornar, lentamente, todo azul. O contrário de um milagre.
O quarto do hospital era um oceano. Nele navegava a morte com meu pai no bojo. Eu estava em pé, de frente para o leito onde meu pai morria. Morria lentamente e eu não o tocava. Uma palma de mão maior que a minha comandava aquele tempo lento, sem agonia. De ofegante, a respiração ficou calma. Os olhos antes brilhantes se refugiavam agora numa névoa que marcava o limite de dois mundos. Mais uma vez, eu era a testemunha solitária da transformação. Mais uma vez a mágica macabra se operava em minha frente. Outro avesso de milagre acontecia. Mais um peixe mudava de cor.
De Memória curta, 1996.

22 outubro 2006

De lua


Ela era assim, de lua. Estava de um jeito e, de repente, ficava de outro. Já namoravam há quase um ano e Mauro ainda não se acostumara às mudanças de fase de Clarice. Nunca a encontrava de cara amarrada ou alheia. Seus estados sempre se situavam num ponto de uma gama bastante variada entre o vivaz e o melancólico. Às vezes, achava bom não saber de que modo ia encontrá-la. Gostava da surpresa, pois mesmo quando estava triste, Clarice era bonita e boa de estar junto. Mas não gostava quando ela mudava de repente.
Por exemplo, num bar, ela sorrindo, alisando a cara dele. De repente, se levanta para ir ao banheiro e volta de lá toda pionga, como se o mundo fosse acabar. E não adianta perguntar por que meu bem tá triste que ela não responde. Vai afundando o queixo, arriando os ombros, fechando as cortinas dos cabelos e fica assim não se sabe quanto tempo. É preciso paciência, meu Deus. Muita paciência.
Já ia alta aquela noite, parecendo que ia acabar sem surpresas. Clarice falava, escutava, ria um pouco, bebericava a caipirinha, falava, escutava, ria. Feliz, Mauro fechou os olhos e elevou o rosto aos céus, prevendo as maravilhas que a noite prometia.
O silêncio de Clarice fez Mauro voltar da estratosfera. Ele abriu os olhos e viu o rosto de Clarice como nunca tinha visto. Era uma expressão neutra que fazia toda a face parecer plana, sem os acidentes naturais dos olhos, maçãs, nariz e boca. Uma neutralidade que começou a sofrer uma tênue mudança no lado esquerdo que foi se entristecendo, tomando um ar sombrio que foi gradativamente ocupando toda a face esquerda e lentamente se alastrando pela face direita, até ocupar o rosto todo.

Por um instante Mauro contemplou o rosto amado totalmente tomado por uma sombra que não era bem uma ausência de luz, era um tom que se fazia impor como um fantasma. Mauro gelou e só voltou a sentir o corpo quando a ponta esquerda do rosto de Clarice deu mostras de retomar o ar claro que foi novamente ocupando, devagar, a extensão da face, e lentamente se alastrando pela face oposta. Mais alguns segundos e o rosto de Clarice estava ali, completo, sorrindo em sua frente.
Que foi, nunca me viu?, perguntou ela ante o espanto do namorado. Não, nunca vi não, respondeu Mauro. Eu sabia que você era de lua. O que nunca tinha visto era você em eclipse total.

18 outubro 2006

Pontos de encontro


Para Rosa Amanda

Nós trazemos no bolso da alma um caderno com alguns endereços e os nomes de certas pessoas. Vagabundamos pelo mundo, no mais das vezes sem ver sentido neste cansaço que é estar vivo, até que passamos por algum dos endereços do caderno. Algumas vezes, o reconhecimento é imediato. Somos tomados por uma alegria, um êxtase de reencontro, uma certeza de estar voltando. Outras vezes o sentimento se dá num lugar do nosso cotidiano. Passamos pela mesma esquina todo dia, vemos as mesmas coisas, cruzamos com as mesmas pessoas. Mas tem um dia em que se dá a mágica e aquele lugar fica diferente, causando uma experiência que dificilmente se repetirá.
Mas não é só alegria e êxtase que nos esperam nesses lugares. Muitas vezes o que sentimos é uma sensação de opressão, de tristeza, de medo. Temos vontade de sair dali, mas alguma coisa nos prende no chão. precisamos viver aquilo. Estamos no mundo para isso. Da mesma forma que os lugares, existem pessoas que nos causam medo, raiva, tristeza, apreensão. Mas elas estavam escritas no caderno. Também precisamos encontrá-las, pois são portadoras de uma parte do sentido de nossas vidas.
Tem outros dias em que não somos nós que passamos. Antes, o mundo passa por nós. Viramos lugar, algumas vezes deserto, pois há dias em que nem nós mesmos estamos ali, em nós. Esses são os dias preferidos pelas pessoas do nosso caderno nos fazer visitas. Elas nos pegam distraídos, em vestes caseiras, entram sem pedir licença e não nos importamos. São velhos amigos que vemos pela primeira vez.
A experiência mais rica, entretanto, é quando, de repente, encontramos o endereço de uma certa pessoa do caderno. Aí a mágica transforma-se em milagre. Uma calçada estreita vira um parque relvado, um calor de meio-dia vira brisa da manhã. O boteco mais sórdido se transforma em catedral.
Preste atenção em alguns lugares que as pessoas escolhem para beber. Numa esquina sem graça, de frente pro sol, é comum encontrar dois amigos equilibrados em simples tamboretes, bebendo uma cerveja quase quente, mas encerrados num círculo amoroso que os faz flutuar acima da banalidade do cenário. E veja que não estou falando de amantes apaixonados, essas vítimas de morte do acaso. Falo de pessoas comuns, que estão ali pela primeira vez, talvez pela única vez. Mas aquele era um dos endereços do caderno onde estava anotado que elas iriam se encontrar. E estão felizes com o reencontro.
Nunca conseguiremos prever em que lugar e com quais pessoas se darão nossos encontros. Eles são poucos em cada vida e é bom que estejamos disponíveis para aceitá-los a qualquer momento. Pois esses lugares e essas pessoas têm por função nos preparar para um encontro mais dramático. Aquele que se dá num lugar escondido dentro de nós mesmos, onde só uma pessoa estará presente. E nesse lugar, cada um estará só. E apenas de si mesmo dependerá a alegria ou a tristeza desse encontro.

15 outubro 2006

O silêncio

Recebi este texto de presente na última reunião do Clube do conto. Divido com vocês.

Para Ronaldo Monte e seu poema "O Silêncio".

Sempre vi no silêncio uma poesia maior, da qual se extrai todo o "não dito", todo o esquecido. Admiro-o mais do que qualquer outro som, mais do que qualquer outro ritmo. O silêncio é pulsação. Às vezes, torna-se tão forte quanto o som de mil tambores ruflando uníssonos.
Certa vez li um poema que dizia:

O silêncio
é o solo da palavra.
Quanto mais denso,
mais forte o verbo
que dele brota.

Eu concordo com o poeta. No amor, o silêncio antecede o beijo; na vida, antecede o choro; para a alma, o silêncio é repouso, instante de calma e reflexão.
Busquei pelo silêncio escapar de certas bifurcações que a vida impõe. Mas ele não foi feito para isso. Foi feito, sim, para que haja tempo de respirar fundo e mergulhar de peito aberto.
"O silêncio é o solo", o verbo sou eu.

Alexandre Santos

(Foto de José Jordán)

Farfalhar



Por um momento, Demerval deixou-se iludir pensando que ouvia um farfalhar de saias. Apurou o ouvido e ficou sabendo que uma carroça deixava arrastar uns galhos de árvore pelo calçamento. Riu da própria tolice. Não mais existe farfalhar de saias.
A última vez que ouviu um farfalhar, estava meio de porre. Era uma noite de sábado. Ele saiu do trabalho para o bar, como todo sábado. Chegou em casa no fim da tarde e caiu na cama. Por isso ainda estava sonolento quando ouviu todo mundo sair apressado, sua mãe resmungando que nem no dia da formatura da irmã ele deixava a bebedeira.
A cabeça ainda não concordava com a necessidade do corpo se levantar. Decidiu ficar mais um pouco na cama. Por isso não sabe até hoje se o que ouviu foi um barulho real ou uma espécie branda de delirium tremens. Sabe apenas que foi um farfalhar. Vinha vindo pelo corredor, meio apressado.
Meu Deus, eles foram embora e me esqueceram no banheiro. Falei que ia só trocar a cor do batom. Era Belmira, a amiga da irmã que tinha vindo do interior para a festa de formatura. Belmira se assustou quando viu Demerval sentado na cama, a cabeça entre as mãos. Mais assustado ficou Demerval vendo Belmira naquele vestido de festa, que não sabe descrever até hoje, mas se lembra muito bem que farfalhava.
Demerval acompanha de olhos fechados o farfalhar da carroça desaparecer de seus ouvidos. E ainda de olhos fechados ouviu se aproximar o barulho áspero das pernas de uma calça jeans raspando uma na outra. Não mais existe farfalhar de saias, conformou-se Demerval. E foi ver o que Belmira tinha feito para o jantar.

11 outubro 2006

Fogo às vestes


Ateou fogo às vestes. Primeiro, encharcou o vestido com o que restou da garrafa de rum, esperou que se empapassem as roupas de baixo e tocou fogo. Pronto. Nunca mais aquela mulher vestiria aquelas roupas. Aquelas roupas que ele mesmo tinha dado a ela no dia de ontem. Dia de aniversário de casamento deles dois. Ele pediu, ela foi lá dentro e vestiu. Aí ele quis que ela tirasse o vestido. Queria vê-la somente com as peças íntimas. Fique só com as peças íntimas, pedia. E ela não, que agora não, que ele esperasse, que primeiro tomasse o rum com coca cola que ela tinha preparado com tanto gosto. Ele bebeu quase de um gole e pediu de novo: só as peças íntimas, pelo amor de Deus, só as peças íntimas.
Coisa estranha, essa de peças íntimas. Onde será que ele ouviu isso. Pra mim é só uma calcinha e um sutiã. Peça íntima parece coisa feia. Coisa que padre acha pecado ou a mãe proíbe de usar. Sei lá o que se passa na cabeça desse homem. Vai meu bem. Toma outra dose de rum pra dar mais um clima. Tiro já. Tiro o vestido já-já.
Uma dose, outra e mais outra. As peças íntimas, balbuciou. Só as pe...ças ín...ti...mas. O homem afundou o queixo no peito e começou a roncar.
Alta manhã. O sol na cara do homem. Cadê a mulher? Cadê o vestido? E as peças íntimas, cadê as peças íntimas? Corre para o quarto, ninguém. Estendido em cima da cama, o vestido. Ao lado do vestido, uma calcinha e um sutiã. No bojo esquerdo do sutiã, um bilhete. Fique com seu vestido, com sua calcinha e seu sutiã que eu não sou mulher de aparecer de peças íntimas para homem nenhum. Adeus.
Ele encharcou o vestido com o que restou da garrafa de rum, esperou que se empapassem as roupas de baixo e tocou fogo. E ficou ali, alheio ao mundo, olhando a fumaça no ar se perder.

09 outubro 2006

Tripas douradas


A empresa britânica de alimentos F. Duers & Sons acaba de dar sua contribuição ao esforço de erradicação da fome no mundo. Em comemoração aos seus 125 anos, lançou uma marmelada que custa em torno de R$ 4,6 mil o pote. O preço um pouco salgado se justifica. O sublime acepipe leva folhas de ouro de 24 quilates em sua sofisticada composição. Isto, além de laranjas de Sevilha, champanhe francesa e um uísque que custa perto de R$ 133 mil a garrafa.
Estou vendendo a notícia pelo preço que comprei no portal Invertia, que por sua vez cita o The Daily Telegraph. Os menos afortunados, nos informa o jornal, poderão se contentar com uma modesta torrada coberta com a marmelada pela bagatela de 318 Reais.
A partir desta notícia, posso fazer duas reflexões. A primeira, mais óbvia, é sobre a perversão do modelo de distribuição de renda mundial, que mata de fome milhões de pessoas enquanto uma ínfima minoria ornamenta de ouro suas tripas. Mas isso não é nenhuma novidade. Os mais ricos sempre comeram ouro enquanto os mais pobres comem sabemos muito bem o quê. Isto em qualquer parte do mundo. Não faz muito tempo, li em algum lugar que o restaurante Fazano, de São Paulo, incluía ouro em pó em uma de suas receitas.
A segunda reflexão é um pouco mais trabalhosa. É sobre o espaço que os jornais, as revistas, as rádios, as TVs e os portais eletrônicos dedicam a este tipo de notícia. Em tempos idos, essas curiosidades, os faits divers, só apareciam quando as redações ficavam à mingua de notícias importantes. Agora, essas desimportâncias ocupam o espaço principal dos veículos, numa rede de superficialidade que tenta nos impedir de compreender o mundo em sua complexidade. E enquanto nos divertem, os eternos comensais continuam alegremente a dourar suas tripas.

05 outubro 2006

A oficina no porão


Sérgio Castro Pinto

Desde há muito existe uma espécie de discriminação com o Regionalismo. E eu não tenho dúvidas: é mais uma estratégia de parte da crítica preconceituosa do sudeste para desqualificar um movimento que foi quem melhor respondeu aos anseios de se responder ao Brasil a partir do Brasil. Quem, depois de 1930, superou, em termos de qualidade, a ficção brasileira de 1930? Guimarães Rosa? Mas, o próprio Rosa se abeberou, e muito, do regionalismo.
No entanto, para muitos, o Regionalismo acabou. Acabou coisa nenhuma! Nenhum assunto se esgota, a não ser que não se tenha engenho e arte para se inovar, através do estilo, avesso a clichês, jargões e chavões.. E chego ao que eu quero: Ronaldo Monte. É regionalista? É. Mas de um regionalismo da alma que, ao fim e ao cabo, termina em se transformar universal.
Existe uma história de Jung segundo a qual o homem tem medo do porão. E realmente tem, pois, afinal de contas, o porão é subterrâneo, é a ausência do sol, é um mundo impregnado de sombras, de objetos imprestáveis, heteróclitos, desencontrados, faltos de tudo e de todos.
Daí, ainda segundo Jung, o homem preferir o sótão em função do seu medo, pois o sótão é o consciente, o mundo claro, solar, onde tudo é bem visível, previsível e definido.
E tanto é assim que o próprio Jung arremata: "A consciência se comporta então como um homem que, ouvindo um barulho suspeito no porão, se precipita para o sótão para constatar que aí não há ladrões e que, por conseqüência, o barulho era pura imaginação. Na realidade esse homem prudente não ousou aventurar-se ao porão".
Em outras palavras, no sótão - reduto do consciente - o homem não só racionaliza os seus medos como cria mecanismos de defesa para melhor combater os seus fantasmas, fobias, neuroses e angústias, ao passo que no porão - reduto do inconsciente - a "racionalização é menos rápida e menos clara".
Ronaldo Monte montou a sua oficina de escrever no porão. E, como bom e ousado psicanalista que é, escreveu a partir daí o excelente "Memória do fogo" (Editora Objetiva Ltda, Rio de Janeiro, 2006), cujos personagens, "Precocemente fracassados, perdidos em algum ponto do Nordeste Brasileiro - conforme bem o diz Rosa Amanda Strausz -, perderam-se também do fio que conduz à vida. Em volta do fogo, partilham apenas da cachaça, água que queima".
Os estranhíssimos viventes de Ronaldo são sombras que só ardem e "brilham" ao pé das fogueiras acesas. E embora de carne e osso, parecem fantasmas saídos de um livro-porão: este "Memória do fogo", um dos grandes lançamentos do ano de 2006.

Jornal O Norte, 5 de outubro de 2006.

04 outubro 2006

A outra de mim


Tenho muito medo da mulher. De seus abismos, do seu silêncio. E nem era pra ter. Fui criado por minha mãe e duas tias, com duas irmãs de lambuja. Devia, pois, desde o berço, estar acostumado ao modo de ser feminino. Com suas sombras, com seus segredos. Devia estar, mas não estou. E quanto mais vivo, mais me assombro com seus mistérios, com seus bruxedos.
Tenho mulher e duas filhas, várias sobrinhas, muitas amigas. Minha casa é impregnada pela alma feminina. Passei décadas da minha vida ensinando a classes formadas por grande maioria feminina. Oitenta por cento de minha clientela também é formada por mulheres. Já era tempo, vocês hão de pensar, de não mais me espantar com o feminino. Mas isso, no meu fraco entender, é impossível.
Não depende da idade nem de qualquer atributo físico. A mulher, toda mulher, traz consigo um quinhão de estranheza que resiste a qualquer tentativa de tradução. Inclusive por elas mesmas. É esta face obscura, que nos olha do outro lado da fronteira de um país estrangeiro, que nos lança o desafio permanente da decifração. Com a decorrente ameaça de devoramento, é claro.
Desde menino guardo a imagem dessas alegres esfinges, em cochichos, rabos de olhos, meneios de cabeça, finalizados pela risada cabulosa que me tinha por alvo. Pobres de nós, os meninos, indefesos, encabulados, batendo em retirada para longe daquele exercício incipiente do maldoso mistério a que ficamos a mercê pelo resto da vida.
Com uma porção tão grande de estranheza, dá pra entender porque a mulher é alvo de tanta violência. Poucas pessoas suportam conviver com a diferença. Principalmente com essa diferença radical que o feminino representa.
Eu, que tenho por fardo a obviedade masculina, sou grato àquela que me põe cotidianamente em frente ao seu mistério. Essa outra de mim, que me ensina a conviver com meus abismos, com meus medos.

02 outubro 2006

Serenando



Deixa cair a noite,
cair sereno
o olhar sem fome
de seda e âmbar.
Aprende a ver sem esforço
o que a névoa quer te mostrar.

Deixa ficar no escuro
o que não queira
virar lembrança.
Deixa a memória
fazer escolhas.
Deixa o tempo brincar de esconder.

Deixa minar a prata,
arcar os ombros,
riscar as rugas,
dançar os nervos.
Testemunhas das carícias do tempo no teu corpo.

Deixa de presente a madrugada
aos novos feixes de luz e voz
que aprenderam contigo a caminhar.

Fica nesta noite que começa
em ondulações de luz e sombra
curiosas de te conhecer.

28 setembro 2006

A cru


Há quatro anos atrás, por essa época, na frente da minha casa tinha uma faixa bonita dizendo que todos ali votavam em certo candidato. Botei adesivo no carro, comprei boné, camisa e chaveiro para a família toda. Não escondia minha esperança de que, a partir daquela eleição presidencial, meu País não seria o mesmo. Era isto que me diziam as ruas. Era isto que o coração me assegurava.
Bem feito. Quem mandou pensar que política se faz com o coração? Política é cálculo, astúcia, estratégias para galgar o poder a qualquer custo. Foi isto que apenas constatei, pois já sabia. Mas não custava nada nutrir a esperança de que daquela vez poderia ser diferente.
Eu vivo de sonhos. Dos meus e dos alheios. Por isto sonhei, junto com milhões de brasileiros, o sonho coletivo de que seria possível construir um país justo, em que finalmente se conviveria numa sociedade verdadeiramente democrática.
Como de todo sonho, deste também acordamos. O que não esperávamos - pelo menos eu não esperava - era o enorme contraste entre o sonho e a realidade perversa que nos aguardava abrir os olhos. A bem dizer, acordei com o barulho do abrir e fechar das portas e gavetas do meu quarto por homens ávidos em levar tudo o que lá encontrassem enquanto eu sonhava.
Hoje, de olhos bem abertos, luto para que nenhuma sedução me bote pra dormir. Para que nenhuma promessa ponha em marcha minha propensão natural aos grandes sonhos. Tiro meu título da gaveta com mão firme, sem nenhuma emoção. Vou sair de casa de cara séria e passos lentos. Vou entrar na sessão sem trocar olhares de esperança com os outros eleitores. Vou apertar uns tantos números ligados a nomes que me dizem muito pouco. Apenas que não há mais tempo para os sonhos. Temos que encarar este País com olhos secos. A cru.

25 setembro 2006

Carta de Pedra



Sono de pedra
no leito do rio.
Sonho da pedra:
Enigma Ingá.

Como quero te arrancar
das entranhas desta rocha.
Quanto desejo o recado
marcando lugar e hora
do encontro com teu sentido.

Antes da história
alguém me amava
e escreveu esta carta para mim.

Afago a letra da pedra
e encontro o calor antigo
das mãos do antigo poeta.

Enigma Ingá.
Carta de amor
aberta.
Impenetrável.

De Tecelagem Noturna (2000)

23 setembro 2006

Uma dor só


O verbo doer é enganador. Só se deixa conjugar nas terceiras pessoas. Na gramática, só ele ou eles doem. Segundo as boas regras, eu não dôo, caro leitor. Tu também não dóis.
O verbo doer não me engana. Eu dôo. Há momentos em que nada me faz doer, senão eu mesmo. Apenas por força da gramática, sou obrigado a projetar a fonte da minha dor em algo ou alguém fora de mim. Ou então, divido-me em duas partes e elejo uma delas como fonte do meu sofrimento. Viro corpo e digo: minha alma dói. Viro alma e afirmo: meu corpo está doído.
Dane-se a gramática. Eu dôo por completo. Apenas o meu orgulho de ser humano me faz pensar que essa maravilha suprema das espécies é incapaz da vileza de causar seu próprio sofrimento. Daí se construir uma gramática em que só eles doem. Quando muito, admito que doam em mim.
Amputados de mim pela gramática, meus braços doem, dói meu coração, doem-me as lembranças. Sendo assim, meus braços não são eu, meu coração se afasta de mim e minhas lembranças não me constituem. Separo-me do que vivo ou das partes que me fazem. Transformo o que é eu em eles e os ponho a doer longe de mim.
Mas à medida que envelhecemos, vai se revelando uma verdade. Não são mais as juntas, os músculos, a cabeça ou o peito que doem. É uma dor só que a cada momento visita uma parte do nosso corpo. E de tanto senti-la passear por nossos sítios, concluímos que esta dor não apenas é nossa. Fomos esta dor o tempo todo, mas só agora nos reconhecemos nela.
A dor gramatical não me pertence. Nem a ti, leitor. Há momentos em que é impossível atribuir aos outros a prioridade da minha dor. Há momentos em que estou só e nada me dói além de mim. Aí sim, o verbo intransitivo circula sem saída. Não há gramática que me salve. Eu dôo. E nas tuas horas de solidão, caro leitor, tu também hás de doer.

20 setembro 2006

Varandas



Não é alpendre, nem terraço. Não é balcão, nem sacada. Quando se fala varanda, vemos o sol da manhã e sentimos na pele o seu carinho morno. A palavra varanda abre um lugar dentro de nós onde nunca estamos sozinhos. Varanda é lugar de namoro, de conversa fiada, de esperar o almoço, de pegar uma fresca antes de ir dormir.
Tenho muitas varandas dentro de mim. Varandas de minha infância, onde ouvia as conversas dos mais velhos e amealhava palavras para varandas futuras. Varandas da juventude, onde ensaiei palavras solenes que logo perderam a utilidade e aprendi palavras simples que me valeram no trabalho insano de dar nome ao mundo. Varandas da maturidade, onde as palavras se livram de mim e vão nascer em outras bocas, com novos sentidos, novas cores.
A palavra varanda me acordou de manhã na boca de minha mulher. Ela disse que achava a palavra bonita. Mas sei muito pouco das varandas dela. Por mais íntimos que sejamos de alguém, dificilmente compartilhamos as varandas. Não sei nem quero saber quem freqüenta as varandas que ela guarda ou inventa dentro dela. Quando muito, posso nutrir o desejo legítimo de estar em uma delas. Devo estar, não é? Acho que sim.
Mas o melhor é que seja assim: cada qual com suas varandas. Lugares imaginários para onde podemos ir a qualquer momento e lá encontrar as pessoas certas para cada ocasião. Há varandas para momentos graves, outras para as alegrias, umas para tagarelar, outras para ficar em silêncio.
O importante é que a varanda não deixa ninguém só. Para a solidão temos os terraços, os alpendres, os balcões e as sacadas. Uma varanda é um lugar feito de palavras trocadas entre quem se quer bem. Um lugar onde se possa sentir a presença das vozes que nos cobrem de som e de sentido. Um lugar de onde se veja voar a palavra águia colhida no ar em toda sua beleza.

19 setembro 2006

O breve e o novo



Texto lido no lançamento de Memória do fogo, em Maceió.

Na sala de espera do Cine Plaza, em frente da minha casa, tinha um cartaz meio escondido numa parede lateral que sempre anunciava um filme com a palavra breve em diagonal, logo abaixo das fotografias. O que me intrigava, era que o filme anunciado nunca passava. Daí eu nunca ter aprendido direito o significado da palavra breve.
Outra coisa da sétima arte que me confundia era que, toda semana-santa, anunciavam A paixão de Cristo em “cópia nova”. Eu ia lá todo animado e só por muito respeito ao crucificado não puxava a maior vaia quando a tal cópia nova se partia pela décima vez, com o prenúncio da voz do narrador que ia ficando arrastada e desmesuradamente grave. Desta forma, minha apreensão do significado de “novo” também ficou prejudicada pela falta de precisão conceitual do gerente do Cine Plaza de Maceió.
Com a palavra breve, aprendi a esperar. Esperar muito. Esperar até o dia em que o velho filme fosse substituído por outro. E aí começar novamente a esperar. A única certeza que a palavra breve me dava era que brevemente eu me acostumaria com a idéia de que breve é um tempo de promessa. E é preciso que tal promessa nunca se cumpra para que a palavra breve possa continuar a existir.
A expressão cópia nova, por sua vez, me ensinou que uma cópia, por mais nova que possa ser, nunca vai deixar de ser uma cópia. Como tudo no mundo é feito de muita repetição e um pouco de acaso, aprendi que devo esperar muito pouco de novidade ao longo dos meus dias. Se quiser algo de novo, que eu mesmo tente cria-lo a partir da monotonia das horas que desfio.
Como a grande maioria dos lugares da minha infância, o velho Cine Plaza não existe mais. Não mereceu nem a mínima glória de se transformar em supermercado ou templo neo-pentecostal. Sua entrada principal foi simplesmente tapada com tijolos. Quem fez isto não desconfia que transformou em túmulo uma fonte de sabedoria.


Hoje, mais uma vez a vida me coloca frente à dialética do breve e do novo. Saí de Maceió há quase 50 anos. Não fui porque quis. Foi meu pai quem me levou para o Recife. Fui com a ilusão de que voltaria em breve. Não sabia que estava sendo vítima do breve dos cartazes de cinema. Mas se não me trouxe definitivamente de volta, a vida me fez vir aqui muitas vezes para ver minhas tias, meus primos e primas, meus amigos. Me fez demorar um pouco em 1968, cursando o NPOR no velho 20 BC. Cada vez, a brevidade do reencontro, o sentimento de estar sempre de visita me fizeram sentir um pouco estrangeiro em minha cidade de nascença. Hoje, eu sei eu não volto mais. Por isso aprendi a construir um tempo extenso a partir da brevidade de cada visita.
Cada vinda me dava a impressão de perda da cidade da minha infância. Sempre foi grande a decepção ao ver que desaparecera um ponto de referência que testemunhasse da minha passagem pelas ruas, praças e praias de Maceió. Com o passar do tempo, criei a fantasia de que esta cidade já não me pertencia. Com se, ao destruir os monumentos da minha passagem por aqui, ela me obrigasse a construir uma nova história a partir dos traços dos momentos vividos que ainda permanecem indeléveis em algum lugar da memória. Com isto, alimentei a ilusão que construía uma criatura nova, que pudesse olhar sem saudade a cidade nova que se construía a cada vinda. Hoje, na presença desses rostos amados, compreendo que é impossível a um homem voltar como novidade à sua terra. Numa contradição com a idade com que volto, volto como uma cópia nova do menino que saiu daqui. Um menino antigo, ainda perplexo com as nuanças do breve e do novo que o tempo tentou lhe ensinar nos cartazes dos filmes do velho Cine Plaza.

Maceió, 14 de setembro de 2006

14 setembro 2006

Digitais & analógicas


Ele olhou fixamente para o visor do seu Nokia e comunicou o que lhe ditava a precisão dos dígitos: você está cinco minutos atrasada. Pela fresta do olho livre do sacrifício do rímel ela passou pelos ponteiros do seu minúsculo Seiko e respondeu: só um minutinho, estou quase pronta.

Não é que mentisse. Antes, era fiel a um princípio estrutural das almas femininas. Estar apenas com um olho pintado é análogo a estar quase pronta. Faltava apenas o rímel do outro olho, o batom e o delineador nos lábios, um pouco de rouge nas bochechas, escolher a bolsa e os sapatos. Fora isto, estava quase pronta.

Mulheres são analógicas. Desde novinhas aprendem que homem é tudo igual. E passam o resto da vida a nos tratar a todos analogamente. E nós, ingênuos digitais, achando que cada mulher é única.

E cada mulher é única, mesmo que repita em seus domínios um padrão comum ao seu gênero: o ódio generalizado a qualquer bugiganga que contrarie a sua atávica analogicidade. Mesmo que essa bugiganga tenha custado quase cinco mil reais e consiga armazenar seiscentas fotos em sua maravilhosa memória digital. Não confio nessa coisa, quero as fotos aqui, na minha mão, para mostrar às minhas amigas lá no trabalho. E acumulam pesadelosamente pilhas e pilhas daqueles álbuns incômodos, de folhas de plástico em que as fotos se grudam e se deformam e que têm a faculdade de aparecer nos lugares mais inesperados da casa: na fronha do travesseiro, no armário de mantimentos, na caixa de ferramentas.

Tristes de nós, os digitais, fadados a viver uma por uma cada fração do tempo, a não estabelecer as relações mais óbvias entre as coisas. Por isto não achamos os óculos, mesmo que estejam às nossas ventas, na prateleira do banheiro, onde acabamos de os colocar antes de lavar o rosto. Por isto não lembramos dos aniversários de casamento, do dia em que o primeiro filho perdeu o primeiro dente de leite, da última vez em que a chamamos pelo apelido do tempo de namoro. Para nós, é tudo como se fosse a primeira vez.

Homens são digitais. É isto que nos torna óbvios, previsíveis. A começar pelo principal traço físico que nos caracteriza. Ali está ele, dígito indiscreto, dizendo de cara a que veio (ou a que não veio). Impossível qualquer simulação. Símbolo de si mesmo, análogo a nada. O traço feminino, por sua vez, é a analogia por excelência. Lembra muita coisa: orquídea, monte, boca, túnel, rio subterrâneo, bolsa pequena, asa delta, borboleta, ninho... E olhe que não estou falando de metáforas. Metáfora é a própria mulher. Metáfora de si mesma, perpétuo enigma para nós, pobres metonímicos.

12 setembro 2006

Esperando setembro



Já vai setembro quase em sua segunda metade, e ainda não disse a que veio. Antigamente, muito antigamente, setembro começava logo. Talvez intimidado pelos desfiles militares, o verão se apresentava ao serviço já no dia sete de setembro. Todo mundo ia assistir à parada com roupa de banho por baixo, pois era falta de respeito à Pátria assistir ao desfile em trajes menores. Mas sejam lá quais fossem os motivos, temor ou devoção cívica, o tempo andava nos eixos. Verão era verão, não era essa esculhambação que temos hoje.
E o que temos hoje são os sábados morgados por nuvens cinzentas, a chatice dos ventos que agosto esqueceu nas praias levantando nuvens de areia que doem nas pernas. E o pior de tudo é o atraso no lançamento da nova coleção de meninas que setembro costumava despejar aos nossos olhos. Até que peguem cor e jeito, lá se vai outubro, quem sabe até metade de novembro.
Esta má vontade de setembro não é nova. Lembro que há uns dez anos já registrava a presença nefasta de agosto nos seus dias. Tanto, que escrevi um poeminha circunstancial que talvez valha a pena transcrever:

Sombras de agosto

As sombras de agosto
em pleno setembro
resmungam blasfêmias.

O vento de agosto
em dez de setembro
engelha meu corpo.

As bruxas de agosto
desovam em setembro
as sogras, Getúlio.

A garra de agosto
cravada em setembro
sangra suas virgens.

As cinzas de agosto
semeiam em setembro
poemas soturnos.

O gosto de agosto
no mel de setembro
que travo trará?

Meu vulto de agosto
no teu de setembro
que sombra fará?

Espero que agosto não se ofenda, mas acho que ele já teve seu tempo. É preciso dar tempo ao que setembro nos promete: às mulheres, o prazer da mostra sob o pretexto do calor. Aos homens, a mesma desculpa do calor para vagabundear pelas praias, emprestando os olhos a esse jogo antigo como o mundo.

08 setembro 2006

Fora dos eixos


W. J. Solha


Ronaldo Monte, autor do romance “Memória do Fogo” ( que acaba de sair pela Objetiva, na série Fora dos Eixos ), é psicanalista. Daí o dom, louco, de um de seus personagens, de ver as pessoas “por dentro”. Daí o trabalho seguro, do romancista, com os complexos de Édipo e Eletra, que vemos em belos personagens como Massapê e Joana Darque. Daí, talvez, o prazer que nos proporciona sua escrita, no que nos passa sua visão sombria de um mundo “out of joint”, como diz Hamlet, num texto luminoso. Freud era um grande escritor. Alguns livros dele, como “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, são excelentes realizações literárias. Ronaldo Monte, romancista, também herda do Dr. Ronaldo Monte o conhecimento da alma humana e a precisão no uso das palavras. “Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim”, diz – fascinantemente - uma de suas criaturas. “Se soubesse a palavra eriçado, estaria eriçado”, o ficcionista diz, soberbamente, de outro vivente seu.
Somente alguém que convive com a Sombra de cada um de nós poderia dizer, com pleno conhecimento de causa, que “é cada vez mais feio o que vejo dentro das pessoas”. Mas Ronaldo Monte faz, do relato do que vê, sua obra de arte, buscando, talvez, a sublimação do que vive em seu dia a dia, antes mesmo da aristotélica catarse de seus leitores. E o elemento essencial do instrumento que escolheu para isso, a palavra, ele a usa com brilho, criando um ambiente primitivo e místico, exacerbado pelo uso estratégico de orações do Livro de São Cipriano, o que termina por dar ao seu trabalho um tom, freqüentemente, de realismo mágico. “Tua mãe morreu de novo, menino. Vai chamar teu pai.”
“Memória do Fogo”, apesar de suas poucas cento e vinte e três páginas, não tem pressa alguma de nos levar ao seu final. Avança lento, com estórias soltas que, aos poucos, vão-se entrelaçando, até que tenhamos as sagas de seis homens e de uma mulher que se reúnem misteriosamente ao redor das chamas, cada um reconhecendo nos outros os pares de seu sofrimento. O fogo, evidentemente, é o elemento que funde essas narrativas, como quando a donzela pobre – Joana Darque ( nome da santa que morreu na fogueira) - sonha com o homem que lhe dê um fogão a gás, ou como quando entramos – no capítulo “Massapê” – na oficina do oleiro, onde uma leva de cerâmicas é trabalhada no forno.
Um livro estranho. Com material de primeira para discípulos e dissidentes de Freud. A Objetiva marcou um tento com sua série “Fora dos Eixos”. Marcou outro ao levar ao país mais esse rebento da nova literatura nordestina e, mais precisamente, paraibana.

06 setembro 2006

Lana Lobell



Não se trata de um trauma de grande monta, desses que nos exigem fortunas para torrar com o psicanalista. Também isto não pretende ser um conto. É mais uma maneira de economizar uma sessão de análise tomando emprestado o tempo do leitor.
Uma das minhas maiores desvantagens na vida foi ter nascido gordinho, falante e sabendo me comportar na presença dos estranhos. Tais atributos me faziam o preferido para acompanhar minha mãe aos lugares mais chatos que se possa imaginar. Um desses lugares era a casa da costureira.
Acho que minha propensão à asma deve-se ao cheiro de pano que sentia já ao dobrar a esquina da casa da costureira. Na sala, então, era uma tortura. Espirrava, sentia faltar a respiração. Mas como um bom menino, agüentava calado.
Não tinha com que me distrair enquanto minha mãe escolhia o modelo ou experimentava o vestido. Dispunha apenas de um monte de revistas velhas, escritas numa língua estranha, cheias de fotografias das coisas mais variadas. Relógios, utensílios de cozinha, aspiradores de pó, coisas inimagináveis se misturavam naquelas páginas amarronzadas. Do meio para o fim, vinham os vestidos, sapatos e bolsas de mulher. Lana Lobell. Era este o nome da revista. Somente mais tarde é que fui saber que aquele era o primeiro catálogo de vendas pelo correio inventado nos Estados Unidos.
Minha mãe passava horas discutindo com a costureira os detalhes do modelo escolhido na revista. Eu era que nunca conseguia reconhecer no corpo pequeno e redondo da minha mãe o vestido usado pela modelo esguia e peituda do catálogo. Claro que nunca disse isso a minha mãe. Como sabem, eu era um menino bonzinho.
Não se impacientem, pois chegou a hora de falar do trauma. Teve uma vez que eu folheava distraído a Lana Lobell quando meu olhar foi atraído pelo gesto desenvolto de minha mãe tirando o vestido. De repente, estava eu lá, com os olhos presos em minha mãe de combinação. Espero que o leitor saiba o que venha a ser uma combinação. Para os mais novos, informo que se trata de uma peça de baixo, para impedir que a transparência do tecido do vestido mostrasse o contorno das formas da freguesa. Há cinqüenta anos atrás, ver a mãe de combinação equivalia a um pecado quase mortal.
É natural, portanto, que me sentisse estremamente perturbado. Baixei imediatamente a vista para as páginas da Lana Lobell aberta frente à minha cara. Mas as páginas mostravam exatamente uma coleção de porta-seios, daqueles pontudos, usados hoje pela Madona. Ou seja, para onde meus olhos se voltassem, teriam que se deparar com a nudez feminina. Uma delas, para meu desespero, era da minha mãe.
A saída foi me refugiar nas palavras impressas daquela língua estranha. E um dos efeitos traumáticos se revela até hoje numa ligeira reação alérgica ao entrar na casa de qualquer costureira. Outro resquício da cena permanece na incapacidade de olhar uma fotografia de mulher nua sem ter antes lido a legenda. Nada tão grave que mereça ocupar o dispendioso espaço de uma seção de análise.

04 setembro 2006

Jornada dentro da noite



Para Ana Lia

Há uma luz acesa no meio da noite. Sob ela, um homem trabalha.
Trabalha com papel, lápis, livros, máquina de escrever, computador.
Quando o dia amanhecer, o seu trabalho será exposto no mercado à espera do melhor preço que será, como sempre, injusto.
Pequenos pontos de luz esparsos pela noite, muitos homens e mulheres navegam contra as trevas.
Quando o dia amanhecer e forem expor seu trabalho no mercado, descobrirão, satisfeitos, que o melhor da jornada foi adiar a escuridão total que ameaça descer de vez sobre o mundo.

(Publicado em "Pequeno Caos", 2003)

30 agosto 2006

Coração perdido



Era mais ou menos por ali, numa dessas árvores do bosque por trás da gaiola das araras. Eu adoro araras, disse ela. E ficou batendo os braços como asas, gritando com a voz esganada: arara, arara. Ele ficou meio encabulado, mas depois achou graça nela sendo arara. Achou graça assim, sem rir. Quando ela parou, ele segurou na mão dela e foram em direção ao bosque por trás da gaiola das araras.
Quanto tempo fazia? Quarenta, quarenta e cinco? Não era bom nesse negócio de tempo. Sabia apenas que fazia muito, muito tempo que estiveram ali, na sombra daquele bosque de temperatura amena, quase fria. Muito tempo, mas ele ainda sentia a pressão dolorida da casca da árvore na palma de sua mão. Da tensão do seu braço estendido apoiando o peso do seu corpo. Do jeito dos olhos dela pedindo que ele se chegasse mais. Do calor do corpo dela quando ele se chegou mais.
Não se lembra quanto tempo ficaram assim. Não era bom nesse negócio de tempo, já disse. Lembra, sim, de cada beijo, de cada parte do corpo dela por onde viajou sua mão. De cada suspiro que ela deu e de quantas vezes disse meu amor. Lembra do canivete no bolso, do canivete na mão, do canivete na casca da árvore desenhando um coração. E dentro do coração a letra agá de Henrique e a letra tê, de Tereza.
Foi mais ou menos ali, no fundo daquele bosque, por trás da gaiola das araras. Nesse lugar, por onde agora ele errava, os olhos trespassando as árvores em busca de uma árvore que não estava ali. Procurava uma árvore com um rapaz, uma moça e um coração com duas letras. Procurava um tempo que dormia naquele bosque, cansado de esperar por eles dois.
Arara, arara, gritava a arara, ainda ali, como se fosse ela.

*

29 agosto 2006

Mascates da noite



Gosta de poesia? A pergunta toma de assalto a quem passa na rua ou conversa na mesa do bar. Posso apresentar o meu trabalho? É o passo seguinte se você ficar calado, surpreso com a sem-cerimônia da intervenção. Aí o garoto ou a garota põe o livro em suas mãos, como se não restasse nada mais para você fazer do que comprá-lo.
Geralmente é um livro pequeno, artesanal, com uma capa horrível, em caracteres quase ilegíveis. Alguns poucos têm acabamento mais esmerado, pouquíssimos têm até fotografias. Mas não é a aparência que importa. Nem mesmo importa se os poemas são bons ou não. O importante é que sejam livros. E livros de poesia.
Não entendo as pessoas que alardeiam que a poesia está desaparecendo. Muito menos os que reclamam da falta de mercado para os poetas. É só sair à noite para ver que tudo isso é preconceito ou má vontade. Verá poetas aos montes que fazem pilhas de poemas e publicam livros, muitos livros.
As noites do Rio, de Parati, de Olinda e do Recife, as noites de qualquer cidade deste país estão cheias desses mascates que insistem em passar suas mercadorias poéticas a um preço em conta. Vendem nessas noites o produto de outras noites que atravessaram insones em busca da palavra que achem mais precisa no verso que achem mais enxuto na esperança do poema mais perfeito que na maior parte das vezes falta ao encontro marcado antes dos primeiros vermelhos do dia.
Gosta de poesia? Então perca o apego àquela nota de dez reais e compre o livro do poeta. Faça um pouco mais. Leia o livro assim que chegar em casa. Você pode ter uma surpresa ao ver que valeu a pena ter dado ouvido e crédito a um desses muitos mascates noturnos.

24 agosto 2006

Sucesso na feira



Dizem que quando uma mulher começa a fazer sucesso na feira, está na hora de entrar num regime. O que deve, pois, fazer um escritor quando passa a ser sucesso na feira?
Claro que não estou me referindo a nenhuma feira literária, que ainda estou longe de fazer sucesso nessas plagas. A feira que eu falo é perto daqui de casa, a feira suja e feia do Bairro dos Estados.
Cheguei uma manhã na barraca do Walter, de quem sou freguês antigo, para pegar meu sortimento semanal de frutas e verduras. Senti um certo estranhamento, alguma coisa havia mudado no modo como me tratavam. Fiquei meio desconfiado, pois conheço bem o espírito das feiras e o da barraca do Walter em particular.
O mistério foi revelado quando Mauro, o meu escolhedor de laranjas preferido, se abaixou no lado de dentro do balcão e veio à tona com um jornal na mão, perguntando se eu conhecia o sujeito da fotografia na capa do caderno. Lá estava eu, ilustrando uma matéria sobre o lançamento do meu romance, Memória do fogo.
Cheio de cerimônias, Mauro me contou que estava procurando umas folhas de papel para embrulhar umas macaxeiras quando deu de cara com minha cara estampada no jornal. Eu mesmo sou um fornecedor de jornal velho para os embrulhos da barraca. Coincidência ou não, havia desaparecido daqui de casa exatamente o jornal com a matéria que ele me mostrava. Foi muita sorte minha poder recuperá-lo.
Mas a coisa não tem sido fácil. Mauro me garantiu que quando lesse a matéria, me entregava o jornal. Só que já faz duas semanas do acontecido e o jornal ainda está com ele. Diz que ainda não terminou de ler. Enquanto isso, minha fama vai se alastrando em círculos concêntricos a partir da barraca do Walter. Tenho certeza de que eles estão me usando para fazer merchandising.

20 agosto 2006

Pobre criatura


Concordamos que tem muita criatura que sofre nas mãos do seu criador. Mas poucas sofrem tanto quanto Jailson nas mãos de Antônio Mariano. Em noventa e cinco páginas o pobre leva uma surra, confundido com um ladrão que ele mesmo perseguia; é tratado como uma criança invisível pelos pais; é demitido por justa causa sem justa causa; morre de uma porrada do próprio pai; morre envenenado pela tia que ele mesmo tentou um dia envenenar mas se arrependeu; morre outra vez picado por uma viúva negra que o tirou para dançar; fica com fome enquanto os outros comem – por via oral – sua namorada Maria Dulce; leva um sopapo entre o nariz e o beiço com o caroço de uma fruta atirado por uma menina que ele queria bem; é internado na Colônia Juliano Moreira por descobrir-se poeta; é responsável pelo desaparecimento de Alice, sua irmã, num poço que aparece de repente no meio do caminho. Por fim, Jailson morre definitivamente nas mãos de um amarelo, quando “o sol apontava no nascente espantando a sombra da noite, imensa asa sobre o dia.”
Imensa asa sobre o dia, da Coleção Tamarindo, é o título do livro de contos em que Antônio Mariano maltrata o pobre do Jailson. E faz isto com tamanha competência sádica que leva o leitor ao deleite, cooptado pelas astúcias do estilo e da imaginação do autor. Quanto mais sofre Jailson, mais goza quem lê Mariano. Sabemos que assim é a vida, pelo menos a vida que imita a arte, mas não precisava exagerar.
Além do mais, o autor nos engana ao se fazer de contista. O que esperar de um poeta que se lança aos contos? Que recheie seus contos de poesia, como um confeiteiro rechearia um pão; um sacoleiro, a sacola; um traficante, o fundo falso da mala. Um inspetor de alfândega competente não deixaria passar como simples prosa os contos de Imensa asa sobre o dia, cuidadosamente editado por Juca Pontes para a Editora Dinâmica. O próprio título do livro já denuncia a presença dos grãos finos da poesia no granulado da prosa. E quanto mais Antônio Mariano domina os dois ofícios, mais sofre o pobre do Jailson em suas mãos.

16 agosto 2006

Romeiros


Sem rumo certo, vão e vêm de cabeças baixas. Seus corpos ondulam numa coreografia sonâmbula. Sozinhos, aos pares ou em pequenos bandos, dão alguns passos e param. Só aí se vê que não é de tristeza a expressão de seus rostos. É de um certo êxtase, de quem não acredita de fato que está ali. Logo voltam a olhar para o chão e a caminhar lentamente sobre as pedras. São os romeiros de Parati, numa insólita procissão em louvor da palavra. A pluralidade das vozes denuncia: estão ali para a Festa Literária Internacional de Parati, a Flip. O comportamento estranho entre o cabisbaixo e o êxtase deve-se ao calçamento irregular feito de pedras no tempo da colônia. É impossível andar olhando para frente ou para os lados. É preciso parar para poder ver as casas, as galerias, as livrarias, os bares e botecos que disputam nossos olhos. É parado também que se vê o passar do tempo sobre o lugar. E somente parados podemos procurar o olhar do outro com quem compartilhar o deslumbramento.
O Clube do Conto de João Pessoa estava lá. Na noite de quinta-feira, dia 10 de agosto, no Che bar, fizemos uma autêntica farra literária paraibana, batizada de Parathyba. Vendemos livros, sorteamos livros, demos muitos livros. O bar estava lotado. Muita gente estava lá para conhecer a turma daquela freira da Paraíba que tinha feito o maior sucesso na mesa de abertura da Festa, na manhã daquele dia. E foi a própria Valéria Rezende que apresentou o Clube.
Valéria, Barreto, Marília, Suênio Campos e eu erramos como romeiros pelas ruas de Parati. Fomos festejar a palavra. Cabisbaixos algumas vezes. Em êxtase na maior parte do tempo pela beleza da polifonia.