29 agosto 2012

O país aleijado



Pouca gente deve conhecer João Schwindt. Ele é o atual campeão da Copa mundial de Paraciclismo realizada neste ano, no Canadá. Sem patrocínio, concorreu com uma bicicleta de segunda mão à prova de contrarrelógio, a sua especialidade.
João Schwindt vai representar o Brasil em quatro provas na Paraolimpíada deste ano, em Londres. Mas para isso precisa de uma bicicleta com câmbio eletrônico, igual a de todos os seus concorrentes. A bicicleta custa R$ 21 mil. Ele recebe R$1.800 da Bolsa-atleta do Ministério do Esporte.
Dois amigos de João lançaram uma campanha no Facebook para ajudá-lo a comprar sua super-bicicleta. Mas até a semana passada só tinham conseguido arrecadar R$3.271. As Paraolimpíadas começam em 31 de agosto.
Como era de se esperar, o Comitê Paraolímpico Brasileiro informou que em nenhum momento João pediu uma bicicleta para disputar as provas. Nem ao menos informou que a sua bicicleta de segunda mão era obsoleta. Os dirigentes do Comitê devem ser cegos-surdos (ou, para manter o espírito paraolímpico, deficientes óptico-auditivos), pois não conseguiram ver as condições do equipamento do atleta em todas as competições de que participou. Tampouco ouviram qualquer comentário a respeito da precariedade com que, não apenas João, mas todos os atletas paraolímpicos enfrentam seus concorrentes internacionais.
         Antes de se tornar um campeão do paraciclismo, João perdeu uma competição em que muitos brasileiros são vencidos. Ele foi atropelado, em Brasília, por um motorista que vinha na contramão.
No território símbolo da violação das leis e da certeza da impunidade, João sobreviveu para nos passar na cara que, muito longe de sermos um país digno de heróis paraolímpicos, constituímos um país aleijado, manco das pernas, claudicando ao peso das nossas desigualdades, esmolando recursos, expondo nossas deformações sociais nos palcos mundiais do requinte tecnológico.  

21 agosto 2012

Mártires da cultura





Antigamente (e bota antigamente nisto), os mais velhos costumavam usar alguns ditados para incutir certos princípios na cabeça das crianças. Lá em casa, minha mãe vivia repetindo: “boa romaria faz quem na sua casa está em paz”. O que significava: é melhor ficar em casa do que arranjar confusão na rua. Outro ditado que ouvi muito foi: “quando a cabeça não pensa, o corpo é que padece”.
Se eu tivesse sido um menino obediente, não estaria agora com o corpo padecendo a falta de juízo que me levou, junto com minha mulher, a fazer uma romaria quase mortal à cidade de São Paulo.
Claro que eu não ia perder o lançamento do meu novo livro na Bienal. Muito menos deixar de ver a exposição dos impressionistas no Centro Cultural Banco do Brasil, nem a exposição de Caravaggio no MASP. Tudo isto em míseros três dias.
Minha mulher costuma dizer que, desdenhando dos nossos 65 anos, saímos de casa pensando que temos 45, para voltar arrastando o peso dos 80. Não foi diferente nesta última viagem. No primeiro dia, passamos a manhã fazendo o reconhecimento do terreno da Bienal, marcando o território das editoras que valiam a pena ser visitadas. Daí, fomos para a Sé, onde fica a o CCBB. Depois de uma hora e meia de fila, passamos mais duas horas impressionados com os impressionistas. Nada mais natural que voltássemos para o hotel, já mortos de cansaço. Mas isto é coisa para os fracos. Tínhamos o lançamento do livro de poemas de André Ricardo, numa mercearia descolada em Vila Madalena. Resultado: chegamos ao hotel já passando das dez da noite.
No segundo dia, passamos a manhã comprando na Bienal. Um mínimo de juízo nos levou de volta para o hotel, de onde saímos às quatro da tarde para o MASP. Para facilitar, pegamos uma saída de metrô que não tinha escada rolante. Chegamos no topo da Avenida Paulista com o coração na boca. Mas Caravaggio e seus seguidores nos esperavam para reconfortar nossos espíritos. Não tinham nada a ver com as dores dos nossos corpos. Mas ainda faltava comprar alguns livros que nos encomendaram. Era só atravessar a avenida e dar um pulinho ali na Livraria Cultura, no Conjunto Nacional. Não sei muito bem o que aconteceu, mas tive a clara sensação de que aumentaram a distância entre o museu e a livraria.
O terceiro dia foi mais maneiro. Cheguei na Bienal às duas da tarde, esperando o meu lançamento que seria às seis. Consegui administrar a canseira até chegar à casa de um casal amigo que nos reconfortou com pão e vinho.
Como ainda dizia outro ditado dos mais velhos: “quem não ouve conselhos, raras vezes acerta”. Por muito pouco não nos transformamos nos mais novos mártires da cultura.  

Imagem obtida em: www.willarte.com.br     

14 agosto 2012

Corrente


Já é a segunda vez que me enviam uma corrente para que eu peça a Deus a cura do câncer. E Ele deve fazer isto nesta sexta-feira, “o dia mundial do câncer”. Eu não devo apenas orar com toda fé, mas mandar a tal corrente para a minha lista de endereços. Se eu fizer isto, garantem, estarei ajudando a realizar o maior sonho da humanidade.
Será que não passa pela cabeça dessas pessoas que se Deus quisesse que o câncer fosse curado ele já teria feito isto há muito tempo? Ou melhor, ele não teria inventado esta doença, pois tudo que existe, segundo dizem, foi criado por Ele.
         Devolvendo a gentileza dos que me enviaram a tal corrente, gostaria de convidar seus autores e divulgadores a uma pequena reflexão: será que o Deus de vocês é tão cruel a ponto de ter uma solução para um mal e se negar a oferecê-la aos homens que Ele mesmo criou á Sua imagem e semelhança?
         Será que este Deus é tão vaidoso que só abrirá mão do segredo da cura do câncer se dobrarmos a espinha suplicando que nos alivie deste e de outros sofrimentos que Ele mesmo nos impôs?
         Ou será que estamos transferindo para a esfera Divina um problema que apenas a nós cabe encontrar a solução? Deus já fez a Sua parte quando nos dotou de inteligência e amor, tornando-nos, com isto, à sua imagem e semelhança.
         Deus tem mais o que fazer do que ficar escutando nossas lamúrias de crianças malcriadas. No momento, suspeito que deve estar criando um outro mundo onde experimentará uma outra humanidade. Pois está provado que esta aqui não deu certo. Não soubemos aproveitar a inteligência que Ele os deu. Usamos este dom divino para criar os artefatos bélicos mais destruidores, os sistemas políticos mais hediondos, os modelos econômicos mais cruéis contra os nossos semelhantes.
         Passem, por favor esta mensagem adiante: a cura do câncer, a erradicação da fome, a paz entre os povos só serão alcançadas pelo uso da nossa razão, da nossa inteligência. E isto Deus já nos deu desde os primeiros dias do Gênesis.      


08 agosto 2012

Servicinho



Desde que me mudei de vez pra Cabedelo, tinha vontade de pendurar a televisão na parede do quarto. Coisa simples, pensava. Claro que não seria eu a fazer o serviço, mas na mão de um bom faz-tudo o trabalho não duraria mais de meia hora.
Suporte comprado, furadeira nova, serviço contratado, dali a pouco eu estaria jogado na cama vendo “Vale a pena ver de novo”. Estaria?
A primeira dificuldade se apresentou com a teimosia dos parafusos em não querer abandonar a base da televisão à qual estavam ligados desde a maternidade. Foi preciso sair para comprar uma chave estrela.
O segundo obstáculo foi a ausência de um manual de instalação. As instruções estavam sucintamente impressas na embalagem, com ilustrações minúsculas que mais confundiam do que orientavam a equipe de montadores. Equipe, sim, pois, além dos dois trabalhadores, eu fui incorporado ao grupo para tentar decifrar as instruções.
Traduzidos os hieróglifos, concluímos que não tínhamos uma chave sextavada para parafusar as bases na parede. Saí novamente para comprar parafusos de fenda.
Já noitinha, televisão fixa na parede, trabalhadores apressados para não perder o último trem, descubro que o cabo da antena não estava conectado. Lá vamos eu e minha mulher desenganchar a televisão da parede para consertar o esquecimento. Jeitosos como Deus nos criou, correu-se sério risco de ver desabar parede abaixo o nosso patrimônio comprado a prestação para assistir o fiasco da seleção na última copa.
Acredito que este foi o último servicinho que precisamos fazer desde que inicamos a “última” reforma, no começo do ano. Ainda tem uma pequena infiltração na entrada do meu quarto que prometeram resolver amanhã. E me garantiram que amanhã mesmo terminam a pintura. Estamos exaustos, os olhos irritados de poeira e as contas bancárias exauridas. Juro por Deus que vai demorar muito até que eu me atreva a fazer o mais mínimo servicinho aqui em casa.   

01 agosto 2012

Vistam saias, meninas: é agosto







Publico de novo porque gosto do texto.  Também gosto de agosto.

Há um certo prazer em falar mal de agosto. Dizem que é o mês das bruxas, onde cai o dia das sogras, foi quando morreu Getúlio e costumam ocorrer desgraças políticas. Pouca gente fala bem de agosto.

Quase ninguém se lembra que é o mês do mais belo luar do ano, promovendo encontros e reconciliações entre os já românticos e convertendo ao romantismo alguns indecisos pós-modernos. Em mim, particularmente, o luar de agosto produz um estado intermediário entre uma lânguida melancolia e uma vontade enorme de uivar.

É certo que em alguns anos agosto lembra um velho sombrio, com suas nuvens cinzentas, suas chuvas fora de hora, invadindo maleducadamente com seus miasmas setembro a dentro. Mas num ano como este, agosto merece ser tratado com toda a consideração. Já na primeira semana faz um sol quase de verão, esquentando um pouco a água do mar, levando à praia uma boa safra de mulheres e, vá lá, alguns homens dignos de nota. Só temos que aturar o vento forte, o bom vento de agosto que, se algumas vezes aborrece ao derrubar varais, espalhar jornais ou varrer areais, nos compensa com um dos mais belos espetáculos ao ar livre: a dança das saias.

E não me venham dizer que isto é coisa que só interessa aos homens. Alguma coisa me diz que as mulheres esperam ansiosas por agosto, preparam-se em academias e clínicas de beleza para o encontro com este mês abertamente masculino. E tenho certeza que uma pesquisa de mercado revelaria um forte incremento no comércio de saias ou cortes de tecidos para elas, cremes e óleos para pernas, além de peças íntimas de langerri a serem desvendadas num momento de estudada distração.

Os homens esperam por agosto como a um velho camarada. Um amigo maroto que faz por nós o que mais gostaríamos de fazer em plena rua: levantar as saias das mulheres.E reparem bem no rosto de uma mulher a quem o vento de agosto vai levantar a saia. Há, de início, uma certa expectativa, quase uma ansiedade, um temor de que não sopre vento nenhum e tenha sido em vão todo o preparo, todo o cálculo de chegar naquela esquina no momento em que um homem, ou um grupo de homens, passa atento pela calçada contrária. Logo, sopra o vento. Primeiro, de leve, deslocando os cabelos e fazendo a vítima fechar os olhos numa mescla de vago aborrecimento e satisfação. Quase um agradecimento.Ato contínuo, vem o farfalhar da saia. Aí é necessário que a dona da saia tenha alguma coisa em uma das mãos. Pode ser um sortimento de livros e cadernos, algum pacote não muito volumoso, até sacola de supermercado serve em certos casos. O importante é que apenas uma das mãos fique livre para segurar a saia em um dos lados, deixando o outro ao sabor do vento de agosto e dos olhos dos seus gratos amigos do outro lado da rua. O movimento, brusco mas não tanto, de segurar um dos lados da saia leva a um certo desequilíbrio que faz com que o volume sustentado pela outra mão ameace cair. Nisso, a mão que segurava a saia vai em ajuda à sua irmã, deixando agora todo o campo livre para o trabalho do vento e dos olhos.

Há variações do rito, é certo. A melhor delas é quando agosto apanha com seu vento um bando de mulheres no meio de uma ponte ou numa rua larga, de preferência ladeirosa, em que estejamos todos subindo. Mulheres na frente, como manda a boa educação, homens regulando o passo até alcançar a melhor distância para um visão de conjunto e, finalmente, ele, o ruidoso, o assobiador, o vigoroso e salutar vento de agosto, causando desordem e euforia, quebrando a monotonia das tardes friorentas. Estamos no começo de agosto. Já é tempo, meninas, vistam saias. E deixem brincar com elas o vento de agosto, para o alimento de vossas vaidades e o bem dos nossos olhos. Antes que todos, olhos e vaidades, sejam desviados pelo despudoramento de setembro, escancarando corpos e tornando vulgar o jogo sedutor que agosto sabe tão bem jogar.

(Publicado em Memória curta, 1996)

Imagem obtida em: soufeitadepalavras-claudinha.blogspot.com