31 dezembro 2006

Prefixos e corolários



De fato, era uma bela manhã. Ficou mais bonita quando um jovem, de aparência humilde e bastante despachado, chegou junto de mim e de Glória e comentou, entusiasmado: o mar está um prefixo. Concordamos plenamente.
Ali estava uma palavra usada pura e unicamente pela sua beleza plástica. Boa de falar, portando uma certa solenidade, prefixo expressava claramente o deslumbramento do jovem frente à maravilha que nos enchia os olhos.
Lembro de outra palavra que me encantava na infância: Corolário. Não sei como vim a conhecê-la. Provavelmente foi em algum livro dos adultos em que vez por outra enfiava o nariz. Por um bom tempo, corolário me remetia a alguma coisa colorida, como um arco-íris, e ao mesmo tempo imponente, como a coroa de um rei.
Imagine a falta de graça quando descobri que corolário significava apenas uma verdade que decorre de outra, como sua conseqüência necessária ou continuação natural. Foi no que deu estudar epistemologia. Só quase agora resgatei um pouco da antiga magia da palavra. O dicionário me informou que corolário servia primeiramente para nomear a coroa de folhas de ouro que era oferecida, na Roma antiga, aos grandes atores em reconhecimento do seu talento.
Gosto quando as palavras se despregam do seu sentido cotidiano e vêm brincar conosco, propondo novos significados. Drumond dizia que lutar com palavras é a luta mais vã. Por isso brincava com elas.
O rapaz da praia e o menino que eu fui deixaram-se levar pela beleza natural das palavras. E do reino das palavras eu trago estas duas para enfeitar o ano novo. Muitos prefixos e corolários para todos nós.

21 dezembro 2006

Sinal fechado



Ainda bem que tinha o fusca. O aperto estava tão grande que pensou em vender o velho amigo. Quinze anos de rua e estrada. Felizmente apareceu aquele bico de Papai Noel no fim do ano. Não era muito, mas dava pra fechar o mês e adiar a venda do carro.
Ainda bem que tinha o fusca. Era noite de Natal, a loja só fechou às dez da noite. Nem perdeu tempo trocando de roupa. Ninguém ia achar estranho um Papai Noel dentro de um fusca nessa noite.
Ainda bem que o fusca pegou na primeira virada de chave. Grande fusca. Não era agora que ia deixar ele na mão. Estava doido para chegar em casa. Além da mulher, do filho e da filha, tinha o pessoal da rua esperando com o rum e umas cervejas no ponto.
Tirar essa roupa quente e fedorenta. Tomar um banho demorado. Sair do banheiro assobiando, enrolado na toalha. Botar roupa limpa, comer panetone com guaraná junto com as crianças. Sair com a mulher para a calçada. Encontrar os vizinhos, beber, comer e conversar até chegar o sono. Entrar com a mulher em casa, deitar com a mulher na cama.
O fusca vencia galhardamente o asfalto da avenida. Sem muita pressa, mas resoluto. O ronco do motor mantendo o ritmo. O quebra vento mandando uma brisa pra dentro do carro. O rádio, original de fábrica, tocava uma música de louvor ao bom velhinho. Engoliu seco, emocionado. Tinha sido o bom velhinho por doze horas nesse dia. Agora o Papai Noel voltava para casa. Mais uns vinte minutos e pronto. Grande fusca.
O freio respondeu com presteza ao sinal vermelho. Tinha se distraído e quase passava direto. Mas o breque perfeito deixou a faixa livre para que o menino se aproximasse com uma garrafa pet numa mão e o rodo limpa-vidro na outra. Quando viu o motorista, o menino gritou: olha aí, eu não disse que ele vinha. Papai Noel está aqui, dentro do fusca. Ele veio entregar o meu presente.
Fusca de merda. Morrer exatamente nesta hora. Se empurrar, pega. Mas como pedir ajuda a esse bando de moleques de mãos estendidas, cada um pedindo uma coisa diferente e ele sem conseguir nem fechar a janela do carro.
Seu desespero era grande. Mas conseguiu ficar maior quando um cara, segurando alguma coisa por baixo da camisa, abriu caminho entre os meninos, enfiou a cabeça dentro do fusca e cobrou: e aí, Papai Noel, cadê o presente da molecada?

20 dezembro 2006

A nudez de Tarcísio Pereira



Levei Letícia para passar um fim-de-semana comigo em Cabedelo. Na manhã do sábado, quando voltei da praia, deitei com ela na rede com um copo de uísque ao lado. Umas poucas horas depois, saí da rede com Letícia dentro de mim.
Mas não pensem vocês que Letícia deita na rede de qualquer um. Se merece crédito o que nos conta Tarcísio Pereira em sua novela Uma noite no céu, é com certo constrangimento que ela presta favores a um cidadão americano, premida pelas necessidades da família e um vago desejo de ascensão social. De resto, Letícia é atormentada pelos recados escritos em cédulas de todos os valores pelo dono dos olhos verdes com que viveu uma invejável peripécia pelos céus do Brasil.
Não sou de estragar conversa contando fins de histórias. Por isso, apenas chamo a atenção de vocês para a precisão narrativa com que Tarcísio nos esconde mais que mostra o desempenho audacioso desta Emanuelle do interior pernambucano.
A cena do avião é emblemática do jogo de mostra-esconde com que Tarcísio brinca com nossa emoção, nossa angústia, durante toda a história. E se Letícia em nenhum momento está nua, a nudez de Tarcísio está toda lá.
É de Mario Vargas Llosa a metáfora do romance como um strip-tease invertido. Para ele, tanto quanto a moça que se desfaz das roupas para revelar seus íntimos segredos, o escritor também expõe sua nudez através de seus romances. Mas enquanto a moça mostra seus encantos, o escritor expõe a parte mais feia de si mesmo: seus demônios, suas nostalgias, suas culpas. Outra diferença, nos diz o escritor peruano, é que a moça está vestida no começo e nua no final. Inversamente, o romancista está despido no começo e vestido no fim. Veste-se com o texto tecido com as lembranças do que viveu, sonhou, ouviu e leu. E com este pano encobre sua nudez inicial.
Com Uma noite no céu, Tarcísio tenta esconder a nudez do seu desamparo com um tecido primoroso de palavras. Mas Letícia não deixa. Jogando de mostra-esconde, ela sugere sua nudez pelos meandros do texto para nos mostrar que Tarcísio está nu.

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Há poucos dias, fui levar um grande amigo no aeroporto. Ele foi para São Paulo fazer uma operação delicada. Extrair um dos rins. Isto mesmo. Estava com câncer. Estou apreensivo enquanto escrevo. Sei dos prodígios da medicina moderna, estou informado sobre as margens favoráveis de recuperação em casos idênticos ao seu. Mas estou inquieto. Uma sombra de angústia me acompanha nos mínimos afazeres do dia. É esta mínima incerteza sobre o retorno do meu amigo que me inquieta. Toda ida carrega em si o complemento da volta. Sabem disso os amantes e os pássaros migrantes. Só deixamos alguém em paz numa estação quando ele já veio e está voltando, ou se está indo com a data da volta garantida. Ver partir alguém sem a certeza de revê-lo deixa em nós a sensação de um nó desfeito. O desamparo de um fio desatado. Por isso nutrimos a esperança do perdão dos que nos deixam. Por isso inventamos a vida eterna que um dia a todos nos reunirá. Se me for permitido querer mais alguma coisa deste ano tão pródigo de afetos, quero que volte o meu amigo. Mesmo mais leve do seu lado esquerdo, quero que volte. Quero que ele esteja perto de mim com sua mulher e seus filhos, com seus cachorros e seus livros, com seu sotaque francês de Catolé do Rocha. Quero também que voltem para junto de mim todos os meus amigos distantes. Aqueles que foram e não podem vir. Os que estão ali perto e não sei por que cargas d’água não aparecem. Quero todos por perto. Quero ver suas caras, ouvir suas vozes e me assegurar de que não estou só nesta viagem.

(Ilust.: Malas y sombrero. Óleo sobre tela de Juan Valcarcel).

15 dezembro 2006

Arroba


O velho sinal gráfico formado por um a minúsculo envolto num círculo aberto vivia abandonado lá no alto do teclado desde as velhas máquinas de dactilografia. Até o dia em que foi ressuscitado por Ray Tomlinson, um engenheiro norte-americano criador do e-mail.
Mas antes de chegar aos nossos endereços eletrônicos, a palavra arroba percorreu um longo caminho. Ela se origina da palavra árabe ar-rubaHa , que queria dizer, literalmente, a quarta parte de uma unidade de peso, equivalendo mais ou menos a 14,7 kg. Quem assiste ao Canal do Boi ainda escuta o peso em arroba das vedetes lá expostas à venda.
Tal como o conhecemos hoje, o sinal gráfico foi criado pelos copistas medievais, como abreviatura da preposição at, (de). Com este mesmo sentido foi usado depois como símbolo comercial pelos ingleses, já distante do seu significado original de medida de peso. É justamente isto o que o sinal de arroba quer dizer em informática. Assim, pois, rona.monte@terra.com.br quer dizer que um certo sujeito é “de” uma determinada família, ou seja, a dos usuários de um determinado fornecedor de serviços eletrônicos. Criou-se, desta forma, um novo tipo de parentalha. Os parentes por parte de servidor.
Mas chega de enrolação erudita, pois tudo isto está disponível nos verbetes do Houaiss. O que eu quero mesmo é homenagear o gênio, por enquanto anônimo, que usou pela primeira vez a arroba para se referir aos dois gêneros numa palavra só. Agora, quando escrevo querid@os amig@os, escapo da chateação de estabelecer uma hierarquia entre os gêneros e ainda economizo energia ao eliminar a repetição. Salva-me mais ainda da ira feminina que atraio quando sou obrigado a escrever “Prezado (a) Senhor (a)”.
Ainda não sei se já inventaram uma forma de ler as novas palavras escritas com o velho símbolo. Aí sim, a economia seria perfeita.

13 dezembro 2006

Gavetas


Se precisar de alguma coisa para daqui a pouco, não a guarde numa gaveta. Você nunca saberá onde a botou. Quando acompanhar um processo do seu interesse, nunca o deixe cair na gaveta de nenhum burocrata. Ele nunca sairá de lá. Gavetas são ante-salas do esquecimento.
As coisas guardadas nas gavetas são dementes, esqueceram seus nomes e perderam todo e qualquer vestígio de suas antigas utilidades. Servem apenas para ser olhadas, com aquele ar de peças de museu. Elas só fazem sentido ali, em estado de sonolência. E não gostam de ser despertadas do seu sono.
Antes de se recolherem às gavetas, as coisas perambulam por outros espaços. Prateleiras de bibelôs, estantes de livros, mesinhas de cabeceira. Passam, portanto, por um estágio probatório, em que correm o risco de cair, vergonhosamente, na lata do lixo. É certo que com essa onda de coleta seletiva, algumas delas podem ser reaproveitada num novo ciclo de utilidade. Mas já não serão nossas. Outras gavetas, mais cedo ou mais tarde, as receberão.
As coisas da gaveta confabulam para confundir nossa memória. Fazem isso trocando de lugar, escondendo-se uma por baixo da outra, criando a cada vez um nexo diferente entre si. E a cada vez que as olhamos, lembramos de uma história diferente. Uns óculos antigos juntos de uma rolha de vinho ao lado de um passaporte vencido podem nos querer insinuar uma falsa lembrança de algo que devia ter acontecido. As coisas na gaveta são testemunhos de vidas que poderíamos ter vivido.
Mais do que meus escritos, meus livros e discos, as coisas das minhas gavetas contam a vida que tive e as que perdi. Quando, daqui a milênios, vindo de um planeta distante, um arqueólogo vasculhar minhas gavetas, abismado com a inutilidade do seus guardados, concluirá: este aqui era doido ou poeta.

09 dezembro 2006

A lua, a rua, a porta




“Rua torta./ Lua morta./ Tua porta.” Leu e agradeceu primeiro a Deus, e depois ao poeta Cassiano Ricardo. Não entendeu porque o poema se chamava “Serenata sintética”. Não tinha a menor importância. Não gostava mesmo de poesia. Tudo o que precisava estava ali, naquelas seis palavras, fáceis de decorar.
Saiu correndo no meio da noite, lendo e relendo o poema que levava escrito num guardanapo. Seria fácil. Ela iria gostar. Ela gostava de poesia. Vivia dizendo que só amaria um homem que declamasse um poema pra ela. De preferência numa noite de lua, na porta da sua casa. E se o poema fosse feito para ela, mais do que amor, prometia paixão eterna ao seu autor.
Tentar, ele bem que tentou. Perdeu noites, gastou folhas e folhas de papel almaço. Mas o poema não saiu. Implorou a um amigo poeta que se dava bem com as mulheres, mas ele se negou a fazer o poema em seu nome. Só lhe restava decorar um poema e recitar na porta dela. Perderia a paixão, mas o amor lhe bastaria.
Seu coração dobrou as batidas. Lá estava a rua dela. Rua de conjunto habitacional, riscada a régua como todas as outras. Mas era a rua dela, que se fazia torta ao seus passos desordenados. A lua também não ajudava. Simplesmente não estava onde devia estar, fingindo-se de morta.
Seu coração disparou junto com a campainha. Abriu-se uma fresta e uma voz sonolenta cortou a serenata ao meio: Puta merda, a essa hora... Falou, sintética. E bateu a porta na cara dele.

07 dezembro 2006

Angélica e a manteiga


Angélica Aparecida de Souza tem dezenove anos e um filho de dois. Angélica está desempregada e seu filho tem fome. Angélica entra num mercadinho e esconde um pote de 200 gramas de manteiga debaixo do boné. O dono do mercadinho, Seu Dadiel de Araújo, viu a tentativa de furto e chamou a polícia. Azar de Angélica. Presa em flagrante, passa 128 dias no Cadeião de Pinheiros, em São Paulo. Quatro vezes o seu advogado pede a liberdade provisória de Angélica. Só consegue depois de apelar ao Superior Tribunal de Justiça.
Depois de um tempo em liberdade, Angélica é julgada e condenada a quatro anos de prisão em regime semi-aberto. Vai poder trabalhar durante o dia, só voltando à noite para a prisão. Vejam só o privilégio. Angélica, antes desempregada, agora pode sair para trabalhar. Não adianta perguntar onde. Isto não é problema da Justiça.
A Justiça tem bem mais o que fazer. Atualmente, está ocupadíssima em justificar o aumento dos procuradores da República e dos promotores estaduais acima do teto de R$ 22.111,00, o que provocará um efeito cascata arrasador sobre as contas públicas. No que tange a Angélica, a Justiça lava as mãos.
De mãos limpas também está o poder Executivo, que apenas cumpre o seu poder de polícia. Antes dele, o Legislativo já havia usado a bacia, fazendo leis democraticamente aplicáveis a todos os cidadãos.
De mãos limpas estamos todos nós, os tais cidadãos, cumpridores da lei, obedientes à ordem, salvo nos casos em que a ocasião nos convida a cometer certos delitos.
De mãos sujas, só a Senhora Angélica Aparecida de Souza. Sujou as mãos com um pote de 200 gramas de manteiga. Vai pagar na cadeia pela besteira de roubar tão pouco.

Ray Charles em Cavaleiro



Para quem não sabe, Cavaleiro é um subúrbio do grande Recife, logo depois de Tejipió, cortado pela linha de trem que vai pra Jaboatão. Era lugar famoso pela sua feira, onde se materializava uma mescla das culturas urbana, matuta e sertaneja. Foi lá que vivi minha adolescência, arriscando minha vida pelos morros e vielas atrás dos maus pagadores da Movelaria Triunfo.
A pindaíba familiar não permitia o luxo excessivo da televisão. Por isso na minha casa se ouvia muito rádio. E era um tempo de boas músicas, principalmente na sofisticada Rádio Tamandaré, com “música, somente música e apenas um anúncio por intervalo”. Foi pela Tamandaré que pela primeira vez senti a emoção primordial que me causa até hoje a voz de Ray Charles. I can´t stop loving you foi a trilha sonora da minha pobreza suburbana. Passou meses em primeiro lugar na “Passarela de sucessos” e eu podia ouvi-la duas vezes todas as tardes na movelaria. Só saía para as cobranças quando o programa acabava.
Um dia, estourou a bomba: Ray Charles viria ao Brasil. Faria um show no Rio de Janeiro, gravado pela TV Tupy. Depois o vídeo-tape seria retransmitido por todas as televisões da rede dos Diários Associados. No Recife era a TV Rádio Clube, o canal seis. Claro que eu não podia deixar de ver. O problema era: onde?
Perto da minha casa moravam uns contra-parentes de minha mãe, sertanejos não-aculturados, mas que tinham uma televisão. Sem alternativa, tive que ser enérgico. Passei lá pela manhã e, do alto dos meus quinze anos, informei que de noite ia passar um programa com um músico muito importante e eu estaria lá para assistir.
As noites de sábado eram regidas pelo Noite de Black-tie, um programa de auditório da TV Jornal do Commercio, rival do canal 6. E eu não sei como arranjei tanta moral para conter a fúria da parentalha que não entendia patavina do que aquele cego negro estava cantando. Indiferente às ameaças de ser expulso da sala, concentrei-me na voz e nos movimentos desarticulados daquele monstro sagrado, ali, em minha frente, com suas Rayletes e uma banda fascinante. Não perderia aquilo por nada.
Claro que passei a ser persona non grata naquela casa. Mas quem liga pra isso, depois de ter enchido a alma com a voz e a imagem de um deus?

05 dezembro 2006

O beijo



Não foi intencional. Ele jamais faria isso. Não era homem de ultrapassar os limites, avançar o sinal. Foi o mais puro acaso que fez o canto de sua boca tocar no canto dos lábios dela. O tamanho daquela boca, a embocadura dos lábios, por certo tinham contribuído para o acidente. Foram apresentados na saída do cinema. O amigo a exibiu como um troféu, décadas mais nova do que ele. Avançou a mão para um cumprimento, mas ela adiantou o rosto, a face já ligeiramente virada em sua direção, os olhos obliquamente fixados nos dele. Ele quis limitar o gesto a um leve encontro das faces, mas ela não somente encostou o rosto no seu. Torceu os lábios numa mesura que a deixou estranhamente bonita. Foi aí que aconteceu. Os cantos dos seus lábios se tocaram.
O encontro foi rápido. Não teve beijo de despedida. Ele evitou até o aperto de mão. Quando se viu só, não estava mais só. No canto direito da boca alguma coisa incomodava, como uma mosca. Mesmo que a impressão geral do encontro das faces já tivesse se esvaído, teimava um ponto minimamente molhado, quase uma lembrança de umidade. Quis passar a mão, mas a mão desobedeceu. Tentou passar a língua, se arrependeu. Não sabe bem porque, mas quis manter aquele ponto ali no canto da boca.
Foi dormir sem tomar banho. Nem sequer lavou o rosto. Deitou-se de costas, fora de sua posição habitual. Se deitasse virado para o lado direito, corria o risco de perder para a sempre a marca que a cada momento ia se atenuando, prestes a desaparecer.
O sono demorou. Não queria que chegasse. Se dormisse, poderia apagar para sempre os últimos vestígios daquele quase beijo. Velou até onde pôde o ponto no canto da boca por onde aos poucos foi se infiltrando a mulher da qual nem sabia o nome. Primeiro os lábios, depois o rosto, daí todo o corpo dela deslizou para dentro do seu. Não se lembra de ter dormido. Lembra apenas do corpo pesado, dolorido, inflamado que tentou arrancar da cama de manhã. Não pôde se levantar. O corpo da mulher latejava dentro do seu, como uma infecção.

03 dezembro 2006

Às armas



Quando o telefone toca, Gerônimo dá um pulo. Já não era sem tempo. Há muito a notícia era esperada. Mesmo assim, quando chega a hora, é tomado por uma intensa emoção. Um calafrio. Um sufoco na boca do estômago.
Olha com ternura para os filhos que ressonam. Beija longamente a mulher, o tempo do beijo anunciando o tempo da ausência. Dá um tapa na cabeça do cachorro e sai batendo o portãozinho de madeira.
Na frente de cada casa da vila, um homem se despede da mulher e segue os passos de Gerônimo sem dizer nada. Quando o cortejo sonâmbulo vira a esquina, as mulheres fecham as portas e apagam as luzes. Sabem que por muito tempo ficarão sem seus homens.
O batalhão segue pelas ruas, guiado pelo instinto guerreiro de Gerônimo. Levam embrulhos apertados aos sovacos. Era carga preciosa, adivinha quem vê. E não estão para brincadeira.
O suor já desce pelas caras zangadas. Estamos quase lá, diz Gerônimo. Uma esquina, um beco, uma porta fechada com luz por dentro. O homem bate e outro homem entreabre a bandeira superior da porta de dois rolos. Podem entrar.
Entram mudos. Fazem um semicírculo frente a frente com outro formado pelos que já estavam lá. Fixam os olhos na mesa que os separam, pintada de verde, com linhas brancas demarcando os lados opostos em que se defrontarão os adversários.
Abrem os pacotes que trazem nos sovacos. Aparecem caixas muito bem cuidadas que guardam as armas com que se darão os combates. Estão prontos para começar o campeonato anual de futebol de botão.