29 março 2011

A crônica


Acho muito engraçado certos editais de concursos de literatura que exigem crônicas inéditas. Que se guarde um conto, um romance ou mesmo um poema na gaveta para tentar a glória de um primeiro lugar no mais profundo cafundó do judas, tudo bem. Mas guardar uma crônica por mais de um dia é a mais pura perda de tempo. A crônica é feita para ser jogada fora com o jornal em que for impressa. No máximo, alcançará o mérito de embrulhar peixes na feira.

Drummond dizia que suas crônicas eram como croissants servidos no café da manhã. Uma coisa gostosa, mas rapidamente digerida, dando lugar aos alimentos mais sólidos servidos nas páginas de economia, política ou policial.

Cony, por sua vez, concebendo o romancista como um peixe de águas profundas, que porta sua própria luz, compara o cronista com um peixinho de aquário que enfeita a sala.

Ninguém escreve crônicas pensando na eternidade. Escreve-se da mão pra boca, num sentido de urgência que não permite contorcionismos sintáticos ou exibições xaroposas de erudição. Rubem Braga contava que uma leitora vivia reclamando dos erros que encontrava em suas crônicas. Dizia que ele era um escoteiro ao contrário. Todo dia cometia uma má ação contra a língua portuguesa.

Crônica guardada cheira a mofo. Se não for logo dada ao público, seja num blog, no mural da escola ou no café da manhã da família, perde a sua função de portadora de contingências. Ou então não é crônica. Será um arremedo de conto, um pretenso poema em prosa, a catarse de uma dor de corno mal curada.

Mesmo aquilo que nasceu crônica, se não conhecer de imediato a luz, perderá o direito ao título. Será uma lembrança de si mesma, como qualquer uma dessas que são publicadas em livro. Já foram crônicas. Não são mais. São apenas testemunhas dos malogros do cronista todas as vezes em que tentou registrar o efêmero de um momento nessa forma efêmera, fadada ao lixo, ao esquecimento.

22 março 2011

Teatros


Não podia ser em lugar melhor. Foi o Teatro Municipal do Rio de Janeiro que Barack Obama escolheu para falar ao povo brasileiro. O espetáculo foi perfeito. O cenário, deslumbrante, com várias bandeiras brasileiras e americanas intercaladas, como coristas servindo de fundo ao artista principal. E ele estava num dos seus melhores dias. Saudou o público em português, sem esquecer de particularizar os nacidos em alguns estados que julgou importantes, tais como os mineiros e as « baianas ». Foi comovente e surtiu o efeito esperado em boa parte da população, muito bem documentado pela televisão.

Um dia antes, porém, o chefe da nação amiga já deixava claro as suas verdadeiras intenções: vender, vender mais, vender muito, vender tudo o que os EUA têm para vender. Mal disfarçando sob o manto da presidência o seu verdadeiro papel de camelô da indústria bélica americana, Obama cochichou no ouvido de Dilma Roussef as maravilhas dos seus aviões de caça FA-18.

O Brasil está interessado em comprar 36 aviões, numa trasação avaliada em cerca de seis bilhões de dólares. O negócio é tão bom, que, antes da visita de Obama ao Brasil, outro camelô internacional, Nicolas Sarkozy, barganhou o apoio da França à candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU em troca da compra dos caças Rafale, de fabricação francesa.

Enquanto os videotas brasileiros se embasbacavam com as maravilhas de segurança e conforto dos automóveis e aviões da presidencia americana, os sessenta empresários da comitiva ofereciam seus préstimos na construção da infraestrutura para a Copa e os Jogos Olímpicos da terrinha.

E para mostrar que não estava para brincadeira, Obama fez uma demonstração prática da utilidade do seu produto. Mandou bombardear as posições estratégicas das forças leais a Kaddafi. O recado estava dado. Se o espetáculo do Teatro Municipal não foi suficientemente sedutor, ali estava um argumento mais convicente: a eficácia dos seus mimos no teatro de operações. Deve ter sido mais ou menos isto que Obama cochichou no ouvido da Dilma.

16 março 2011

A grande onda


Dentre as mais de trinta mil obras que Katsushika Hokusai deixou, a mais conhecida é a xilogravura “A grande onda de Kanagawa”, publicada em 1830 ou 1831. Ali o artista flagra o enorme contraste entre a força inexorável da natureza e a extrema fragilidade do engenho humano. Uma onda gigantesca ameaça engolir três barcos movidos a remos. Ao longe o Monte Fuji, impassível e soberano, testemunha o embate.

O artista nasceu em Tóquio, 1760, com o nome de Tokitarō, no bairro de Katsushika. Daí o nome que adotou em 1805: Katsushika Hokusai. Mudava de nome quando mudava de estilo. Dizem que teve mais de trinta nomes em sua vida.

Definitivamente, Hokusai era um artista de vanguarda, de fazer inveja a qualquer geniosinho contemporâneo. Já em 1804, durante um festival de Tóquio, pintou com vassouras e baldes de tinta um retrato de 180 metros de um monge budista. Desafiado por um Shogun a competir com artistas mais velhos, pintou, na frente do chefe guerreiro, uma curva azul no papel, pondo para caminhar em cima dela uma galinha com os pés mergulhados em tinta vermelha. Inventou que era a paisagem de um rio com folhas vermelhas flutuando. Ganhou a competição.

Exatamente por ser obra de um gênio, “A grande onda” causa espanto a quem a vê agora, depois da tragédia que se abateu sobre a terra do artista. Ali, os homens desafiam a natureza e tudo faz crer que serão derrotados. É impossível olhar a xilogravura e não sentir a angústia que a fúria das forças naturais causa quando nos ameaça de morte. É impossível não sentir a fragilidade dos instrumentos com que desafiamos as forças da natureza.

Em todos os tempos, os barcos naufragam e os artistas nascem e morrem. O Monte Fuji permanecerá soberano, alheio ao sofrimento dos homens e aos movimentos das ondas.

09 março 2011

Crônico



Pesa sobre os cronistas a acusação de só falarem dos próprios umbigos. Considero isto uma injustiça. Todos os estilos literários são umbilicais. Poetas, contistas, romancistas, bons ou maus, todos eles falam disfarçadamente de seus umbigos. Escondem-se atrás de um “eu-lírico”, de um “narrador”, de um “fluxo de consciência” experimentalista, mas, no fundo, suas atenções sempre estão voltadas para aquele botão espetado no meio de suas barrigas. Na crônica isto fica mais à vista por conta da urgência com que ela é escrita. Geralmente da mão pra boca, sem muito tempo para tapeação.
Algumas mentes mais maldosas já devem estar desconfiando dessa enrolação preambular. É isto mesmo: vou falar mais uma vez do meu umbigo.
Como faço com uma vaga periodicidade, estou dando um tempo pra bebida. É que minha festa de fim-de-ano só acabou no dia três de fevereiro. Meu fígado me deu um ultimato e cá estou eu, há um mês e uma semana sem uma gota de álcool. O que tem desta vez de diferente, é que eu estou gostando da abstinência. Ando morrendo de sono e consigo dormir a qualquer hora do dia. Com isto, a cabeça está mais leve, junto com o corpo que já enxugou uns dois quilos.
Tenho sonhado muito e me lembrado dos meus sonhos. Eles estão me levando para lugares íntimos, que reconheço como meus, mesmo que nunca antes tenha estado lá. Geralmente visito alguma ruína recoberta de mato e arbustos. São lugares antigos, de uma antiguidade irrecuperável que o tempo se ocupa em ocultar. E esta antiguidade atravessa o umbral do meu sonho e acorda comigo. É isto, enfim, o que quero dizer. O sono me faz antigar. Não é mais velho que acordo, pois velho já estou. Cada vez que acordo, acordo mais antigo. E estou gostando muito de contemplar este umbigo crônico e antigo.

01 março 2011

O pastor de enigmas




Algumas orelhas dizem que foram sessenta livros. Outras dizem que foram setenta. Um jornal arriscou dizer que foram mais de oitenta. De qualquer forma, morrer aos setenta anos e deixar praticamente uma biblioteca escrita não é para qualquer um. Eu já vou fazer sessenta e quatro anos e só escrevi uns dez. Nunca vou ser um Moacyr Scliar.
Se me perguntassem qual livro do Scliar eu gostaria de ter escrito, responderia sem a menor dúvida: “A mulher que escreveu a Bíblia”, de 1999. Todas as manhas, todos os recursos, toda a competência de um escritor estão ali, contando a história de uma mulher feia que conquista o poderoso Salomão.
O Scliar não é apenas um bom ficcionista. Colocou seu talento a serviço da saúde pública. Mas ao escrever seus textos científicos, não esqueceu que era um grande escritor. Daí o meu fascínio com a leitura de “Saturno nos trópicos”, de 2003, em que conta como herdamos a melancolia européia e o quanto tentamos disfarçá-la. Lévi-Strauss que o diga.
Os que amamos a palavra, ouvimos três vozes que nos falam do extremo sul: Veríssimo (o pai), Quintana e Scliar. É inútil insistir que estão mortos. Para mim, estão onde sempre estiveram. Em algum lugar na desordem de minhas estantes. Ali, á mão, prontos a me mostrar os mistérios da palavra escrita. Mas só para mostrar esse mistério, nunca a sua decifração. Pois os bons escritores são criadores de enigmas. Todos eles esfinges, loucos para nos empurrar penha abaixo, desesperados por não trazermos a senha. Mas como bom humanista, Scliar sabe do sofrimento de cada um de nós confrontados com os enigmas que nos lança à cara. Por isso permanece junto a nós, nos consolando em nossa incapacidade de tradução.
Morreu Moacyr Scliar, o pastor de enigmas. Mais do que isso, o pastor dos que sucumbem aos enigmas dos livros e do mundo.