28 fevereiro 2009

Morte e inferno



O deputado Luiz Couto está condenado à morte. Seu erro foi ter denunciado todos os nomes dos envolvidos com o crime organizado na Paraíba, quando presidiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito, encerrada em 2005. Foram mais de trezentos nomes apontados, entre políticos, juízes, promotores e policiais. Gente graúda que exigiu a cabeça de Luiz Couto. Sem nenhuma metáfora. Luiz Couto já teve proteção da Polícia Federal, mas a instituição achou que não cabe a ela zelar pela segurança os parlamentares. Luiz Couto que se vire. Ou morra. Depois do recente assassinato do advogado Manoel Mattos, um dos depoentes na CPI, o deputado Luiz Couto foi anunciado como o próximo da lista de extermínio. Daí, pediu novamente a proteção da Polícia Federal, mas o seu pedido caiu numa cadeia burocrática que até agora só produziu protelações. Mais uma vez, Luiz Couto que se vire. Ou morra.
O padre Luiz Couto está condenado ao inferno. Seu pecado foi ter defendido o fim do celibato e o uso da camisinha, numa entrevista ao programa “Congresso em Foco”. Por isso, está proibido de celebrar missas pelo arcebispo da capital da Paraíba. O padre Luiz Couto sempre esteve ao lado dos oprimidos e injustiçados. Suas idéias sempre contrariaram o bando mais conservador da igreja católica, que tem no atual arcebispo um de seus mais ferrenhos representantes. Nada mais natural, portanto que seja condenado à excomunhão e o conseqüente fogo do inferno.
O deputado Luiz Couto e o padre Luiz Couto não são duas pessoas distintas. Quem conhece o discurso e a prática do padre, sabe o que pode esperar do parlamentar. E vice-versa. Mas não são apenas os oprimidos e injustiçados que conhecem a coragem deste homem íntegro que se chama Luiz Couto. As forças retrógradas do coronelismo, laico ou clerical, também a conhecem. Por isso o querem morto e condenado ao inferno. Mas nós, que nos sentimos representados pelo parlamentar e incitados pelo religioso, queremos Luiz Couto vivo. E nada precisamos desejar aos seus inimigos. Estes já estão condenados pela história à morte política e ao inferno moral.

Ilustração:
William Blake - Dante's Inferno, Whirlwind of Lovers.
Obtida em www.nimbi.com

25 fevereiro 2009

Trema


Ser pai coruja é pouco. Sou tio coruja também. Esta idéia aqui é de minha sobrinha Ana Patrícia.
Ela está se revelando uma fotógrafa muito criativa. Veja mais coisas dela em

21 fevereiro 2009

Senhores e escravos


No final de uma oficina de leitura, um rapaz jogou um pedaço de papel no chão e pedi para que o apanhasse e botasse na lata do lixo. Fiquei surpreso com a arrogância da resposta: jogando este papel no chão, eu estou dando emprego a muita gente.
É com este mesmo tipo de pensamento que as pessoas jogam suas latinhas de cerveja pela janela do carro, pontas de cigarro acesas ao largo das estradas, potes usados de iogurte pelas janelas dos apartamentos e deixam montanhas de lixo nos parques e nas praias.
Passei muito tempo tentando entender como um adolescente pobre e mestiço chega a reproduzir uma ideologia típica de uma classe antagônica à sua, pois são justamente os trabalhadores pobres e mestiços que limpam a sujeira que uma minoria abastada espalha pelo mundo desde tempos imemoriais.
Entre os que sujam e os que limpam, ele já escolheu o seu lugar. Ficando do lado dos que sujam, ele pode se imaginar rico, poderoso, sem qualquer obrigação de prestar contas a ninguém dos seus atos de vandalismo. É isto o que ele quer ser quando crescer. É isso o que ele já pensa que é, em sua pouca idade. O que ele não sabe, é que não tem lugar para ele no lado dos que sujam. Todas as vagas já estão garantidas para os filhos dos sujões de hoje. Queira ou não, o seu lugar já está reservado no lado dos que limpam. E não apenas limpam, mas que trabalham no subterrâneo para fabricar, transportar e vender os produtos com os quais os outros sujarão a superfície do mundo.
Na versão pós-moderna da dialética do senhor e do escravo, não há lugar para a esperança de que o escravo tome consciência do valor do seu trabalho. Consequentemente, o senhor também não se libertará da sua estagnação que se daria ao acompanhar a tomada de consciência do escravo.
Ambos, escravo e senhor, estão soldados em um projeto de sujar e exaurir o mundo. O que nos torna a todos, enfim, servos de um sistema louco de autodestruição.


Imagem obtida em www.vivercidades.org.br

15 fevereiro 2009

Aquarius


Finalmente, no sábado passado, a lua entrou na sétima casa e júpiter se alinhou com marte. Estamos em plena era de aquário. Agora é só esperar que a paz sirva de guia aos planetas e o amor oriente as estrelas. Pois era isto o que nos prometia a já antiga canção, a mais bonita e emocionante de Hair, o musical que conquistou corações e mentes em todo o mundo.
Eram promessas feitas por uma geração que vivia a guerra do Vietnam e as ditaduras sul-americanas. Estreando nos Estados Unidos em 1967, onde teve 1918 apresentações, Hair foi recebido a mão armada em outros países. Depois da primeira apresentação no México, a peça foi proibida pelo governo. Os atores, ameaçados de prisão, deixaram o país às pressas. Encenado no Brasil em plena vigência do AI 5, Hair estreou em São Paulo depois de uma dura negociação com os censores. As várias cenas de nudez foram reduzidas a uma única e rápida exposição em que os atores não podiam mexer um dedo. Também foram proibidos de dançar em cima de uma bandeira dos Estados Unidos, como se fazia na versão americana, tendo de se contentarem com um lençol branco.
Passaram-se mais de quarenta anos. É claro que os tempos são outros. A guerra do Iraque não manda tantos mortos para casa como a do Vietnam e as ditaduras do cone sul são coisas do passado. Talvez ainda nos seja permitido sonhar com um tempo de harmonia e compreensão. Um tempo abundante de simpatia e confiança. Tempo sem mentiras ou escárnios. Em que possamos sonhar com visões douradas e a revelação do místico cristal. Pois é isto o que nos promete a canção. Este é o espírito da verdadeira libertação.
A crer nos astros, estamos assistindo o advento da era de aquário. A crer nos antigos poetas, a paz guiará os planetas e o amor orientará as estrelas. Eu lembro dos meus cabelos longos e insisto em sonhar o velho sonho impossível.

Imagem obtida em: LIFE

O garanhão sem memória



São umas insensatas. Escrevem para mim sem se importar se minha mulher ou minhas filhas têm acesso à minha correspondência. Falam abertamente de coisas que fizemos juntos das quais se dizem saudosas e ardentes de desejo em repeti-las. E para que não reste dúvida quanto às minhas proezas, todas elas mandam fotos comprometedoras que me nego a ver. Vejam o que me diz uma certa Lu:
“Oi, eu falei que ia tirar umas fotos especiais pra vc.. separei essas ai so pra vc, o resto está no anexo. depois manda um email dizendo o que achou tá bebê ! Agradeço desde já por tudo que aprendi contigo =* Beijosss...”
Claro que há uma certa contradição em me chamar de bebê e ao mesmo tempo agradecer pelo aprendizado. Mas pela grafia do Beijosss, acho que trabalhei muito bem.


Queixosa, Vera implora por uma migalha da minha atenção:
olla!! Por que você faz isso comigo? Passou por mim ontem e fingiu que nem me viu... será que poderíamos conversar um pouco? Não sei se você lembra dessa foto que tiramos juntos. Espero que goste um pouco de mim, nem que seja pela nossa amizade. Beijos, te adoro muito. !! Bejos!”


Lacônica, Vick faz um mea culpa mas não esquece a fatídica fotografia:
“Oiiii...!! tudo bem? Pois é eu sumi... mas eu não esqueci daquela nossa foto. Você lembra né?! Pois aqui está a foto que você tanto queria...Abraços!!!”


De riso frouxo, Tamira é das mais perigosas, pois não conhece só a mim. Fico pensando quem são esses “todos”:
"Acabei mandando a foto kkkkkkkkkkk... Mais ver se manda uma tbm viu??? Ficou show D+, manda um abraço ai pra todos, e não esquece de mandar uma tua! ;) Se não tiver gostado muito, manda um recado que te mando outra!"

Por fim, Rafinha revela não possuir apenas uma foto, mas um álbum completo com as coisas que fizemos juntos. E o que é pior, sugere que eu mesmo tenho uma coleção semelhante que, juro, não sei onde possa ter guardado:
“Oieeee, quanto tempo heim... nada de me responder.. porquê?!
Olha oque o pessoal fez com as fotos da gente... ficou muito legal :)
Achei a maior graça... Porque você nao faz um destes?
Eu adoreiiii!!!Abraços, e uma ótima semana!”

Pelo nível do português, vocês devem estar imaginando os lugares em que procuro companhia para minhas horas de tédio. Pois aí é que está o mistério. Toda essa fama, todo esse desempenho, toda esta documentação, e não sou capaz de me lembrar de nada do que ando fazendo com essas moças. Definitivamente, preciso deixar de beber.

08 fevereiro 2009

Um dia, um homem...



Minha mãe se casou com um homem bonito, de coração brando e alma de artista. Fazia teatro, pintava aquarelas, escrevia poemas. A casa de vila, num subúrbio perdido, estava sempre com o aluguel atrasado. Minha mãe sustentava a casa dando aulas de inglês. Meu pai passava as manhãs dormindo, acordava para o almoço e saía no meio da tarde. Voltava de madrugada, de olhos vermelhos e um sorriso perdido na cara. Minha mãe dormia sentada na cadeira de balanço, comigo no colo. Mais tarde me contou. Não esperava meu pai. Um dia, sonhava, um homem entraria pela porta e a levaria para uma casa bonita, com um jardim florido, numa rua com árvores e um carro na porta.

Minha avó se casou com um homem de bigode, sério e calado, dono de um armazém sortido na rua principal de uma cidade bonita do interior. Meu avô fechava o armazém às seis da tarde, jantava calado e saía para jogar baralho. Um dia, chegou afobado, quase de manhã. Acordou minha avó e ordenou que arrumasse a mudança. Tinha perdido o armazém e a casa no carteado e assim que clareasse ia entregar as chaves para o ganhador. Se mudaram para uma casa de taipa no fim da rua da Lama. Minha avó passava as noites acordadas olhando a porta. Mais tarde, contou pra minha mãe. Não esperava meu avô. Um dia, sonhava, um homem bonito viria e sairiam pelas ruas de mãos dadas, primeiro para o cinema, depois tomar sorvete, depois namorar na praia, depois morrer de amor.

Minha bisavó casou com um homem sem sorte. Estava sempre no lado errado da vida. Entrou na Coluna Prestes quando ela passou pela Paraíba, em 1926, de volta do Piauí. Fugiu quando o último recurso da tropa era se refugiar na Bolívia. Minha bisavó ficou dois anos esperando a volta do herói. A sorte lhe sorriu um pouco quando o marido foi trabalhar numa torrefação de café. Já era quase gerente quando veio a crise de 29 e o preço do café começou a desabar. A torrefação quebrou, o casal se mudou com os filhos para o Recife. Ainda viviam como remediados com a sobra das economias. Dava ainda para pequenos luxos, como tomar uma gasosa na Confeitaria Glória, no bairro da Boa Vista. Estavam justamente lá, num fim de tarde friorenta de julho, quando um homem desesperado gritou “João Pessoa” e atirou. Um tiro foi o que bastou para lembrar todo o sofrimento nas marchas da Coluna. Meu bisavô saiu correndo e foi preso como cúmplice do assassino. Minha bisavó voltou para a Paraíba com os filhos e desde então deixou de dormir. Passava as noites vigiando os passos na rua. Mas não esperava o marido. Ela mesma contou para minha avó. Um dia, sonhava, um homem de sorte bateria em sua porta com um buquê de flores e um anel de brilhantes. Tomariam um navio e viveriam felizes em Paris.

A mãe de minha bisavó foi roubada de casa por um fazendeiro. Quando ele perguntou se ela queria fugir, não disse que sim nem não. Mas deixou a janela do quarto aberta. Qualquer coisa seria melhor do que aquela vida miserável de trabalhar no eito. Foi morar numa casa grande, quase uma tapera. O pai do seu marido tinha sido rico, dono de escravos e muitos pés de algodão.Mas veio a Lei Áurea, veio a república, veio a praga que acabou com o algodoal. Agora seu marido ficava ali, sentado na espreguiçadeira, fazendo contas de quanto estaria colhendo se ainda estivesse plantando. A mulher ficava sentada nos batentes da entrada, olhando os rachões da terra até que os olhos ardessem com tanta luz. Aí então, os fechava para sonhar que um dia, um homem vestido de couro viria buscá-la em seu cavalo. E sairiam a galope até um lugar coberto de grama verde, cortado por um riacho perene, onde se amariam rodeados de bois e passarinhos.

Não sei onde começa esta lenda do homem que virá. Talvez ela se perca entre as lanças de Alcácer Kibir, onde mais de um homem desapareceu, além de Dom Sebastião. Só sei que esta espera acaba aqui, comigo. Se algum homem quiser me encontrar, que venha sem que eu o espere. E não me queira levar para lugar nenhum. Pois estou bem onde estou, contente com quem sou. Tenho meus sonhos, claro. Mas o tempo em que vivo não comporta lendas.

Ronaldo Monte
Clube do Conto, 07 de fevereiro de 2009.
Imagens obtidas em:
http://www.terrabrasileira.net/ (vaqueiro)
zig.blogs.sapo.pt (homem com flores)
br.geocities.com (casa com jardim)
redeparede.com.br (mãos dadas)

06 fevereiro 2009

Eu avisei

Lula critica pacote 'protecionista' de Obama
Em entrevista exclusiva à BBC, presidente sugere que proposta dos EUA fere regras da OMC.

UE e Canadá criticam protecionismo em pacote de Obama
Cláusula de preferência por produtos americanos causa apreensão internacional.

É só olhar a quarta postagem abaixo.

01 fevereiro 2009

Passageiros



Somos todos passageiros. Nem o motorista e o cobrador escapam. Estamos todos de passagem. Indagora mesmo, passamos de um ano para outro. A rigor, nada de mais aconteceu na ordem natural das coisas. Acontece que não somos naturais. Somos animais de cultura. Temos alma, temos memória, sentimos saudades e alimentamos a teimosia da esperança. Por isso precisamos marcar a passagem do tempo. Para construir um elo entre a saudade e a esperança.


Somos todos passageiros. Um dia, todos passaremos. E conosco passarão todo o júbilo e todo sofrimento, todo o amor e toda ira que julgávamos eternos. Sejamos, pois, pacientes. Mergulhados no rio do tempo, deixemos que ele nos lave de toda pretensão de eternidade.

Somos todos passageiros. Viajamos no bojo de uma nave que nos leva por um caminho invisível e sem estação de chegada. Da janela vemos o sítio infinito por onde vagamos e nos damos conta do quanto somos miúdos. Do quanto somos frágeis e desamparados. Por isto inventamos mitos, alimentamos heróis, criamos lendas, fazemos poemas, construímos cidades.
Somos todos passageiros. E sabemos que a qualquer momento a nossa viagem pode chegar ao fim. Por isto somos melancólicos, sofrendo por antecipação uma perda que sabemos inevitável. Toda separação é dolorosa. Todo desaparecimento é temível. Por isto erguemos monumentos. Por isto tiramos fotos, por isto criamos na memória uma história sem mácula, em que somos todos bons.

Estamos em trânsito. Trazemos de nascença a marca da transitoriedade. Transitemos pois com esperança para o ano que começa. E que não tenhamos motivos para ter saudade desse ano que já passou tarde.

Ronaldo Monte

Imagem obtida em: www1.folha.uol.com.br