09 julho 2018

Manual Prático de desaparecimento







Como você deve saber, o meu "Manual prático de desaparecimento & outros poemas" foi lançado no dia 18 de junho com uma característica mito especial: o livro não compareceu. 
Por mais que eu o adulasse, ele se recusou a deixar o depósito de cargas da Gol, talvez por acanhamento, talvez por cansaço pela longa viagem de São Paulo até João Pessoa.

Agora, devidamente adaptado às prateleiras do meu escritório, o "Manual" relutou em comparecer ao seu segundo lançamento,nesta terça-feira, 10 de julho, às 19h30, na Budega Arte Café (R. Arthur Américo Cantalice, n.197, Bancários). Depois de muita adulação, resolveu, por fim dar as caras (ou as capas).

Não se assuste com o título do livro. Ele reúne poemas cuja temática principal é a morte, mas não a vida após a morte ou simplesmente o medo dela, mas as experiências afetivas que a morte evoca em nós. E para aliviar o peso do tema. temos os "outros poemas" que pretendem acalmar os nervos dos mais  melindrosos. 

Aguardo você com carinho e uma conta enorme a pagar para a Editora Patuá.

Ronaldo Monte
                               

01 janeiro 2018

Frações da eternidade



Na véspera do ano novo, decidimos antecipar a virada para as nove da noite, aqui em casa. Para justificar o sono coletivo, cada um deu sua opinião quanto à convenção de se comemorar a passagem do ano à meia-noite do dia 31. Feito isto, passamos dos aperitivos para o filé ao molho madeira regado a um bom vinho uruguaio. Depois veio um espumante nacional honesto para um brinde sem as promessas ridículas que não resistem às primeiras horas do ano novo.

Como o assunto da convenção do calendário ainda insistisse na mesa, me ocorreu uma frase de efeito que me pareceu pomposa para a ocasião, mas decidi pronunciá-la assim mesmo: “o ser humano ainda não está preparado para a eternidade”.

Um dia depois, a frase ainda me ocupava a cabeça. E com ela vieram as ideias correntes sobre a necessidade que o homem sente de fracionar o tempo. É isto: precisamos de separar o tempo em fatias para poder suportar a sua passagem. Meu filho tem um amigo que fica agoniado vendo um relógio de parede em que o ponteiro dos segundos desliza direto, sem se deter em cada traço do mostrador. A grande maioria de nós, mesmo sem a mínima noção do que se trata, acredita piamente no uso do carbono para determinar a idade dos fósseis pré-históricos. Como se sabe, a famosa Lucy nasceu a exatos três milhões e duzentos anos.

Pois é. Não nos contentamos apenas com a contagem miúda dos nossos anos vividos por aqui. É preciso recuar o mais que possível, é preciso avançar até os limites da ficção para garantirmos que os anos se seguirão uns aos outros, com suas estações sucedendo-se rigorosamente.   

Só Drummond cansou de ser moderno, querendo então ser eterno. Nós, o resto dos mortais, não suportamos a eternidade. Mesquinhamente, medimos o tempo baseados no percurso individual desde o nascimento até uma morte longínqua e hipotética. Esquecemos que cada dia, cada mês, cada ano, é apenas uma fração da eternidade a que estamos condenados como espécie, como matéria, como poeira cósmica. Queiramos ou não, estamos condenados à eternidade.


Foto recolhida em 

https://herancajudaica.wordpress.com/2015/09/23/tempo-e-eternidade/

26 dezembro 2017

Incitação ao crime

Um casal de sobrinhos veio da Itália passar o natal com a gente, em Cabedelo. Ele, mestre de capoeira radicado por lá há uns quinze anos. Ela, filha legítima do salto da bota, trabalha com informática, fala umas cinco línguas, engraçou-se com o mestre e pratica muito bem o jogo de angola. 

No dia 25, fomos tirar a ressaca na Praia Formosa, e tivemos a recepção de um carro com a mala levantada gritando palavrões ao ritmo do mais bravo pancadão. A sobrinha já havia se estarrecido com o volume do som que emanava de várias casas da vizinhança, abafando a trombeta do anjo que anunciava o nascimento do cristo. 

É muito difícil explicar para um estrangeiro esta faceta da cultura brasileira. Pois todos sabemos que ela não é exclusiva das classes menos favorecidas ou iletradas.  Aliás, quanto maior o carro e mais sofisticado o equipamento de som, maior é a barulheira e o teor pornográfico das músicas.

Já caía a noite do dia 25 quando, encerrando os trabalhos, alguém decidiu abrir uma Coca Cola. De repente, revelou-se para nós o segredo da altura de todos os sons do País. Estava ali, no rótulo vistoso da "água negra do imperialismo" a ordem:"vamos acordar esse prédio". A frase é atribuída ao Luan Santana, um dos expoentes máximos da idiotice musical brasileira. 

Podemos até ser complacentes com a pobreza cultural e ética do Luan. Mas não dá para perdoar que uma multinacional como a Coca Cola, que atinge milhões de pessoas com as suas mensagens publicitárias, veicule em sua embalagem uma incitação clara ao crime.
Crime, sim, pois acordar os moradores de um prédio com um volume de som ensurdecedor é crime ambiental, previsto no Código Penal. 

Ainda bem que a idade me impede de continuar bebendo Cuba Libre. Senão, a contragosto, deixaria de misturar ao rum com gelo e limão uma bebida que estimula em seu rótulo um crime hediondo contra nossos tímpanos.    


29 dezembro 2016







Para algumas tribos indígenas brasileiras, anhanga pode ser entendido como alma velha, as almas dos mortos que vagam pelo mundo. Para alguns ramos da Jurema, anhanga nomeia tudo que é velho, inútil, tudo o que não presta e deve ser jogado no lixo.
Em outra acepção, Anhangá é o protetor dos animais da floresta, castigando os caçadores que matam por prazer, para além da satisfação das suas necessidades. Sua fúria é extrema quando alguém mata um filhote que mama ou uma fêmea grávida ou que amamenta. Assim aproxima-se de Oxossi, orixá protetor das caças, ele mesmo caçador, que também castiga os que matam a caça por prazer.
É bom lembrar que o ano que começa é regido por Oxossi e sua mulher Oxum, a deusa das águas doces e das cachoeiras, a bela provedora do amor e da fortuna.
Vamos deixar nosso pensamento brincar com estes mitos e imaginar que o ano novo nos livre de tudo o que for anhanga, tudo o que for velho e inútil, tudo o que vaga sem ter mais lugar nas nossas vidas, no nosso mundo. Coisas, pessoas, ideias, tudo o que for anhanga, deve ser jogado fora. Isso inclui os trastes que entulham nossas casas, os políticos que infernam nossas vidas, os fundamentalismos que destroem nossos esforços de fraternidade.
Ao mesmo tempo, vamos esperar que os dois protetores da caça, Anhangá e Oxossi castiguem todos aqueles que acumulam além de suas necessidades, os que roubam, que saqueiam, que corrompem e se deixam corromper.

Por fim, deixemos que Oxum, essa força agregadora, inspire o amor entre nós, para irmos além do nosso egoismo, em direção ao próximo, não importa a distância em que se encontre. 









26 dezembro 2016

Os teimosos da esperança





É tempo de esperança. Por mais que queiram que nos desesperemos, sejamos teimosos, tenhamos esperança. Por mais que queiram que cada um  salve o próprio umbigo, sejamos teimosos, sejamos solidários. Esta qualidade de que tanto se fala, a solidariedade, é a mais difícil de ser exercida, pela simples razão de não ser natural do homem. Ela tem de ser construída racionalmente. É muito mais fácil dividir o mundo em os nossos e os deles do que cuidar dos próximos e dos distantes indistintamente.    


Vivemos uma epidemia fundamentalista. E  todo fundamentalista quer  voltar a uma suposta  época de ouro, em que o mundo obedecia a uma lógica perfeita de distribuição de poder, onde todos viviam em perfeita harmonia, desde que obedecidas regras rígidas de subordinação e privilégios entre castas, etnias,  gêneros e gerações. É só olhar para o mundo para ver até onde nos tem levado os vários tipos de fundamentalismo em vigor.

Pode soar estranho eu ficar aqui falando de esperança depois de um ano em tudo avesso a qualquer pretensão de otimismo. É que o tempo me ensinou a pensar um pouco mais além da minha ínfima existência. Trump não é para sempre, Bashar al Assad não é eterno, o Estado Islâmico por certo terá um fim, Putin um dia baterá as botas.  Os bandidos tupiniquins também terão o destino que merecem. Nós, os teimosos da esperança, somos eternos.  Temos todo o tempo do mundo para construirmos um mundo solidário.   

01 dezembro 2016

Sem remédio



Os serviços de entrega de medicamentos excepcionais da Paraíba estão desabastecidos. Isto significa que centenas de pessoas simplesmente correm o risco de morrer, pois esses medicamentos, em sua maioria não são encontrados no mercado. E os que são, custam os olhos da cara. Eu mesmo dependo de um injetável que custa noventa reais cada unidade. A três por semana, chegamos à soma de um mil e oitenta reais por mês. Como é que fica quem ganha salário mínimo?  
Chego à conclusão de que não é preciso esperar pela aprovação da PEC do teto orçamentário para assistir ao desmonte dos programas de proteção à saúde. Foi só o Temer se sentar na cadeira da Dilma para começar a esculhambação. Falo isto do alto da minha patente de paciente renal crônico que sente na pele (nos rins) os efeitos desse descaso. Desde julho que não consigo retirar minha quota de Renagel, um remédio importado crucial para o controle do cálcio no organismo. Estou me virando com um medicamento que só parcialmente substitui o original, me colocando em risco de descalcificação.  
O que dói na alma, entretanto, é a expressão de desamparo das pessoas que encontro no guichê do dispensário. São pobres, em sua maioria. Uma parte deles se desloca com dificuldade, maltratada pelo transporte público de má qualidade. Alguns moram em outras cidades, acordando de madrugada para se submeter ao calvário dos desvalidos.    
De minha parte, estou tentando desvendar o labirinto burocrático que leve aos responsáveis por este crime contra a população. Mas é enorme a dificuldade para obter um simples número de telefone. Preciso de ajuda.

  






11 dezembro 2015

Enquanto os jabutis cochilam




Agora, que os jabutis cochilam, deixem-me aproveitar o silêncio provisório para falar um pouco sobre a dona deles. Sobre a generosidade da dona deles. Muita gente sabe que é impossível sair de junto de Valéria Rezende com as mãos vazias. Você pode estar apenas de passagem para um visitinha, ou encontrar com ela por acaso numa esquina. Valéria terá sempre alguma coisa para dar. Sua sabedoria transborda em cada frase. O vigor da sua voz e a precisão das expressões deixam marcas indeléveis em quem a vê e escuta. O primeiro encontro com Valéria ninguém esquece.
Valéria é dessas pessoas que não sabe negar uma mãozinha a quem precisa. Seja lá o que for. Mas o que ela mais gosta de fazer é ajudar a quem gosta de escrever. E disso é testemunha qualquer membro atual ou antigo do Cube do Conto da Paraíba. Eu mesmo sou um beneficiário da sua generosidade. Foi ela que me indicou o caminho para a publicação do meu primeiro romance,  Memória do fogo, na coleção Fora dos eixos, da Objetiva. Foi ela também que incluiu meu segundo romance, A paixão insone, na coleção Latitudes que coordenou para a Mombak.
Ouvir Valéria falar de seus projetos literários é de perder o fôlego. Não se sabe de onde vem tanta inspiração, tanta vitalidade. Não se sabe também de onde vem o tempo para tamanha voracidade de leitura. Sabe-se muito menos como cabem tantas vidas na vida de uma só mulher.
Agora, que os jabutis cochilam, que amortizaram os ruídos da festa, é hora de chegar devagar junto de Valéria e dizer, com a voz mais amiga que a amizade me permitir, que a maior prova da sua generosidade é este sentimento de que estes jabutis também são meus. Também são de todos aqueles que alguma vez saíram de mãos cheias de junto de você.

02 dezembro 2015

Ora, direis...



Olhar estrelas. O que pode haver de novidade em um hábito tão antigo quanto a existência da espécie humana sobre a terra? Eu vos direi, no entanto, que esta noite eu vi as estrelas de um modo tão novo, que nem me lembro quando as vi assim pela última vez.
Deixem-me explicar. Desde os onze anos carregava comigo uma miopia que incorporou os óculos de forma irrevogável ao meu rosto. Com o passar do tempo, a esta miopia veio se incorporar um processo de formação de catarata que aos poucos foi me esmaecendo a visão. Acontece que decidi operar as tais cataratas, e, junto com elas, corrigir a minha boa e velha miopia.
Só quem passou por um processo semelhante sabe o espanto que causa a recuperação da visão nítida das coisas. Passei a ver o mundo em HD. Mas o que mais me impressionou foi notar que as coisas ganharam um brilho diferente. A luz do sol ficou mais clara e reluzente. Até as lâmpadas perderam o tom amofinado e se tornaram brancas as que eram brancas e amarelo brilhante as que eram apenas amarelas.
Mass o melhor de tudo aconteceu agora de noite. Apaguei todas as luzes do terraço e do jardim e olhei para o céu. Lá estavam elas, as estrelas, nítidas, claras, com o brilho azulado que há muito eu não via. Lá estavam as Três Marias, mais para o lado o Cruzeiro do Sul, mais a baixo o avermelhado Marte...

Ora, direis, que besteira, olhar estrelas. Bilac ao menos as ouvia. Mas o jovem Olavo era vesgo. Talvez a sua vaidade não permitisse que olhasse o céu, para não expor sua assimetria às donzelas na calçada da Colombo. Hoje eu vi as estrelas e elas piscaram para mim. E só não foram além desse gesto cúmplice para que vocês não pensem que eu perdi o senso.     

05 outubro 2015

Desrefúgio




















migrante sem refúgio
sem porto onde ancorar
meu desespero

barco em deriva
pés sem descanso
olhos sem mapa

vagar
tropeçar
cair

ser o outro
sem outro

ser a margem
sem ponte

e sem outra margem


Imagem obtida em oactivista.com


05 agosto 2015

Dôra, minha irmã



Eu já disse uma vez que meu nome é Ronaldo Monte Limeira. Eu e Dôra somos irmãos na dor e exercemos o ofício perverso de transformar essa dor em beleza.
Eu e Dôra brigamos muito durante o tempo em que convivemos. Mas vivemos sempre momentos fraternos em que pude expressar o meu amor e a minha admiração pelo seu trabalho. São alguns desses momentos que quero lembrar aqui.

16 dezembro 2013

Um pouco mais de Dôra



Ela guarda a dor em seu nome, mas a dor não demora em sua alma. Ela reparte suas dores com quem as merece: todos nós que sofremos e fazemos sofrer. Ela é Dôra Limeira, a que dói e dá frutos. “Cancioneiro dos loucos” é o seu mais novo fruto.  E dói.
O que dói em Dôra são as dores das putas, das bichas, das mal-amadas, das desamadas. As dores das velhas, das loucas, das aleijadas. As dores dos homens que perdem, que batem, que cheiram mal.
“Cancioneiro dos loucos” foi publicado pela Idéia, de João Pessoa, com recursos do FIC da Secretaria de Cultura do Governo da Paraíba. Divide-se em duas partes. “Cantigas lacrimosas” concentra contos inspirados em velhas canções de amor e desespero. “Lamentos de porta em porta” é o que o nome diz: cada porta de casa guarda um lamento por um filho morto, um sonho desfeito, uma mutilação...
Quem conhece os livros anteriores de Dôra já sabe o que esperar deste “Cancioneiro”. Contos curtos, quase sem enredo, instantâneos das vidas comuns que precisam de pouco para viver suas tragédias. O mundo em que vivem tudo provê para que sofram pelo simples motivo de estarem vivos.
Os leitores de Dôra também não se espantarão com o seu estoque de escatologias. Seus personagens sangram, vomitam, se mijam, se cagam e fedem todos os fedores que o muito sol e a pouca água podem fazer feder.
O leitor atravessa o livro com um embrulho no estômago e respira aliviado quando vira a última página. Então, pergunta-se ao leitor: porque não largou o livro no meio? Porque suportou até o fim esta ânsia de vômito?  A resposta é simples: é impossível deixar de lado aquilo que nos pertence. O leitor se deixa seduzir pelo texto de Dôra porque ele lembra que somos feitos dessa matéria. Se somos diferentes em nossa aparência externa, ninguém conseguiria identificar as nossas tripas se as vissem expostas no açougueiro. Somos também iguais nas sombras que engendram nossas almas. Um pouco mais, um pouco menos, todos cheiramos mal. São testemunhas disto nossos sonhos, que nunca acabam bem e sempre nos geram angústias.
Foi para nos lembrar disto mais uma vez que Dôra escreveu seu “Cancioneiro dos loucos”. Nas mãos dos leitores, portanto, um pouco mais de Dôra, um pouco mais de dor.       


                                                       Ronaldo Monte.


                                                     

14 abril 2010

Dôra, a comendadôra

O filho de um fazendeiro foi eleito governador do Lions em sua cidade. O velho pai pergunta ansioso:- Quer dizer que a gente agora pode prender os inimigos?
Pode não, meu pai.
- Mas mandar soltar os amigos a gente pode, não pode?
- Pode também não, meu pai.
- Então, pra que diabo serve ser governador?
A minha amiga Dôra Limeira acaba de receber, da Câmara Municipal de João Pessoa, a Comenda Cultural Ariano Suassuna. É a minha vez, então, de perguntar: pra que serve ser Comendadora?
Em primeiro lugar, serve pra enfeitar. Dôra ficou imponente com aquela medalha enorme enfeitando seu colo. Parecia uma Super-Filha-de-Maria.
Em segundo lugar, serve para deixar vaidosos todos que gravitam em torno dela. Irmãos, filhas, netos, futuro bisneto e a montanha de amigos, todos nos sentimos agraciados na pessoa grandiosa de Dôra Limeira.
Em terceiro lugar, serve para lembrar a nós todos que sensibilidade, garra e talento não tem idade nem escolhe gênero. Dôra é um exemplo vivo, vivíssimo, do que pode uma mulher lançada no mundo para nele deixar sua marca.
Dôra foi a última das meninas Limeira que conheci. Primeiro conheci Nara e Dea. Depois, vieram Ruth e Raquel. Por fim, ganhei este presente da vida: o direito de brigar com Dôra, frente-a-frente ou pelo telefone, todas as vezes em que falo com ela. Porque com Dôra, não tem refresco. Você tem que ser claro e verdadeiro. Assim como ela é clara e verdadeira. Basta ler qualquer um dos seus livros de contos para saber do que estou falando.
Eis, enfim, para que serve a Comenda Cultural Ariano Suassuna que Dôra recebeu. Para reconhecer que vale a pena viver com intensidade e se doar aos outros e à sua cidade. Para mostrar que existem pessoas que dignificam a comenda, mais do que são engrandecidos por ela.


31 outubro 2009

Os gemidos de Dôra



Tem gente que sai para se distrair, outros vão às compras ou ao trabalho. Dôra sai para ouvir a rua gemer. E sabe o que Dôra faz com esses gemidos? Escreve livros com eles. E não é somente o novo livro de Dôra que guarda os gemidos do mundo. Desde “Arquitetura de um abandono”, de 2003, passando por “Preces e orgarmos dos desvalidos”, de 2005, até “O beijo de Deus”, de 2007, Dôra não faz outra coisa além de nos contar do sofrimento que vê e escuta pelas ruas.
Mas repare que Dôra não fala de gritos, uivos ou impropérios. Ela se faz portadora do sofrimento sofrido em surdina, nos becos, nos cômodos apertados das casas de vila, nos banheiros imundos, na solidão das noites suarenta.
“Os gemidos da rua”, o mais recente livro de contos de Dôra Limeira, tem uma catinga azeda das valetas por onde escorre a podridão dos detritos humanos. Cada personagem de Dôra geme como a quem se espreme um carnegão. Sem escândalos, pois não se espera que a mão pesada alivie a força do aperto. Geme-se apenas, com a resignação de quem sabe que a dor vai piorar.
Dôra dividiu os 59 contos do seu livro em três partes: Transgressão, Desvio e Imtimidade. Não consegui adivinhar o critério que ela usou para tal divisão. Peguntem a ela. Pois, para mim, em qualquer parte em que se abra o livro, encontrar-se-á em cada personagem as qualidades da transgressão, do desvio e da intimidade. Isto porque, no meu fraco entender, estas são qualidades facilmente visíveis na própria Dôra.
Dôra cultiva a idossincrasia de usar recorrentemente em seus contos o verbo “adentrar” nos mais diversos modos, tempos e pessoas. Em quase todos os seus contos o verbo cabuloso está lá, às vezes mais de uma vez no mesmo conto. Um psicanalista apressado diria que o verbo adentrar teria uma significação fálica, revelando um desejo de agressão que teria como suporte a pulsão de morte em atividade nos porões do psiquismo dôriano. Limitado ao meu humilde papel de apresentador do livro, revelo apenas minha suspeita de que Dôra usa “adentrar” para se vingar de alguém que um dia disse que o tal verbo soava inadequado na boca de uma personagem que vivia num lugar sujo e pobre. Acontece que o tal lugar era calcado no espaço em que a própria Dôra tinha vivido sua infância. E ela, Dôra, adentrava, sim, quando vivia ali.
Convido-vos, pois, a adentrar ao livro de Dôra Limeira. Antes, porém, avisem aos familiares e amigos mais próximos que não estranhem qualquer mudança no seu modo de falar ou de andar pelas ruas. Seguramente, vocês não serão os mesmos quando saírem, gemendo, da leitura de “Os gemidos da rua”.


João Pessoa, 30 de outubro de 2009
Ronaldo Monte.

08 maio 2008

Ainda é maio

Não sei o que Dôra Limeira estava fazendo em maio de 68, ou antes e depois dele. Sei que ela tem o hábito de usar a bolsa com a alça cruzada no peito, sinal de que ela já levou muita carreira da polícia. Agora, eu sei bem o que Dôra estava fazendo no fim da tarde do dia quatro de maio de 2008. Estava participando da Marcha da Democracia, junto com a filha e o namorado desta. Quero só esclarecer que esta marcha foi organizada como protesto à proibição pela justiça de uma marcha anterior a favor da legalização da maconha. Vamos deixar a própria Dôra dizer o que viu, do alto dos seus setenta anos:
“Havia muitos jovens, muitas cores, sorrisos, brincadeiras e palavras de ordem. Era muita a energia que ali estava canalizada. Portavam e exibiam toscos cartazes em cartolinas, com mensagens escritas com pincel atômico. O que queriam aqueles jovens assim irmanados naquele momento, naquele espaço? O que diziam aqueles cartazes e faixas rústicas, algumas, podia-se ver, confeccionadas em casa? (...) Queriam eles que fossem respeitadas as suas opiniões, seu direito de ir e vir, queriam falar, dizer. Queriam sorrir, jogar fora mordaças, bradar por liberdade de manifestação.
“(...) No entanto, em dado momento, percebi um tumulto se formando em torno do carro de som. O que seria? Policiais de trânsito e policiais militares anunciaram que o carro não podia prosseguir, alegavam irregularidades burocráticas.
“Aquilo foi mesmo que jogar água fria na fervura. Mas a turma acatou, mesmo que a contragosto, fazer o quê?. A turma era gente do bem. Fariam a festa ali mesmo, em volta do carro, os microfones ligados, a música tocando, a multidão dançando no meio da rua. Não haveria a caminhada, mas apenas um protesto. Gentes sentavam no asfalto, encenavam mordaças, alguns iniciavam coros dizendo abaixo a repressão, democracia sim. Mas as autoridades só queriam truculências, tumultos. Policiais desligaram o som do carro, repuxaram fios, danificaram a instalação e fizeram um cinturão em torno do carro de som, como quem diz aqui ninguém encosta mais. Exacerbaram-se os jovens, até então muito calmos. Os policiais disseram ‘vamos levar o carro’. Os jovens disseram que não. Um rapaz se deitou na frente do carro para impedir, os policiais arrastaram o corpo do rapaz para que saísse da frente à força. Os policiais extrapolaram em suas posturas e levaram o carro embora. Vi quando os policiais espancaram um moço. (...) Ouvi impropérios, gritos de ‘abaixo a repressão’, insultos de lado a lado.
“De repente, que horror. Tropa de cavalaria invadiu a rua, os cavalos se postaram em posição de atacar. A turma se irmanou (...). O hino nacional avançou nas vozes afinadas dos manifestantes. Os cavalos ameaçaram pisotear todos. Vi repentinamente quando os animais avançaram na multidão, bombas de efeito moral explodiram. Meninos, rapazes e moças, senhores e senhoras, anciãs e anciãos correram atabalhoados para escapar das patas dos animais. Entrei em pânico, todos entraram em pânico. Algumas pessoas tentaram se proteger entrando nos bares, os cavalos entraram também nos bares, uma multidão correu para a areia da praia, tentando se proteger, os cavalos invadiram a areia galopando atrás da multidão. Eu não via mais nada, sabia apenas que precisava correr muito na areia. Finalmente, senti braços protetores em meus ombros e ouvi alguém me dizendo palavras de conforto. Era minha filha e o namorado dela falando comigo. Alguns rapazes desconhecidos também me cercaram em gestos de proteção.
Dôra está aí para nos lembrar que ainda existe maio. Que a chama que se alastrou pelas ruas do mundo em 68 ainda não se extinguiu. Ela ainda arde nos corações de pessoas como Dôra, prontas para ir às ruas com a alça da bolsa cruzada no peito, dispostas ao que der e vier.

14 julho 2015

Bilhete de amor



Acordo às oito e o lado esquerdo da cama está vazio. Levanto para os ritos matinais e encontro, entre o copo e a garrafa d'água sobre a prateleira de granito, um recado prosaico: "fui comprar banana".

Certos gestos, por mais que possam parecer banais, revelam intenções que só os seus destinatários sabem decifrar. Neste caso, o que a autora do bilhete quis me dizer foi que acordou preocupada por eu não poder comer a banana obrigatória para amenizar as minhas cãibras. Em segundo lugar, me diz que fez todo o silêncio possível para me deixar dormir até o limite do meu sono. Mais ainda, quis evitar que eu me preocupasse com a sua ausência inusitada e saísse apressado procurando por ela, sonolento, pela casa.

Em suma, o que encontrei sobre a prateleira era um bilhete revelador do mais profundo carinho e respeito pelo sono da pessoa amada. Foi assim mesmo que eu me senti. Amado e coberto de carinho, ansioso para vê-la entrar pelo portão com um prosaico cacho de bananas para me livrar das cãibras e me alimentar de amor. 


19 abril 2015

Mortos na estante


         A última segunda-feira me deixou dois mortos. Um se chamava Eduardo. Outro se chamava Günter. Eram meus amigos. Conviviam comigo em minha casa. Por isso os tratava pelos primeiros nomes. Talvez se eu disser seus sobrenomes, vocês se lembrem deles. O primeiro é Galeano. O segundo, Grass.
         Não sei se vocês ainda se lembram do intelectual de suvaco. Era o cara que, para onde fosse, carregava um livro debaixo, é claro, do suvaco. Mesmo que não lesse o livro, o seu porte era uma espécie de senha com a qual se identificava com a turma nas intermináveis conversas no bar, nas sessões de cinema de arte, nas reuniões calorosas dos diretórios estudantis.  Num certo período da década de setenta, “As veias abertas da América Latina” foi um item obrigatório nos mais ilustres suvacos da juventude brasileira.  À medida em que se passaram os anos, seu texto ficou menos furioso, sua prosa ficou mais amigavelmente solidária com o sofrimento dos homens, seus livros puderam, enfim, abandonar a região anatômica inconveniente e abrirem-se confortavelmente por mãos mais maduras. 
         Günter Grass veio bem mais tarde. Já me pegou casado, pai de filhos, com um lugar confortável para ler em casa. Não li “O tambor”, mas vi o filme, numa sessão de arte do Hotel Tambaú, de saudosa memória. Meu livro de entrada no pensamento desse intelectual pesado, considerado a consciência moral da Europa, foi “O Linguado”, seguido de “A ratazana”. Foi a leitura de Günter Grass que me reavivou a esperança socialista. Sua crítica feroz aos erros históricos revolucionários sempre foi acompanhada por um feixe de esperança na reconstrução dos valores humanos. Sua leitura nos ensina a não desistir do futuro.

         Eduardo e Günter. Mais dois amigos que me deserdam de suas companhias. Minha biblioteca continuará rica com a permanência dos seus livros. Mas a humanidade se empobrece sem a lucidez das suas vozes. 

Foto: Ivan de Paula

12 abril 2015

20 - O dono do nada


 Almeidinha - O herói de paletó

Um folhetim burocrático

                


                     Quando Dona Marli bateu a porta da repartição, eu tomei um susto, como se tivesse acordado de um pesadelo. Mas aos poucos vou me acostumando ao vazio da sala, à ausência daquelas pessoas que fizeram parte da minha vida por tantos anos. Me chamavam de Almeidinha, de um jeito que eu pensava ser de carinho. Mas agora eu consigo entender o que estava por trás desse diminutivo. Almeidinha, o ninguém; Almeidinha, o servil; Almeidinha, o capacho.
                   Agora que estou só aqui, tenho uma sensação muito grande de paz, de alívio. Esta é a minha fortaleza, onde me sinto protegido de todo o mal que queiram me fazer. Longe daquela que se fazia de minha esposa, livre do Dr. Pacheco e sua empáfia, livre do Ciço e da sua falta de tempo, livre do Joel com sua falsa dor nas costas. Livre também de Dona Marli saindo da sala do chefe com seu sutiã desajeitado, sua boca sangrenta de batom, seu cabelo desalinhado. 
                   Fecho todas as janelas, deixo todas as luzes acesas e caminho lentamente até a sala do Dr. Pacheco. Não, não é mais a sala do Dr. Pacheco. Agora será minha sala. Acendo as luzes, e me sento na poltrona giratória, macia, reclinável que agora é só minha. Experimento me reclinar e botar os pés na mesa, como tantas vezes vi o Dr. Pacheco fazer. Não gostei, achei desconfortável. Desço as pernas, me reclino com as duas mãos cruzadas na nuca. Assim é melhor. Melhor para pensar nas ordens que darei aos meus subordinados, assim que eles cheguem para o trabalho. Sr. Joel, quero aquele relatório pronto ainda hoje de manhã. Sr. Cícero, hoje o senhor vai gastar seu tempo de almoço para pagar minhas contas na lotérica. Sr. Pacheco, traga-me um café e um copo de água gelada. Dona Marli, traga papel e lápis que eu vou ditar uma nova petição ao Diretor Geral.

                   Pronto. Todas as ordens dadas, todas as providências tomadas, tenho todo o tempo livre para pensar na vida. É uma pena que minha vida tenha tão pouca coisa para pensar. De minha infância, só me lembro de minha mãe me chamando para ir à missa com ela, enquanto meus irmãos fugiam para jogar bola. Ela só me deixava em casa quando eu acordava com asma. Aí eu ficava o tempo todo na cama, lendo revista velha e tentando fazer as palavras cruzadas dos jornais. Passava o tempo todo de pijama para não piorar do puxado. Acho que vem daí a mania de usar paletó.
                   As coisas não melhoravam quando ia para a escola. Padre Guido ainda era moço e já era diretor das Escolas Reunidas da Paróquia de Água Fria, o bairro em que eu morava. Ele conhecia minha fama de bom menino que ia à missa quase todo dia e vivia me pedindo para ajudar nas comemorações da Escola. Eu era mofino, desengonçado, não tinha jeito para jogar bola na hora do recreio. Gastava o tempo livre comendo meu pão com goiabada e fazendo palavras cruzadas. É por isso que eu conhecia muitas palavras e conseguia tirar boas notas em Língua Portuguesa. Era por isso também que algumas meninas se aproximavam de mim quando era tempo de exame. Eu não me dava conta na época, mas agora fica claro que elas só se aproximavam de mim para que eu ensinasse a matéria que ia cair na prova. Foi aí que aquela Sandra foi se chegando, tomando meu tempo, impedindo que as outras meninas me procurassem para tirar suas dúvidas. Ela me levava para almoçar na casa dela para que eu fizesse seus deveres de casa depois do almoço. Quando terminava, ela inventava que ia sair com a mãe dela, ou dizia que estava com dor de cabeça e me mandava embora.
                   Mas eu me lembro muito bem do ciúme que ela sentiu quando uma menina rechonchudinha entrou no meio do quarto ano primário. Era a tal Luana que enchia a sala com o seu cheiro de suor quando voltava do recreio. Ela era miudinha, mas era a melhor levantadora de vôlei da escola. Padre Guido gostava muito dela porque ela fazia dança e conhecia muito bem os passos do frevo, do côco, do maracatu e de tudo que era dança popular. E quanto mais ela dançava, mais forte era o cheiro do seu suor.
                   Essa Luana também queria estudar português comigo, mas a tal da Sandra não dava trégua. Grudava em mim na hora do recreio e quando a aula terminava, ela só me largava quando estava perto da minha casa. Mas numa hora de recreio em que Sandra foi no quartinho, Luana chegou perto de mim e perguntou se eu ia estar em casa naquela tarde. Eu disse que sim e ela combinou de ir estudar comigo. Entrei em casa com o coração aos pulos, tomei banho, almocei às pressas e fui para a porta esperar pela menina do cheiro adocicado. Cansei de esperar em pé, sentei-me no batente da porta. Cansei de esperar na porta, fui me sentar na mesa com o caderno de português aberto no dever de casa. Tive que sair da mesa para minha mãe botar a louça da janta. Não jantei e fui pro quarto com um nó me apertando a garganta. Só não chorei porque estava muito cansado de tanto esperar.
                   Do mesmo jeito que estou cansado agora, já quase dormindo sobre os braços cruzados em cima da minha mesa de diretor. Mas vou fazer de tudo para não dormir. Padre Guido garantiu que ela viria me visitar na repartição.  E quando ela chegar, vai me encontrar aqui, único senhor deste universo vazio que ela inundará com o seu cheiro. E o seu cheiro ficará para sempre entranhado no meu paletó.



                                                 FIM   

05 abril 2015

19 – A repartição vazia


Almeidinha  - o herói de paletó

Um folhetim burocrático

      


                   Pela primeira vez na sua vida, Almeidinha acordou atrasado para ir trabalhar. Viu que já passava das oito, mas não se apressou. Deixou a mulher ferrada no sono, fez um café forte que bebeu acompanhando um pão com margarina. Só então vestiu o paletó e saiu lentamente em direção ao ponto do ônibus.
                   Bom dia, seu Almeidinha. Era a voz de Dona Marli, num tom mais amável do que o de costume. A porta da sala do Dr. Pacheco estava aberta, mas ele não estava por trás da mesa.
                   Não se preocupe, seu Almeidinha. O senhor não precisa mais responder nada ao Dr. Pacheco. Ontem mesmo, depois que ele saiu, eu mesma telefonei para a Comissão de Patrimônio e contei tudo que sabia sobre as falcatruas dele, inclusive o negócio do computador. Hoje de manhã telefonaram para ele, pedindo que comparecesse imediatamente na sala da Comissão. Uma colega de lá me informou que ele foi afastado do cargo, estando proibido de voltar aqui até que sejam esclarecidas todas as suspeitas que pesam nos ombros dele. Inclusive uns negócios meio nebulosos que ele mantém junto com aquela Jackeline, numa certa boate chamada Ilha de Lesbos.   
                   Almeidinha ouviu sem acreditar o que Dona Marli tinha contado. Ficou parado em frente à mesa dela, sem saber o que iria fazer. De certa forma, estava decepcionado. Durante todo o percurso de vinda para a repartição havia ensaiado a melhor maneira de dizer não ao Dr. Pacheco de maneira que ele não ficasse furioso e o ameaçasse com uma suspensão. Levou mais tempo ainda pensando em como agir no caso do Dr. Pacheco insistir para que assumisse a culpa pelo desaparecimento do computador. Estava aliviado, sim, mas não podia evitar uma certa decepção. Perdeu a primeira oportunidade de mostrar que não era mais um capacho.

                   Foi só então que se deu conta de que não tinha mais ninguém na repartição. Dona Marli percebeu o seu espanto e explicou que logo no início do expediente, o Ciço pediu transferência para outra repartição onde pudesse ser mais útil. O Joel, com sua eterna dor nas costas, foi procurar uma junta médica que adiante a sua aposentadoria por invalidez. E ela, Dona Marli, ia tirar uma licença para tratamento de saúde. Precisava fazer uma plástica no nariz e uma lipo que lhe devolvesse a cintura.
                   Almeidinha parou para pensar na falta de delicadeza dos colegas. O Ciço não podia ter ido embora sem agradecer todas as vezes em que sacrificou a hora do almoço para pagar suas contas. E o Joel precisava se desculpar por ter se encostado o tempo todo, com a eterna desculpa da dor nas costas.
                   Então, era isso. Nenhuma gratidão, nenhum pedido de desculpa, nenhum aperto de mão de despedida depois de tantos anos de favores e sobrecarga de trabalho. Almeidinha então se dá conta de que todos ali o tinham feito de capacho o tempo todo. Somente Dona Marli parecia ter alguma consideração com ele. Mas quando caiu em si, Dona Marli estava de pé, com a bolsa a tiracolo, impaciente com a sua presença em frente de sua mesa.
                   O senhor me desculpe, seu Almeidinha, mas eu tenho mais o que fazer. E se o senhor encontrar outra vez com a tal da Jackeline, diga a ela que pode ficar com o Dr. Pacheco só pra ela, agora que ele não tem mais a gratificação de chefia.
                   Dona Marli disse isso já caminhando em direção à porta. Sem se voltar, jogou as chaves da repartição em cima da mesa e disse que agora ele era o dono de tudo aquilo. E foi embora sem olhar para trás.


29 março 2015

18 – A ciranda do Cheiro

Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático


                  
                   Pensei que a conversa com Padre Guido fosse me esclarecer as idéias, mas saí da casa paroquial muito mais confuso do que entrei. Eu nunca toquei num copo de bebida, sempre achei que fosse pecado, mas no caminho de casa eu me sentia como se fosse um bêbado. Cambaleava no meio da rua e, para cada lado que eu pendia, aparecia uma figura diferente me chamando. Uma vez era Dr. Pacheco e seu sorriso falso. Logo depois era minha senhora com sua cara de abuso. Mais tarde era Dona Jackeline com sua roupa escandalosa. E agora tinha essa Luana que eu havia esquecido e que me aparecia com sua cara rechonchuda de menina, suas juntas de manteiga e seu cheiro de suor.
                   Demoro a enfiar a chave na fechadura. O braço tenso bate a porta contra a parede, acostumo meus olhos no escuro da casa. Não tem ninguém. Melhor assim. Caminho no escuro até o banheiro, tomo meu banho, boto meu pijama. Apanho um lápis e o caderno de palavras cruzadas e vou para o quarto. Desta vez não tranco a chave. Pouco me importa se aquela mulher vem ou não vem dormir em casa. A casa é minha, a cama é minha. Se ela achar ruim me encontrar na cama, que vá dormir de novo no sofá. Desde ontem que o lençol está lá.
                   Preciso terminar este bloco de palavras cruzadas. Não consigo começar outro exercício sem terminar o que estiver fazendo. E aqui está faltando completar uma palavra que começa com “ele” e termina com “esse”. Vamos ver qual é a questão: “ilha da Grécia antiga, famosa por sediar encontros amorosos femininos”. Aqui cabe um “e”, depois um “esse”, depois um “bê” e, por fim, um “o”. L-E-S-B-O-S. Então era isso que Padre Guido queria me dizer. Essa vagabunda – que Deus me perdoe – está me enganando com outra mulher? Minha vista escureceu e eu não me lembro mais do que aconteceu. Acho que desmaiei.
                   Acordei no meio da noite com a boca seca, precisando molhar a garganta. Tinha dormido sentado na cama, a cabeça enterrada no peito, o lápis ainda entre os dedos e o caderno de palavras cruzadas caído no chão. A lâmpada do teto ainda estava acesa. Só então me dou conta de que não estava sozinho na cama. Encolhida no seu lado, ainda com a roupa da rua, minha senhora, quer dizer, Sandra, ressonava soltando uns miados, como se cochichasse com outra pessoa. Não dava para entender, mas era claro que ela estava choramingando.  Não sabia o que ela dizia, mas estava claro de onde ela tinha vindo. Do seu corpo saía um cheiro que não era dela. Talvez fosse o cheiro de Dona Jackeline. Que me importava? Mas com certeza não era o cheiro de Luana. O cheiro de Luana era só meu.
                   De repente, me veio a conversa com Padre Guido. Sim, eu tinha de deixar de ser capacho. Tomar um atitude firme na minha vida. Isto significava que teria que sair de baixo dos pés do Dr. Pacheco e dessa estranha que agora dorme fantasiada com um cheiro alheio. Esta manhã mesmo o Dr. Pacheco ia ver com quem estava falando. Vou fazer das tripas coração, mas crio coragem para lhe dizer um não. Sei que vou tremer, gaguejar, quase chorar, mas digo não.
                   Mais difícil vai ser com essa aí, que parece dormir o sono dos justos. Que parece sonhar com uma certa ilha da Grécia antiga, onde muitas mulheres provavelmente andam nuas aos beijos e abraços. Que deve ter vindo de uma outra ilha, mais perto daqui, onde encontrou-se com a dona desse cheiro. Mais difícil vai ser o encontro com esta mulher ilha que nunca me deixou pisar na sua praia.
                   Achei melhor pra mim me aquietar, tentar dormir, mesmo envolvido por aquele cheiro misterioso que, estando em Sandra, pertence a uma Jackeline que pode ser Luana. Sandrajackeluana. O cheiro dessas três me arrasta para o inferno do meu sono sem sonhos. 

22 março 2015

17 – A dona do cheiro

Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático


                   Almeidinha não quis deixar para amanhã a conversa com Padre Guido. Saiu do trabalho na hora de sempre, amarrotou o paletó no ônibus apertado e desceu no ponto mais próximo da igreja. Ainda faltava tempo para a missa das sete, as portas da igreja estavam fechadas. Mas na pequena casa paroquial ali nos fundos as luzes deram as boas vindas a Almeidinha, uma das mais antigas ovelhas do rebanho de Padre Guido.

                   A beata que atendeu foi logo abrindo a porta, gritando para a sala de jantar que o padre tinha uma visita importante. O padre bonachão limpou as bochechas com um guardanapo de linho e mandou que o amigo se achegasse, jantasse com ele enquanto levavam uma prosa. O que traz o amigo à minha humilde casa?
                   Os olhos do visitante se encheram de lágrimas, a beata se enfurnou na cozinha e padre Guido insistiu: o que se passa com você, Almeidinha? Deve ser coisa muito séria...
                   Depois de ouvir toda a história do computador e da proposta imoral do Dr. Pacheco, padre Guido afastou a xícara para o centro da mesa, alisou com as duas mãos o guardanapo dobrado em sua frente e começou a falar com voz firme e pausada:
                   - Meu caro Almeidinha, acho que já é tempo de você deixar de ser um capacho e tomar uma atitude firme na sua vida. Tanto na repartição, com esse tal de Dr. Pacheco, quanto em sua casa, com aquela sua mulher. O senhor sabe o que é ser capacho, não sabe? É deixar todo mundo pisar e esfregar os pés em você. Deixe esse Dr. Pacheco se arrebentar, que ele deve estar com medo de que todos os seus podres apareçam junto com este caso do computador. Quanto à sua mulher, essa Sandra, você precisa botar um freio nela. Todo mundo sabe que ela não pára em casa. E garanto que na minha igreja é que ela não bota os pés. Procure saber por onde ela anda, seu Almeidinha. Procure saber onde fica uma tal de Ilha de Lesbos. O senhor sabe quem foi Safo, seu Almeidinha, a dona da ilha de Lesbos original, lá na Grécia antiga? Procure saber, amigo Almeidinha, assim o senhor fica sabendo melhor quem é a mulher que se diz sua esposa.    
                   Vendo a cara petrificada do seu amigo, seus olhos secos olhando para lugar nenhum, o corpo tremendo de cima a baixo, Padre Guido sentiu que tinha exagerado. Mas aquilo tinha que ser dito. E melhor que fosse por ele do que por qualquer outra pessoa da rua. Mesmo assim, tinha que fazer qualquer coisa para tirar seu amigo daquela prostração.
                   - Mudando um pouco de assunto, meu amigo, sabe quem passou por aqui e perguntou por você? Luana, você se lembra? Aquela rechonchudinha que estudou com você no primário da Escola Paroquial. Aquela que parecia ter as juntas de manteiga e todo mundo ficava espantado quando ela dançava o frevo nas festas da paróquia. Se lembra não, Almeidinha? Vocês pareciam tão unidos. Até na hora do recreio vocês ficavam juntos pelos cantos da quadra.
                   Almeidinha se lembrava, sim. Se lembrava principalmente do cheiro que ela tinha depois que jogava vôlei na aula de educação física. Agora ele sabia quem era a verdadeira dona do cheiro que o perseguia. Dona Jackeline era apenas uma impostora que fazia uso indevido do cheiro de Luana.

                   - Pois bem, continuou Padre Guido, ela passou por aqui querendo saber por onde andavam seus antigos colegas. Perguntou especialmente por você. Disse que sempre teve uma simpatia especial pela sua pessoa. Disse até que pensou em namorar um dia com você. Mas veio aquela enxerida da Sandra e roubou você dela. Aí eu disse que sabia onde você morava, mas ela não queria se encontrar com você junto com a falsa da Sandra. Prefere ir ver você no trabalho, onde na certa vão poder conversar mais à vontade. Ela vai ficar mais alguns dias na cidade. Disse que ia tirar um tempinho para visitar você na repartição.