27 junho 2011

Vista cansada





Às vezes me dá um certo cansaço de ver as coisas. Principalmente quando elas se repetem, sem me causar nenhum espanto. E neste mundo uniformizado, é muito raro aparecer algo que realmente chame nossa atenção. Veja a moda, por exemplo. Monte um posto de observação em qualquer lugar de um shopping e espere passar as moças. Todas elas, ou quase todas, passarão de short bem curto, sapatos de salto agulha, uma camiseta estampada e os indefectíveis óculos escuros enormes, cobrindo metade do rosto. Os moços, então, nem me falem. É um exército fardado de bermudões no meio da canela, tênis de marca, camisas de malha com uma estampa esquisita e uma frase em inglês indecifrável. Coroando tudo, um boné de aba longa que esconde as caras, acentuando a uniformidade. Claro que existem variações, mas são variações previsíveis, também ditadas pelos ditadores da moda.

Me cansa muito também ver a repetição dos fatos na televisão, no rádio e nos jornais. Violência, corrupção, desastres naturais ou artificiais. Celebridades escandalosas, motoqueiros suicidas, fugas de prisioneiros e os padres disputando venda de cd com forrozeiros de plástico.

A ciência chama de presbita a pessoa que não vê direito as coisas mais próximas. Mas não é por acaso que a palavra presbítero, com que os antigos chamavam as pessoas velhas, é usada também para designar os pastores de algumas religiões protestantes. Ser um presbítero é, ao mesmo tempo, ser experiente e capaz de tomar conta de um rebanho de almas. De certa forma, é uma pessoa que vê melhor, com sabedoria, as coisas distantes, difíceis de ser discernidas pelos mais jovens.

Gostaria muito que o cansaço de minha vista fosse devido apenas ao tempo em que gastei olhando o mundo. Mas o cansaço maior se deve ao trabalho permanente de procurar alguma coisa que me surpreenda em meio a tanta banalidade, tanta repetição. Alguma coisa que me encha os olhos, que faça descansar a minha vista cansada.

21 junho 2011

Inverno

As moças do tempo informam que o inverno começou na terça-feira, 21 de junho, exatamente às 14 horas e 16 minutos. E dizem mais: que este mesmo inverno vai nos chatear durante 93 dias, 15 horas e 49 minutos.

Não sei para que serve tanta precisão. Pelo menos aqui no litoral do nordeste, inverno é sempre um período indefinido em que a chuva atrapalha nossa praia. No mais, a temperatura baixa um pouco, o que leva alguns (algumas) extravagantes a usar a roupa de frio que estava guardada desde a última viagem a São Paulo.

Puxando pelo que me resta de memória, lembro das tardes chuvosas em que as luzes da rua se acendiam mais cedo com a chegada apressada da noite, o que dava a impressão que meu pai demorava mais a voltar do trabalho. Da janela da frente, o futuro nostálgico já se demorava vendo a água correr ligeira pelo meio-fio da rua deserta e encharcada.

No mais, tinha as férias do primeiro semestre, quando eu ia com meu irmão para a casa dos meus tios numa usina de Alagoas. Ali sim, fazia frio. A gente acordava de manhã e a serração não permitia que víssemos a parede dos fundos do grupo escolar que ficava a uns cinqüenta metros da casa. E se tiritava na volta do cinema, lá para as dez da noite. Aí ganhava sentido aquela música junina da “noite fria tão fria de junho”.

Sei que cada um tem um inverno dentro de si, pessoal e intransferível. Mas desconfio que o inverno de todo mundo é triste. É um tempo de ficar trancado em casa, sentindo o cheiro de mofo que sai das estantes e dos guarda-roupas. De vez em quando um pigarro na garganta, vez por outra o nariz escorrendo.

Com um pouco de boa vontade, porém, é possível criar alguns momentos bons no inverno. Pode ser bom assistir um filme em boa companhia. Pode-se jogar cartas ou conversa fora, dependendo da boa companhia. E em boa companhia também se pode inventar alguma coisa boa de fazer para esquentar o corpo.

15 junho 2011

Thesouro


Ela chegou na minha casa antes de mim. Desde que me entendo de gente que os dezoito volumes da coleção do “Thesouro da juventude” me olham do alto da estante do meu pai. Sempre pensei que ela ficaria, depois de mim, na estante da casa de um dos meus filhos. Mas foi com o maior pesar que descobri que os volumes de capa dura azul e miolo de papel couchê estavam cobertos de mofo. Quase todas as páginas estavam úmidas, algumas já se desmanchando ao mais leve toque.


Vocês podem muito bem imaginar a minha desolação. Cheguei a pensar em me desfazer dela. Não jogando-a fora, simplesmente. Haveria de ser com um ritual crematório digno da sua importância. Mas não tive coragem. Sob as ordens de minha mulher, duas boas samaritanas se dedicaram ao trabalho de expô-las ao sol para depois limpar todas as páginas, uma a uma, com um pano embebido em vinagre. Era como assistir o lento trabalho de uma equipe médica contra a morte de um ente querido.

Os livros ainda estão lá, no terraço da frente, arrumados em duas bacias de plástico para receber os raios generosos que o sol ofertou como uma trégua nesses dias chuvosos e friorentos. Em breve, estarão de volta ao seu lugar na estante do meu escritório. E de lá continuarão me olhando, saudosos dos meus olhos e mãos de menino que neles iam encontrar as respostas para minhas primeiras perguntas e os primeiros rumores de beleza e sabedoria que iria continuar a buscar vida a fora.

Talvez suas páginas nunca mais sejam visitadas, nem mesmo por mim. Mas é fundamental que esses livros continuem ali, me olhando do alto. Pois de toda a multidão que me guarda as costas e os flancos, eles foram os primeiros a mostrar a minha pequenez frente ao conhecimento do mundo. Muito mais que isto, eles servem para me lembrar que o mundo ainda tem muito o que mostrar aos meus antigos olhos de menino.

07 junho 2011

Gina

Para Branca, Rubens e Gesiel


Para mim, a moça da caixa dos palitos Gina era uma prova da existência da fonte da juventude. Como diz a embalagem, os palitos Gina existem desde 1947, o ano em que eu nasci. Ora, se há 64 anos a tal Gina já era uma moça feita, de seus vinte anos, como mostrava a foto, então ela deveria estar passando dos oitenta. E sempre com aquele ar de caipira saudável, os vastos dentes à mostra, como se devessem sua beleza ao uso dos tais palitos.

A curiosidade, dizem, matou o gato. A mim, ela matou uma ilusão. Fui ver no Google se existia alguma referência à moça dos palitos Gina. Existia sim. E muitas. No site de relacionamentos Orkut existem comunidades como "Eu amo Gina” e “Eu tenho medo da Gina”. Mas acontece que na vida real a Gina se chama mesmo Zofia Burk, uma das modelos publicitárias mais requisitadas em sua época. Sua foto ilustra a caixa de palitos desde 1975. São 36 anos de sorriso em nossas mesas.

Mas a carreira de Zofia terminou exatamente quando ela se eternizou na embalagem de palitos. Sua identificação com a marca foi tamanha que inviabilizou a assinatura de outros contratos. Dali em diante, ela seria apenas a Gina Palito. E não ganhou nada com isto além do cachê para a foto. Chegou a processar a empresa, em busca de uma justa participação no faturamento, mas desistiu da ação. Tocou sua vida, cursou psicologia e se tornou guia turística. E ainda guarda um pouco de mágoa por nunca ter sido convidada para conhecer a fábrica que ajudou a tornar famosa.

Depois de conhecer a história de Zofia Burk, decidi deixar de comprar os palitos Gina. Não gosto de ingratidão. Ainda mais que esses palitos estão vindo mal-acabados, quebrando fácil, soltando lascas. Pretendo voltar aos velhos palitos Monroe, achatados, macios, em sua caixa branca onde ondulava ao vento uma floresta de eucaliptos, que por certo ainda existem em algum lugar perdido da minha infância.

01 junho 2011

Esconde-esconde

A memória brinca de se esconder comigo. Certos fatos correm de mim agora, e só mais tarde ou nunca mais mostram sua cara. Esta semana mesmo, a memória me pregou uma peça. O escritor Nilto Maciel, um caro amigo virtual, mandou um e-mail dizendo que tinha postado uma crônica minha no seu blog. Fui lá conferir e tomei um susto, pois o texto estava ilustrado com uma foto da pequena Ana Torrent no filme “Cria Cuervos...”, do Carlos Saura. Intrigado, perguntei ao Nilto se ele era algum médium sensitivo pitonisa, ou se tinha algum informante dentro da minha casa, pois de alguma forma ele sabia que eu tinha comentado o “Cria cuervos...” no sábado passado, no cine-clube do Zarinha Centro Cultural. O Nilto não demorou muito para desfazer minhas suspeitas sobrenaturais. A informação sobre o filme estava justamente na minha crônica que ele havia publicado. Eu simplesmente tinha me esquecido deste detalhe.

É a idade. Só pode ser a idade, respondi para o Nilto. E acrescento aqui: para envelhecer sem muita angústia, é preciso aprender a brincar com a memória. Se sabemos que ela esconde os fatos mais recentes, podemos aprender a registrá-los de alguma forma. Ter uma agenda facilita muito. Meu Outlook me avisa com uma semana de antecedência os compromissos mais importantes. O risco é esquecer de anotá-los.

Mas se a memória falha nos fatos mais recentes, ela fica mais colorida com as coisas mais antigas. Por uma razão muito simples: a maioria dessas lembranças são invenções, brincadeiras da memória para nos esconder também o que vivemos de amargo e doloroso.
Envelhecer é aprender a brincar de esconde-esconde com as lembranças. Mesmo que algumas vezes seja uma brincadeira de mau-gosto. Mas aí já não é culpa da memória. Tem uma coisa a mais nos roendo por dentro. Daí a memória não quer mais brincar e vai embora.