26 novembro 2009

O ofício de Márcia


Que ofício dar a Márcia? É médica de profissão, mas pouco se sabe disso. O que se sabe de Márcia é o que ela faz noutro ofício. Márcia Maia é poeta. E por fazer bem o que lhe cabe, Márcia ganhou o primeiro lugar na categoria poesia dos Prêmios Literários Cidade de Manaus, em 2007, com o livro Cotidiana e virtual geometria.
Nada mais adequado do que este título em um livro feito com o rigor dos geômetras. Márcia Maia dá um demonstração da sua força poética, construindo poemas com uma exigência formal própria dos obsessivos. Cada peça é um desafio ao engenho da artista. E ela os vence um a um com a obstinação próprio aos compulsivos. Mas o rigor formal não esconde a sensibilidade da poeta. Sua delicadeza nos acolhe em cada letra. Seu bordado fino se revela em cada linha. Sua geometria é feita de traços sinuosos e harmônicos.

Se quizerem saber mais do ofício de Márcia, visitem seus blogs*, procurem seus livros. O que posso adiantar aqui é um poema em que ela mesma revela os subterrâneos de sua oficina geométrica. Apredamos com ela, senão a ser tão bons poetas, ao menos saber como um bom poeta constrói o edifício do poema a partir dos mais ínfimos grãos de areia:

Ofício
um zumbido de sentenças pequeninas
arremedo de palavras quase sílabas
que entre letras esvoaçam suas asas
no alvoroço de buscar o que dizer

entre tédio e rebuliço um sentimento
entrehabita onde o silêncio faz-se círculo
e o percorre – em cada passo o mesmo passo
volta a volta em vã vigília busca a voz

que o exprima que o decifre que alardeie
que desteça a sua teia em mel e ácido
que corrompa da placidez pura do ar

e alça vôo por entre as asas mariposas
que em palavras letras versos voam ávidas
a queimar voz e sentir na mesma luz

19 novembro 2009

Tórrido, ensurdecedor



Lá pelo começo dos anos sessenta, Núbia Lafayete cantava num bolero que briga de homem e mulher é de dois, não cabe três. Se ele está batendo nela, é porque alguma coisa ela lhe fez. Ainda hoje se diz que em briga de homem e mulher não se mete a colher. Mas as coisas estão mudando aos poucos e a Lei Maria da Penha está aí para diminuir a pancadaria. Não se tolera mais ouvir os gritos de uma mulher apanhando do marido. Mas o que fazer quando perdemos o sono com a barulheira fornicatória do casal do lado? Segundo a BBC, os moradores de Newcastle, na Inglaterra, chamaram a polícia e o casal for parar nas barras do tribunal.


Caroline e Steve se amavam com fervor, quase todas as noites. A rigor, o fervor começava po volta da meia-noite e se arrastava até às três horas da manhã. Eram gemidos ensurdecedores. Um detector de ruídos registrou níveis médios entre 30 e 40 decíbeis. Nas noites mais tórridas, o pico chegou a 47. A vizinhança não conseguia dormir. Rachel O’Connor, que morava ao lado, chegava tarde ao trabalho por conta da barulheira dos vizinhos. “Eu nunca escutei nada igual”, disse ao Juiz, “é como se eles sentissem muita dor”.


Proibida de gemer na cama, Caroline recorreu da sentença, alegando que os gemidos durante o sexo faziam parte dos seus direitos humanos. Mas perdeu. O juiz Jeremy Freedman apoiou sua decisão no nível de ruído que podia ser ouvido nas propriedades vizinhas, na rua onde o casal morava e na rua detrás de sua casa.


Pobre Carolina, pobre Steve. Se gemessem de dor por conta de pancadaria, talvez seus vizinhos fossem mais complacentes. Mas gemiam de amor, esse vício atávico que não respeita sonos ou pudores alheios. Pobres vizinhos de Carolina e Steve. Devem continuar perdendo o sono, agora por sentirem a falta daqueles gemidos ensurdecedores que lhes faziam morrer de inveja por não ter quem os amassem tão extremamente.

08 novembro 2009

Pálido azul





Quando amanheceu, olhou-se no espelho e se assustou. Estava pálido. Pálido, não. Quase azul. Morto, talvez. Mas não, morto não se olha no espelho. E, se olha, não se vê. Estava vivo, sim, mas com cara de morto. Morto-vivo. E um calafrio relampagueou seu corpo.


Não era apenas o rosto que estava azul. Os braços e os dorsos das mãos também azulavam. Seu peito também, com os tufos de pelos melados de azul. Então era isso. Não era a pele que estava azulada. Era alguma coisa azul que cobria seu corpo, como uma camada de tinta seca que se rachava.


Cheirou o braço esquerdo. Não era cheiro de tinta. Era um cheiro leve de cosmético fino. Precisava de um banho. Depois, de uma boa explicação para o azul.


Enquanto a água escorria levando o azul pelo ralo, no escuro dos olhos pintou um clarão. No meio do clarão, uma silhueta esguia de mulher. Braços estendidos, ela esperava que ele flutuasse ao seu encontro, sem deixar qualquer dúvida que podia flutuar. Ele flutuou até ser cingido pelos braços da mulher que o carregou em direção à lua.


Então ela o pousou no chão da lua. Estavam nus. E ela apanhou um punhado da areia fina da lua, derramou lágrimas azuis sobre a areia e passou suavemente no corpo do homem entorpecido. Ele queria mover-se e não podia. Era como se a pasta fina de lágrimas e lua guardasse seu corpo como uma armadura.


E foi assim que ele dormiu e acordou em casa. Olhou-se no espelho e se assustou. Estava pálido. Pálido, não. Estava azul.



Ronaldo Monte – Clube do Conto

02 novembro 2009

Sem os óculos




Ela olhou com carinho para o homem dormindo de óculos na poltrona, o livro tombado sobre as pernas. O rosto voltado contra o espaldar levantava um pouco os óculos do nariz. O queixo duplicava premido contra o peito. Ele ficava meio engraçado, assim.


Com mãos leves, ela tirou os óculos do homem e ficou por um tempo olhando para aquele rosto há tanto tempo amado. Parecia desamparado sem o escudo que protegia seus olhos do impacto direto das coisas.


A longa falta de incidência da luz do sol desenhava um círculo pálido na pele em torno das órbitas. As pálpebras deixavam à mostra uma teia de rugas invisíveis sob o véu das lentes fotocromáticas.


Ali estava o seu homem despido de suas máscaras. Mudo, ausente, vagando não se sabe por quais sonhos. Ali estava. Longe, inacessível. Mas, mesmo assim, tão seu.

Ronaldo Monte
Clube do Conto – 31.10.2009

01 novembro 2009

A "puta" da faculdade




Parece uma rebelião de presídio ou uma cena de filme em que a multidão pede a morte do gladiador abatido no circo romano... Nem presídio, nem circo. A cena se passa no pátio de uma universidade. A turba dirige sua fúria a uma aluna de vestido vermelho curto. Esse era o seu crime. E a sua condenação vinha de um coro enfurecido: “puta – puta”. Foi preciso vir a polícia retirar a moça do prédio, coberta com um jaleco. Ela corre, de fato, o risco de ser linchada pela multidão enlouquecida. Em uma das cenas filmadas por amadores, ouve-se uma voz feminina em off: “O pessoal está indo atrás da puta da faculdade”.
Tentando me afastar do misto de fascínio e horror que o episódio desperta, tento compreender a patologia social que se esconde por trás desse sintoma. O que estaria na base dessa manifestação de intolerância e violência?
Nas primeiras páginas de sua novela “Mário e o mágico”, Thomas Mann relata o episódio em que uma menina de oito anos, de corpo franzino, tira o maiô para lavar e corre nua para o mar. Logo, toda a burguesia italiana que frequentava o balneário se sente ferida em sua moral e denuncia os pais da menina à polícia. Deste pequeno incidente de intolerância, o autor deduz todo o clima belicoso que se apoderava do povo italiano prestes a se entregar à aventura fascista.
A alma italiana estava já envenenada pela versão mussoliniana do discurso nacional-socialista. Toda e qualquer manifestação de costumes estrangeiros era uma ameaça à supremacia da raça e deveria ser combatida e extirpada no nascedouro. A relação entre a intolerância dos veranistas e o ideal facista foi brilhantemente estabelecida pelo gênio de Thomas Mann.
Quanto a nós, o que temos a deduzir do episódio da universidade paulista? De saída, podemos estar diante do efeito do divórcio entre o ensino tecnológico e a ética humanista. Podemos,ainda, estar testemunhando uma exibição ruidosa da demonização do outro, qualquer outro, que desperte o que de mais vil ou execrável dormita dentro de nós. Pode ser um negro, um judeu, um muçulmano, um nordestino, um homossexual ou, no caso, uma mulher.
Vivemos num mundo em que os recursos ficam cada vez mais raros, sendo cada vez mais difícil partilhar os bens equitativamente. É preciso, portanto, criar estranhos, estrangeiros, culpá-los pelo escassez e destruí-los como indignos da partilha. Visto desse ângulo, cada um de nós, pode, a qualquer momento, ser transformado numa “puta” da faculdade.