28 dezembro 2010

Tempo dos ipês



Existe um tempo dos relógios e dos calendários, uma espécie de utensílio criado pelo homem para fixar e controlar essa coisa inefável que escorrer entre os dois pontos incógnitos de sua existência. Mas existe outro tempo que o homem contempla. É o tempo do mundo, do sol e da lua, do estio e da chuva, do verde e do cinza, do quente e do frio. Dentro deste tempo, o homem se encontra como coisa entre coisas. Seu poder é nulo. Resta-lhe apenas submeter-se ao círculo das repetições, até que ele mesmo um dia não retorne. Outros retornarão.
É dentro deste tempo fora dos relógios que se repete, todo fim de ano, no coração da capital da Paraíba, a floração dos ipês. Quase toda a população da cidade passa ali pela lagoa. Todos os ônibus a contornam. Quem tem carro, vez por outra passa por ali. Um belo dia, de fato, um belo dia de dezembro, a alma dos passantes se espanta com as copas douradas dos ipês.
Aí acontece uma mágica na cidade. Quem chega ao trabalho pergunta: vocês viram os ipês da lagoa? Quem volta pra casa, anuncia: os ipês da lagoa floriram. Quem arranja um namoro convida: vamos ver os ipês da lagoa? Os antigos amores revivem sob o teto dourado dos ipês da lagoa.
Depois vem o vento e derruba as flores mais velhas. Uma parte do ouro cai do céu e vem forrar o chão das margens da lagoa. Então, a mágica se completa. As pessoas se rendem por completo ao milagre do amarelo.
Mais uma vez é tempo dos ipês no coração da cidade. Mais uma vez, o ouro dos ipês se instala no coração das pessoas. Daqui a pouco, as folhas voltarão a ocupar o espaço das flores. Sabemos disto e ficamos um pouco tristes pela passagem deste tempo. Mas nos despedimos dele com uma ponta de esperança de que estaremos aqui quando voltar o tempo dos ipês.

Foto: Mano de Carvalho

22 dezembro 2010

Os bichos, a palha



Não importa se é mito, não importa se é fato. Crente ou descrente, nenhum membro da cultura ocidental pode ficar alheio à figura do Cristo. Principalmente às imagens estabelecidas como o princípio e o fim da sua vida terrena. Dispensemos, por hora, a imagem da solidão e do sofrimento do Calvário. Vamos ficar com a imagem da origem, aquela cena simples do menino deitado na palha, velado pelos bichos, sob os olhos dos pais. Não precisamos de nenhum recurso à divindade para compreender o que tal cena nos quer dizer. Ali está representado, ao mesmo tempo, todo o desamparo humano e as possibilidades da sua reparação.
A marca do humano é o desamparo. Somos lançados prematuramente no mundo, antes que tenhamos alcançado o nível de desenvolvimento suficiente para fazer o que qualquer mamífero consegue: erguer-se sobre as patas e buscar o peito da mãe. Deixado as suas próprias custas, o ser humano não vinga. Para isto estão ali o pai e a mãe do menino. Para fazer por ele o que o seu desvalimento não permite. Mas o que representam, então, a manjedoura e sua palha, os animais e seu silêncio? Cada um de nós pode tentar sua própria interpretação. Para mim, a pobreza do cenário serve para dizer que não se precisa de muito para estar no mundo. Para o frio da noite do deserto, está ali o calor da palha. Para as tentações do poder dos homens, ali está a humildade dos bichos.
O menino vai crescer, vai deixar seus pais, vai correr o mundo pregando uma mensagem até hoje incompreendida. E quanto mais longe estiver deste cenário de origem, quanto mais certeza tiver da sua divindade, mais perto estará da imagem final da solidão e do sofrimento. Por isso, a cada ano, devemos nos lembrar que para sermos solidários em nosso desamparo de humanos, precisamos guardar em nós o calor da palha, a humildade dos bichos.

15 dezembro 2010

O fantasma do Urso




Crematório de Vila Alpina, São Paulo. Um homem pede informações detalhadas sobre os serviços e os custos. Tira o talão de cheques do bolso e paga à vista. Quando a atendente pergunta onde está o cadáver, o homem responde: “O cadáver sou eu.”
Alguns meses depois, no dia 19 de dezembro de 1990, com 77 anos, morre Rubem Braga, o Urso, dono de sua morte, assim como foi dono de sua vida.
Hoje, vinte anos depois, o fantasma do Urso vem se instalar às minhas costas e quase não consigo dar cabo desta crônica. Cada palavra, cada frase é imediatamente comparada ao estilo do mestre, denunciando minha fragilidade de cronista. E sinto que o Urso me desdenha por chamá-lo de mestre. Mas é bom que me desgoste e tire os olhos do meu texto. Só assim consigo escrever sem o peso do seu fantasma, sem ter que adivinhar seu focinho de leão marinho se contorcendo a cada frase mal escrita.
Agora, livre do fantasma, posso falar sem preocupação do encantamento que tive e tenho ao ler as crônicas do velho Braga. Posso chamá-lo assim, pois sou seu íntimo. Pelo menos ele é íntimo de mim. Pois nada do que li dele me foi estranho. Ele sabia falar de mim de uma forma tão simples, tão humana, revelando minhas grandes fraquezas e pequenas virtudes como se eu as tivesse vendo pela primeira vez.
Nos meus momentos de solidão e sofrimento, não é aos grandes poetas e filósofos a quem recorro. São os livros do Rubem que folheio, na busca de uma tirada irônica ou mal humorada sobre as chateações naturais da vida. E nos bons momentos de minha vida, é ainda ao Braga que recorro, para que ele me mostre o quanto tudo é transitório, efêmero. E foi desta transitoriedade e desse efêmero que Rubem Braga fez a sua obra.
Quando leio um texto de Rubem Braga, tenho a certeza de que foi um homem que o escreveu. Um homem, sim. Do gênero masculino. Um homem aberto para a compreensão dos seus semelhantes e cuidadoso com as peculiaridades do feminino.
Me desculpem, mas eu tenho que terminar esta crônica. Já ouço uns passos atrás de mim e sei que o fantasma do Urso volta para bisbilhotar meu texto. Tenho que desligar rápido o computador, pois não quero sentir o seu focinho se entortar de reprovação a tanto desperdício de palavras. Nem muito menos que perceba o nó na garganta traindo o sentimento pela sua falta.

08 dezembro 2010

Passatempo




O médico demorava a chegar e a conversa corria solta na sala de espera. Os velhos temas de sempre. O trânsito, a violência, o rápido passar do tempo. Aí, uma senhora disse suspirando: minha gente, já é Natal novamente. Parece que foi ontem que desmontei a decoração lá de casa. Perdi de vez a concentração no romance que tentava ler e voltei meus ouvidos para a conversa. Todos foram unânimes em concordar. O ano passara voando.
Não consigo imaginar como um ano voa, mas tenho que concordar: o ano passou voando. Meu gesto inaugural de ano novo é o momento solene em que passo o primeiro cheque do ano. A caneta treme na mão, devido ao esforço para não escrever o número do ano passado. E parece que foi ontem que paguei a feira de verduras e frutas com o primeiro cheque de 2010.
Mas não foi só este ano que passou voando. Pra mim, passa voando a vida inteira. Faz um pouquinho de tempo que eu era menino. Caçava lagartixas com baleadeira, brincava só, transportando formigas no meu avião de baquelite dourado, trocava tiros de espoleta com meu irmão. Indagorinha mesmo era rapaz. Ouvia os Beatles, Caetano, Chico e Gil. Bebia com os amigos, varava madrugadas escrevendo versos ruins. Foi quase ontem que casei, tive filhos, comprei um fusca.
Ainda procuro conceber a imagem do tempo voando. Teria asas, o tempo? Viajaria de primeira classe nos aviões? Acredito que não. Ainda prefiro a velha imagem do tempo como um rio. Um rio que nos pega de manhã e nos entrega quando chega a noite. Um rio com suas corredeiras, suas cachoeiras, suas enchentes gordas de tempestades. Algumas vezes manso, de águas frescas e margens sombreadas. Mas sempre um rio que devemos aprender a respeitar e aceitar as surpresas do seu percurso. Um rio que passa à revelia do nosso enfado, estejamos quebrando pedras, escrevendo crônicas ou jogando conversa fora nas salas de espera dos consultórios.

01 dezembro 2010

Zeu e seu olimpo




Pelas musas começar, pois é próprio das musas louvar os feitos dos deuses. E como louvaram as musas midiáticas os feitos destes deuses de bermudas e pés de chinelo que reinavam no olimpo de vielas e valetas. Como foram fartos os hinos cantando o poder de vida e morte das divindades mulatas sobre seus súditos aterrorizados. A farra das musas enaltecendo os bondes, enlouquecendo ao embalo dos funks, entregando-se ao torpor das ervas, das carreiras de pó e das pedras flamejantes servidas pelos bacos de motocicletas. E os raios divinos cruzavam os céus noturnos, recados dos senhores dos becos escuros para quem ousava enfrentar o seu poder.
Mas não há deuses que resistam ao tempo. Zeus, o grande Zeus Porta-Égide, exilou-se do seu trono do Olimpo. Vieram muitos deuses depois dele. Até chegar o tempo desta leva de demônios donos das encruzilhadas michas das favelas. Deuses marionetes, animados por um poder distante e alheio a esse olimpo mal-cheiroso.
Tome-se como emblema este Zeu. Este deus mutilado e humano que traz de batismo o nome de Elizeu Felício de Souza. Foi um dos responsáveis pela morte cruel do jornalista Tim Lopes. Participou da ação que derrubou um helicóptero da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Foi um dos comandantes da invasão do Morro dos Macacos, em Vila Isabel numa guerra entre facções de traficantes.
Como tantos outros pequenos deuses da sua laia, Zeu mostrou a sua verdadeira face quando foi preso pelas forças que tomaram de assalto o seu olimpo no alto do morro do Alemão. Uma cara amedrontada, de quem sabe do seu destino. Um deus vaiado pelas pessoas de bem a quem subjugava pelo terror. Um deus de calças mijadas, exposto ao ódio do mundo pelas câmeras de televisão.
Pobre Zeu. Pobres pequenos deuses. Vão mofar na cadeia ou fugir de volta para as escadarias das vielas fedorentas. Longe deles, homens de carne, osso, poder e muito dinheiro continuarão a criar e manipular novos fantoches com ares e insígnias de divindades.