27 junho 2007

Gente de outra laia



Tenho muitos amigos, conheço muita gente. E me alegra muito poder afirmar que pouquíssimos, muito poucos deles se enquadrariam minimamente na rubrica de ladrão ou corrupto. Defeitos, sim, eles têm muitos. Uns bebem demais, outros gostam de puxar briga, alguns não param no emprego, outras gostam de mandar no marido. Mas no fundo é tudo gente boa. Mesmo os poucos que entraram na política ainda não me deram motivos para romper a amizade.
Falo isso para me defender da enxurrada de notícias ruins que encharca meu humor nos últimos dias. Não, insisto, as pessoas que conheço não são dessa laia que rouba, corrompe, extorque, trapaceia. Recuso-me categoricamente a aceitar como normal esse tipo de comportamento delinqüente. Meus amigos não são assim. As pessoas que encontro na rua, na feira, no bar, na farmácia, também não se enquadram nessa categoria. É gente que dá duro, que paga imposto, que devolve o troco a mais, que espera na fila, que recusa o favorzinho ilícito.
Do pouco que conheço da alma humana, sei o quanto é difícil abrir mão dos nossos impulsos para levar a melhor, sem considerar os direitos dos nossos semelhantes. Sei o preço que pagamos para submeter nossos desejos individuais aos interesses da coletividade. Tem gente que só faz isso obrigado pela polícia. Outros precisam de um rígido código moral que os prendam por dentro. Alguns desenvolvem uma ética racional que conduz à solidariedade e ao respeito aos semelhantes.
Existem, pois, níveis de consciência em relação ao respeito devido ao bem comum. Mas o que essa cambada que nos tira o sono quer nos convencer é da normalidade de suas condutas. Não, meus amigos não são assim. A maioria das pessoas que conheço é de outra laia. Uma laia do bem, sem vocação para freqüentar a sessão policial que se mudou para a primeira página dos jornais.
Foto: Clube do Conto da Paraíba

25 junho 2007

Perdas e esquecimentos


O poeta Lúcio Lins perdia astrolábios. O poeta Antônio Mariano esquece guardas-chuva. Tristes, os poetas, fadados a viver entre perdas e esquecimentos. Por isso o poeta necessita dos sonhos para resgatar o que perde e esquece. Para João Cabral, O sonho é uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. Uma coisa que pode ser evocada, explorada através da memória. “Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição”.
Território estranho, este, o do sono. Mais estranho ainda por se localizar dentro de quem dorme. E, dormindo, contemplamos o chão do sono, a verdadeira pátria do estrangeiro, desse outro estranho a quem assistimos desde o nosso posto de contemplação. Daí, para Cabral, a nostalgia do mar alto, das águas profundas que trazemos de volta ao acordar. Que estranho este que somos nós.
Num dos seus raros momentos de modéstia, Freud disse: “seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim”. E se aproxima dos poetas quando diz que toda noite, o homem despe-se dos envoltórios que cobrem sua pele, despoja-se dos complementos que substituem as deficiências dos seus órgãos e renuncia à maior parte das aquisições da sua alma para assim, despido do que lhe é supérfluo, se aproximar do ponto de partida de sua existência: o ventre materno.
O homem que dorme, portanto, volta-se para a noite primordial, silenciosa e calma, da qual foi definitivamente exilado. Todas as noites, o homem pode ainda matar as saudades desse território perdido. Mas vendo-o apenas de longe, olhando para o seu chão sem tocá-lo. É desse chão que ele vê brotar as imagens dos seus sonhos, recados enigmáticos da sua pátria originária para a qual sabe que nunca voltará.
Desta forma, todos nós somos poetas. Fadados a viver entre perdas e esquecimentos. Resta-nos apenas ficar atentos aos sonhos e poemas que a noite trama dentro de nós.

22 junho 2007

Os neutros




Fui comprar xerém pra fazer angu. Num mercadinho no meio da feira, bisbilhotei uma conversa entre dois rapazes que me atendiam. Criticavam um terceiro por ser “aquela coisa” e ao mesmo tempo pertencer a uma seita neopentecostal. Não podia. Só se fizesse como um outro que se arrependeu do seu pecado e agora era neutro. Belo eufemismo. Foi preciso comprar xerém para aprender que os enrustidos agora são neutros. Como se alguém pudesse ser indiferente à sua sexualidade.

A conversa entre os rapazes do mercadinho não era casual. Ela apenas refletia um movimento local contra o homossexualismo, com out-doors, passeatas e matéria paga em jornais alertando contra o perigo da aprovação no Congresso de uma lei que criminaliza as expressões de preconceito contra as opções sexuais. Como não poderia deixar de ser, o Arcebispo enviou uma carta de apoio à iniciativa dos concorrentes.

Para engrossar o caldo dos preconceitos, um Secretário de Estado, no meio de um seminário contra a violência, reclama que uma mulher, agora, “por qualquer tapinha, vai querer ser sustentada pelo Estado”. Este é o argumento da autoridade contra a manutenção de casas de acolhimento para mulheres vítimas de violência. Aproveitou ainda a oportunidade para declarar que a “homossexualidade é antinatural, fruto de famílias desestruturadas”.

Na secular parceria entre Igreja e Estado, são sempre os membros mais frágeis da sociedade que acabam nas fogueiras, nas masmorras ou na execração. Quando viu seus livros queimados pela turba nazista, Freud comentou com ironia que a humanidade havia progredido muito. Antes, seria ele a arder na fogueira. Tentando ser neutro, não podia ou não queria antever o destino que mais tarde seria dado a muitos de sua etnia.

O rosnar que se avoluma pode muito bem ser o anúncio de ações mais efetivas de discriminação contra os homossexuais. O que exige de cada um de nós uma clara tomada de posição. Aqui, como em tudo na vida, não há lugar para a neutralidade.

Foto obtida em www.overmundo.com.br - autor não identificado

17 junho 2007

Minhas ruínas




Desde que me mudei para este apartamento, decidi não ter mais saudade. Ele é pequeno. Não suporta o monte de lembranças que acumulei nesta vida já grisalha.
Uma a uma, vou apagando as imagens dos lugares por onde me gastei. Meu HD não tem espaço para tanto arquivo. Grande invenção esta tecla de deletar.

Como vêem, decidi aderir à contemporaneidade. E ser contemporâneo inclui não ter passado. Não existe, portanto, nunca existiu, a casa de onde eu vim de mala e cuia, deixando lá tudo o que acumulei nos últimos anos. Alguns livros, muitos discos e um amor também fora de moda.

Pela ordem, resolvi me livrar também das casas onde nasci, me criei, cresci e me fiz homem. Esta última não deu muito trabalho, pois já não existia de fato, demolida que foi, junto com todo o quarteirão, para dar lugar a um supermercado. As outras, nunca mais as vi. Devem ter tido destinos semelhantes. Neopentecostais, provavelmente, hoje esbravejam aos céus em espaços superpostos aos que foram meus.

Para fazer o serviço bem feito, joguei fora também as praças, os cinemas, os bailes, os campos de pelada, os bares, as salas de aula, todo e qualquer lugar antigo que possa roubar o exíguo tempo que decidi ocupar com novidades.

Grande invenção esta tecla de deletar. Deixou minha memória limpa de todo entulho que me ligava ao passado. Mas o que é, verdadeiramente, o passado? O que não se passou, mas fica, é passado? O que não aconteceu, mas dói, é lembrança?

Uma casa em ruínas insiste na memória, só porque uma moldura pendurada na parede da sala da minha infância a guardava como a um quadro precioso. E mais fica marcada porque naquela mesma sala ouvia-se no rádio uma novela chamada A casa do ódio. Quando a sala estava vazia, eu passava com medo pela gravura, pois, para mim, aquela era A casa do ódio.

Agora, quando nenhuma casa mais me resta na memória, restam estas ruínas de uma casa que não foi minha, mas que está entranhada em mim. Resta este ódio que nunca senti por ninguém, nem ninguém sentiu por mim. E o que eu quero e não vou nunca conseguir é voltar para aquela casa antes das ruínas. Para saber quem lá vivia e porque se odiavam. Saber se lá vivi e se lá me odiavam. Saber porque estas ruínas resistem ao meu projeto de desmemoriamento e insistem em me lembrar deste sentimento ruim, o único que ficou de todos os que feriram minha carne.


Clube do Conto,15.06.07

Imagem obtida em www.brasilvision.com.br

09 junho 2007

Ao Pó


Tu és pó e ao pó voltarás. Disse isto em frente ao espelho da penteadeira, já com a esponja de pó de arroz pronta para passar no rosto. Demorou-se um pouco com a mão suspensa, resignada com o tempo que se recusava a entrar também em suspensão.

Quem disse que não se pode ver o tempo? Ela o via ali, em sua frente, refletido no espelho oval do móvel antigo. O tempo tinha a sua cara. Ali estava escrito o passar das horas, dias, anos, décadas de uma vida às vezes bem vivida. Ali também estavam os traços de outras vidas, herança confirmada pelos álbuns de fotografia.

Olhava o tempo em sua frente sem remorsos. Tentou lutar contra ele e perdeu. Gastou fortunas com cremes milagrosos. Desperdiçou safras de pepino em rodelas. Paralisou-se com litros de botox. Chegou até pegar o número do cirurgião plástico. Mas não passou daí.

Olhava agora de frente para o tempo. Até gostava um pouco do que via. Cada marca daquela era uma letra do poema que o tempo escrevera no seu rosto. Não queria apagá-lo, voltar a ser uma folha em branco.

O que não precisava era que o poema fosse exposto nos mínimos detalhes aos transeuntes. Um pouco de mistério nunca fez mal a ninguém. E para isso tinha o bom e velho pó de arroz.


Clube do conto, 08 de junho de 2007.