17 junho 2007

Minhas ruínas




Desde que me mudei para este apartamento, decidi não ter mais saudade. Ele é pequeno. Não suporta o monte de lembranças que acumulei nesta vida já grisalha.
Uma a uma, vou apagando as imagens dos lugares por onde me gastei. Meu HD não tem espaço para tanto arquivo. Grande invenção esta tecla de deletar.

Como vêem, decidi aderir à contemporaneidade. E ser contemporâneo inclui não ter passado. Não existe, portanto, nunca existiu, a casa de onde eu vim de mala e cuia, deixando lá tudo o que acumulei nos últimos anos. Alguns livros, muitos discos e um amor também fora de moda.

Pela ordem, resolvi me livrar também das casas onde nasci, me criei, cresci e me fiz homem. Esta última não deu muito trabalho, pois já não existia de fato, demolida que foi, junto com todo o quarteirão, para dar lugar a um supermercado. As outras, nunca mais as vi. Devem ter tido destinos semelhantes. Neopentecostais, provavelmente, hoje esbravejam aos céus em espaços superpostos aos que foram meus.

Para fazer o serviço bem feito, joguei fora também as praças, os cinemas, os bailes, os campos de pelada, os bares, as salas de aula, todo e qualquer lugar antigo que possa roubar o exíguo tempo que decidi ocupar com novidades.

Grande invenção esta tecla de deletar. Deixou minha memória limpa de todo entulho que me ligava ao passado. Mas o que é, verdadeiramente, o passado? O que não se passou, mas fica, é passado? O que não aconteceu, mas dói, é lembrança?

Uma casa em ruínas insiste na memória, só porque uma moldura pendurada na parede da sala da minha infância a guardava como a um quadro precioso. E mais fica marcada porque naquela mesma sala ouvia-se no rádio uma novela chamada A casa do ódio. Quando a sala estava vazia, eu passava com medo pela gravura, pois, para mim, aquela era A casa do ódio.

Agora, quando nenhuma casa mais me resta na memória, restam estas ruínas de uma casa que não foi minha, mas que está entranhada em mim. Resta este ódio que nunca senti por ninguém, nem ninguém sentiu por mim. E o que eu quero e não vou nunca conseguir é voltar para aquela casa antes das ruínas. Para saber quem lá vivia e porque se odiavam. Saber se lá vivi e se lá me odiavam. Saber porque estas ruínas resistem ao meu projeto de desmemoriamento e insistem em me lembrar deste sentimento ruim, o único que ficou de todos os que feriram minha carne.


Clube do Conto,15.06.07

Imagem obtida em www.brasilvision.com.br

2 comentários:

Beto Efrem disse...

Tenho a impressão de que é por este mesmo sentimento que peguei a mania de baixar, da internet, sambas antigos. Quem quiser que se iluda achando que o novo não carrega o antigo. E que boniteza pode haver nisso!

Muito bom, Rona. Como sempre.

Beto

Anônimo disse...

"Grande invenção esta tecla de deletar", mas qaundo vou fazer limpeza no meu e-mail, não consigo deletar as coisas que você me manda.
Um abraço.

Paulo Monte