24 novembro 2007

Vergonha


Cubra as vergonhas, dizia minha avó com seu forte sotaque português. Tenha vergonha na cara, zangava meu pai ao menor deslize meu. Deixe de ser sem-vergonha, disse a namorada à primeira deriva da mão. Pra que tanta vergonha, disse a mulher feita a quem pela primeira vez me mostrei nu.
E agora me vejo neste sonho em que tento cobrir as vergonhas, mostrar ter vergonha na cara, sentir vergonha das intenções das mãos e perder, por fim, a vergonha de estar nu. E assim, despido de panos e vergonha, passeio pela praça a meia luz, alheio aos olhos dos passantes.
Saio das sombras do sonho e me deparo comigo sozinho na cama. Sem o conselho da avó, sem a zanga do pai, sem a reprimenda da namorada nem o deboche da mulher sabida. E choro, choro muito, choro pela enorme vergonha de estar só.

Imagem obtida em: podcast.lucianopires.com.br/.../vergonha.jpg

15 novembro 2007

Inveja


Não. Eu não quero um parecido. Nem um igual me serve. Eu quero esse. Exatamente esse que você tem na mão.
Não. Eu não quero emprestado. Eu quero pra mim. Nem quero dividir com você. Eu fico com ele e você fica sem nada. Só assim me serve.
Pra que eu quero? Pra nada não. Só para ter, mais nada.
Não. Não é pra mostrar. Pois se eu mostrar, um outro vai querer ter. E eu não vou dar. Quero pra guardar num lugar que ninguém veja. Num lugar bem escondido, onde ninguém possa nem passar por perto.
Num lugar longe da minha vista, para que eu não me lembre dele a todo instante. Até que eu me esqueça do lugar do esconderijo. E com o tempo, eu esqueça do que escondi.
Aí, sim. Distante da cobiça alheia, guardado da minha própria cobiça, ele vai ser apenas meu.
Pois eu já o terei esquecido.

Clube do Conto 15.11.2007

Ilustração obtida em:www.homestead.com/artsoul/Envy.jpg

08 novembro 2007

Texto sentido



Para Lau Siqueira

Um tênue manto envolve a pele do poeta.
Tecido de palavras ditas e a dizer,
esconde o corpo do poeta à cobiça da morte.

Engodo inconsútil,
finge proteger das asperezas do mundo
mostrando-se flagelo de enigmas
claros e escuros.

O poeta não vê,
não ouve,
não cheira,
não tateia
nem sente sabor.

O poeta sofre o peso do seu manto
e dele suga as palavras
que matam a sua fome de sentido.

Ronaldo Monte
08.11.2007