27 junho 2012

Falta coragem


Eu tinha uns doze anos de idade e minha cabeça de menino já ficava confusa com as coisas que assistia nos comícios do Recife. Cid Sampaio, usineiro candidato ao Governo de Pernambuco, recebia, na carroceria de caminhão que servia de palanque, o apoio de Luís Carlos Prestes, o célebre líder comunista.
Não vou desfiar aqui a lista interminável de conchavos políticos que assisti ao longo de minha já longa vida. Um só deles me serve de exemplo emblemático. Trabalhava numa agência de propaganda encarregada da campanha do MDB em Caruaru, lá pelos anos 70. Estávamos na casa de um dos próceres do partido, esperando que “ele” chegasse para começar a reunião. Passava da meia-noite, quando “ele” chegou. Era justamente o adversário do nosso candidato, disposto a negociar os votos de alguns dos seus currais, já que se considerava antecipadamente derrotado.
Pensava que já tinha visto de tudo neste mundo, quando fui insultado pela mais infame das alianças políticas que jamais esperava testemunhar: Lula buscando o apoio de Maluf numa tentativa desesperada de fazer o PT ganhar a eleição municipal em São Paulo.
E aqui, dentro de casa, me causa nojo a fúria com que antigos aliados demitem seus companheiros de ontem como retaliação à ruptura de acordos
Sempre que escolho um candidato para votar, renovo minhas esperanças de que ele tenha coragem para romper o círculo vicioso dos conchavos para atingir o poder. Espero mesmo que ele esteja disposto a perder a eleição, desde que a campanha sirva para implantar na consciência dos eleitores novos valores éticos. Para tanto, é preciso coragem para romper com os velhos padrões de conchavo e corrupção.
Coragem para ultrapassar este tempo de miséria política, colocando definitivamente em primeiro plano os interesses dos cidadãos que pagam os seus salários. É só isto que espero dos políticos em que voto.  

Imagem obtida em: http://www.jogodopoder.com  

20 junho 2012

Pequenas delicadezas


           
        Quando nos viu procurando a passagem para saber o número do portão de embarque, a mulher da limpeza do aeroporto de Santiago perguntou, solícita, se tínhamos perdido alguma coisa.


Ao me ver em dificuldade para me levantar e entregar o dinheiro das passagens do microônibus, uma senhora do banco da frente apanhou o dinheiro da minha mão e entregou ao motorista.

A moça que nos acompanhava no tour pela vinícola Concha Y Toro ficou todo o tempo de olho na gente e de vez em quando pegava a nossa máquina para uma foto juntos: “Agora uma com vocês brindando...”

O recepcionista do hotel de Santiago me perguntou se eu tinha guardado o dinheiro para o táxi quando fui fechar a conta.

Ao nos ver chegar ao balcão da polícia federal, o policial do aeroporto de Santiago falou: “não precisa dizer nada. São mais dois brasileiros que perderam o formulário de imigração...” E nos atendeu sorrindo.

Quando minha mulher ia em direção ao banheiro do avião, um homem notou que o cordão de um dos seus tênis estava desamarrado. Perguntou se ela queria que ele amarrasse.

O executivo argentino foi solícito em facilitar nosso entendimento com a recepção do hotel em Montevidéu. No outro dia, conversou um pouco sobre sua vida de viajante em vários países de língua portuguesa.

Num restaurante do Mercado Central de Santiago, uma mulher brasileira, numa mesa ao lado, me ofereceu o vinho da sua garrafa quando viu que o meu havia terminado.

Há algum tempo, em Sevilha, ao nos ver olhando para o interior de um pátio tipicamente mourisco, um homem nos incentivou aos gritos: “Entra, entra que és mui belo”.

São cenas simples como estas que me asseguram a existência da delicadeza em qualquer canto do mundo. Por mais que alguns mal intencionados queiram nos fazer temer a proximidade de pessoas de lugares diferentes do nosso, um simples passeio pelas ruas nos mostra o contrário. As pessoas querem nos conhecer, querem nos ajudar e mostrar que, acima de nossas diferenças de lugares, línguas e classes, é possível construir pontes de delicadeza e solidariedade.

Ilustração obtida em: cafeentreamigos.com

09 junho 2012

Trêmula borboleta

 Trêmula e cambaleante, levantou-se com o prato de quibe de forno seguro pelas duas mãos, o que a impedia de evitar que a manta xadrez arrastasse no chão, por mais que tentasse segurá-la com os ombros levantados até o pescoço.


Já livre do quibe, protegeu-se com o cachecol e petrificou-se com a lufada fria que assaltou a cozinha quando abriu a porta para o pequeno quintal lajeado.


Precisou esperar que a vista se acostumasse ao escuro para notar o corpo estendido sobre o limo das lajotas no ângulo esquerdo do quintal. Seria um homem, se não fossem as grandes asas abertas ensopadas da chuva que caiu durante toda a tarde.


Tremeu e cambaleou até a gaveta da petisqueira de onde tirou uma vela e uma caixa de fósforos. Acendeu a vela e voltou para o quintal. Debruçou-se sobre o corpo alado e a mão trêmula deixou cair um pingo de cera sobre o peito do estranho visitante. Dois olhos cinzentos recém abertos pousaram no pulso iluminado pela vela. Ali estava tatuada uma minúscula borboleta.


Você de novo, meu amor?disse o alado, é a segunda vez que você me acorda com um pingo de cera. E fez menção de segurá-la pelo braço. Mas ela fugiu arrastando a manta pelas lajotas molhadas até trancar-se na cozinha. E ali ficou, trêmula, ouvindo os passos cambaleantes que alcançaram a porta. E mais tremeu quando, depois das pancadas na porta, ouviu uma voz estranha, estrangeira, gritar: Psiché... Psiché...

(Escrito em parceria com Marina e Carolina, em Moema, Cidade de São Paulo).

03 junho 2012

Querida Evalúcia



Agradeço de todo o coração a sua amável cartinha em que me inclui na lista dos privilegiados que em breve vão ficar ricos. A sua Proposta de Trabalho Independente em Casa é irrecusável. Você me promete uma ajuda de custo inicial de 500 reais e depois me acena com a possibilidade de ganhar um notebook. Se eu me empenhar no trabalho, posso até ganhar uma ajuda de 1.200 reais além da possibilidade de alcançar uma situação financeira estável e segura.

Só o que eu não entendi, querida amiga, é porque eu tenho que pagar R$ 99,90 (cem reais, na realidade) para receber o material inicial de trabalho e treinamento. Se a tal de Cintra e Rezende Consultoria em Recursos Humanos Ltda. me oferece tantas vantagens assim, por que diabos ela precisa desse meu dinheiro? Nenhuma empresa em que trabalhei me pediu qualquer quantia pelo material de trabalho ou treinamento necessários ao desempenho das minhas funções.

Deixa ver se entendo bem: você me escreve do Piauí em nome de uma empresa que tem sede na cidade de Franca, em São Paulo. Se o trabalho que vocês me propõem é o envio de mala-direta, eu tenho todo o direito de pensar que o trabalho seja exatamente este que você fez: mandar malas-diretas para o maior número possível de pessoas, na esperança de que algum otário acredite nas suas promessas de enriquecimento e pague o boleto de cobrança com a primeira parcela da inscrição.

Minha querida Evalúcia: se é que você realmente existe e não seja apenas mais um engodo dessa tal Cintra e Rezende, use a sua letra redonda e elegante de professora primária para fins mais construtivos. Arranjar um namorado, por exemplo. E se você continuar insistindo em rastrear os incautos para esta arapuca, lembre-se que o inferno é muitíssimo mais quente do que a sua querida Curimatá, no Piauí. E que o diabo reserva castigos especiais para quem tenta ser mais esperto do que ele.

Foto: Ivan de Paula