22 dezembro 2011

Restos do tempo




Resta ainda uma fachada do que antes era casa. As baronesas do açude fingem de pasto para bois imaginários. Fantasmas banham-se nas águas que tomaram os lugares onde se comia, se conversava, se dormia depois do amor. As almas dos bois, dos carneiros e das galinhas misturam-se às alminhas dos pagãos e às almas velhas que de tanto pecar perderam o direito ao repouso eterno. A luz solar afasta qualquer possibilidade de descanso aos mortos prisioneiros de um tempo de nada. Tempo que não passa por não ter para onde passar. Ninguém guarda esses mortos na memória. Ninguém vai reerguer a casa que bóia nas águas do esquecimento.
Esquecer não é passar. O tempo sabe disso. O tempo sabe também que a memória é coisa viva, mutante. De tempos em tempos, a memória se transforma. As dores se dissipam, os males se dissolvem. A dor e o mal são apenas sinais do que não deve ser repetido. O tempo é isto. Uma estrada marcada por sinais. Ali fomos felizes. Mais adiante sofremos. Logo depois tivemos um pouco de paz. O tempo é nossa matéria e nosso herdeiro. Pois quando não pisarmos mais o chão da terra, será o tempo que dirá de nós aos que ficam. Será também o tempo que cuidará do nosso esquecimento.


Estamos um ano a menos do nosso destino de ruínas. Mais cedo ou mais tarde, as águas inundarão o campo a nossa volta. E quando alguém passar nos lugares em que um dia vivemos, verá talvez um açude coberto de baronesas onde antes pastávamos com os bichos. E caberá somente ao tempo determinar se uma mínima fachada restará como memória do corpo que nos serviu de morada.

15 dezembro 2011

Presenças




Estamos todos reunidos novamente. Sem exceção, pois mesmo os invisíveis são pressentidos em algum canto da sala. Alguns destes não puderam vir, mas estão em algum lugar do mundo a se lembrar de nós. Outros deixaram de vir porque se foram definitivamente. Mas não interessam onde estejam realmente. Estão todos aqui. Se apurarmos os ouvidos, ouviremos suas vozes em meio à algazarra dos visíveis. Aqui e ali, eles deixarão entrever a marca registrada de um gesto, uma forma de olhar.

Estamos todos reunidos novamente. Alguns deixam bem claro o prazer de conviver conosco mais esta noite. Outros manterão o olhar vago e a expressão ausente de quem não está nem aí. De corpo inteiro ou três por quatro, é bom que nos vejamos mais uma vez. Alguns são velhas companhias de nossa trajetória pelo mundo. Outros só recentemente vieram se juntar à caminhada. Mas um fio de afinidade nos une a todos. E, um pouco mais, um pouco menos, todos nos queremos bem.

Sei que alguns solitários se sentirão excluídos desta crônica. Mas lembro a estes que uma sala virtual pode reunir todos os seus ausentes. A memória tem esse poder de atravessar o tempo e acender a lembrança desses que, por um motivo ou por outro, já não nos convivem mais.

A cada ano que passa, vai sumindo o sentido do Natal como uma festa cristã. Nos filmes de minhas netas, o velho do ho-ho-ho tomou definitivamente o lugar do aniversariante. O frenesi da lista de presentes substituiu o culto do eterno renascimento da esperança. Se quisermos, portanto, resguardar o sentido desta festa, temos que celebrar com ela a esperança. Claro que os dias que se seguirão darão um jeito de nos mostrar que nossa esperança é vã. Mas é preciso teimar em mantê-la como a única força capaz de nos unir em busca de um mundo mais fraterno, onde possamos conviver em paz com a presença dos nossos vivos e a memória de nossos mortos.

Imagem obtida em: http://www.ivanjeronimo.com.br

09 dezembro 2011

Demasia




Tudo demais é demasia. Eu ouvia sempre esta sentença dos meus pais, toda vez em que me excedia em alguma coisa. Bebida, comida, até mesmo estudo em excesso, diziam eles com grande sabedoria, fazia mal à saúde. Mais uma vez sou obrigado a concordar com meus velhos quando leio a afirmação de especialistas que exercício em excesso pode danificar o coração. Segundo os pesquisadores de uma universidade de Melbourne, da Austrália, “exames de ressonância magnética de 40 atletas que se preparavam para participar de eventos esportivos extremos, como triatlos ou competições de ciclismo em montanha, revelaram que a maioria apresentava distensões no músculo cardíaco”.

Eu tinha um amigo que vivia tirando sarro com a minha tendência à inércia. Ele corria na praia, jogava vôlei, tomava sauna. Ao vê-lo suado e esfalfado, eu retrucava: vais morrer com a maior saúde. Eu disse que tinha um amigo. Pois é. O amigo morreu. E o que é pior, sem saúde. Talvez sua mãe não o tivesse advertido de que tudo demais é demasia. Bebia demais, morreu cirrótico.

Já prevendo que alguns sedentários folgados como eu iam querer tirar proveito da pesquisa, os médicos se apressaram em dizer que não se deve concluir desse estudo que os esportes extremos sejam ruins para a saúde. Nem que as pessoas devam deixar de fazer exercícios tendo como desculpa os dados de uma pesquisa não conclusiva.

Não quero ser mal conselheiro instigando os atletas de fim de semana a pularem a pelada e partir direto para a roda de cerveja. Nem tampouco contribuir para o prejuízo das academias que vivem do sentimento de culpa dos que perdem muito tempo em frente ao espelho. Não nego que, de vez em quando, eu mesmo vou com minha mulher dar umas passadas na calçada do Cabo Branco. Mas estou sempre atento a outra pérola dos mandamentos dos meus pais: “boa romaria faz quem em sua casa está em paz”.

Imagem obtida em: http://soky-tf.blogspot.com

03 dezembro 2011

Vida longa







As estatísticas não mentem. O IBGE afirma, em suas cabalísticas Tábuas Completas de Mortalidade, que a expectativa de vida dos brasileiros cresceu em três meses e 22 dias. Vejam bem que vantagem. Em 2009, eu estava jurado para morrer com 73,17 anos. Em 2010, meu prazo de validade passou para 73,48 anos.

Longa é a arte, breve é a vida, já dizia Hipócrates, citado por Jobim. Pelos números das Tábuas, minha vida ficou um pouquinho menos breve, o que poderia muito bem ser aproveitado para produzir um pouco mais de arte.

Mas o que eu poderia produzir nesses quase quatro meses de prorrogação? Vamos por eliminação. Escrever um romance seria impossível, pois com esse tempo eu não sairia da frase inicial, aquela que dá mais trabalho ao escritor. Melhor se contentar com um bom conto. Mas como um conto precisa de uma gaveta confortável para descansar e mostrar a que veio, acho que não sairia de lá antes de uns bons seis meses. Um poema, então. Tentemos um poema. Mas um poema, como eu mesmo já disse, “não é coisa que se tem todo dia”. Pode muito bem acabar o meu tempo adicional e não aparecer nada que mereça ser chamado de poema.

Então, como eu mesmo também já disse, “todo dia o que se tem é viver”. E aqui está a solução sobre o que fazer nesses 142 dias que me sobram. Viver, simplesmente. Ou melhor, deixar a vida me viver. Bestar, no melhor sentido que este verbo possa ter. Ficar como besta, pastando na relva, ruminando o tempo na companhia de outros indivíduos da minha espécie, mugindo ou berrando de vez em quando, pelo simples prazer de anunciar que ainda estou vivo.

29 novembro 2011

Confraternizar





Ainda nem começou dezembro e minha agenda está cheia de compromissos de confraternização. E não são meros encontros de colegas entediados, doidos que o tempo passe para se livrar do incômodo. São amigos de verdade que me chamam. Gente que conviveu comigo nos mais diversos afazeres e agora quer comemorar mais um ano que passamos juntos.

Tem o pessoal da literatura que deixa para lançar todos os livros do mundo no fim de ano, de olho no décimo terceiro salário dos amigos. Tem os colegas do batente de poltrona e divã, ávidos de uma boa prosa longe da claustrofobia dos consultórios. Tem os amigos, puros e simples, que querem se desculpar da falta de atenção na correria do dia-a-dia. Tem a parentalha querendo matar as saudades dos tempos risonhos e limpos de mágoas.

Seja qual for o motivo da confraternização, é preciso que não esqueçamos o significado da palavra “confraternizar”. Fraterno, todo mundo sabe, é algo relativo a irmão. Confraternizar, portanto, é conviver fraternalmente, como irmãos. É preciso um tanto de ternura, uma boa dose de amor e um bocado de perdão para se conviver como irmãos.

É por isso que não vou a qualquer encontro que se chame confraternização. Uma boa parte deles é usada apenas como mais uma oportunidade de conhecer gente que possa alavancar nosso prestígio social ou nossa conta bancária. Outros são pura tortura, onde temos de conviver com pessoas que se odeiam mutuamente.

Sei quem são meus amigos fraternos. É com eles que me dá prazer confraternizar. Claro que isso é coisa que se pode fazer em qualquer época do ano. Mas no mês de dezembro as coisas tomam um ar mais solene, a gente fica mais sentimental, numa espécie de reflexo condicionado dos tempos da infância. Podem me chamar para as confraternizações. Mas por favor, respeitem uma única exigência: sem Amigo Secreto, pelo amor de Deus.

23 novembro 2011

Santas bugigangas




Se, por falta de tempo ou dinheiro, você não pode ir ver a mais nova exposição do Museu da Ciência de Londres, dê uma passadinha aqui em casa. Vai dar no mesmo. Aliás, em sua própria casa você pode apreciar réplicas idênticas às exibidas no célebre museu. O nome da exposição é bastante sugestivo: Hidden Heroes, quer dizer, Heróis Escondidos. E lá você vai encontrar em exposição coisas simples como o clipe, o pegador de roupa ou o filtro de papel.

Um dia, uma amiga agradecida, prometeu rezar todo dia uma ave-maria para o inventor do liquidificador. O mesmo louvor devem merecer os criadores do ferro de passar roupa, da geladeira, do desentupidor de pia. Mas estas são já invenções grandiosas, que dão na vista. O que o museu londrino quer mostrar são coisas menores, as pequenas bugigangas que passam despercebidas pelas nossas mãos a cada minuto das nossas vidas.

Mesmo contrariando a Danusa Leão, sou um entusiasta do palito de dentes. Louvo quase diariamente o inventor do mecanismo de abrir latas de cerveja. Gostaria de abraçar o gênio que colocou rodinhas nas malas de viagem. Beijaria sem constrangimento o inspirado criador do fecho éclair, que depois virou zíper para as gerações mais novas.

Mas o meu voto direto para santo é do inventor do clipe. Não existe desenho mais perfeito do que o desse objeto simples e despojado. Não há nada oculto, nenhum mecanismo obscuro. E são infinitas as suas possibilidades de uso. Serve para cutucar o ouvido, tirar o carro do prego, fazer um colar ou simplesmente ser desdobrado e jogado no lixo. Mas a sua função principal é quase divina. Um clipe liga uma coisa a outra, servindo de elo entre diferentes registros da nossa experiência cotidiana. Pode ser duas fotos, duas contas de supermercado, as folhas de um texto inacabado.

Unir e lembrar. Evitar a dispersão. Nunca pensei que uma simples bugiganga pudesse me lembrar o trabalho unificador de Eros. É nisso em que dá começar uma crônica sem um assunto claro na cabeça.



Imagem obtida em: http://www.ruadireita.com

16 novembro 2011

Arqueologia





Uma gaveta é uma espécie de sítio arqueológico. Quanto mais fundo cavamos, mais aparecem coisas antigas que ali jazem esquecidas. É por isso que é muito difícil para mim arrumar uma gaveta. Estou quase a meio caminho da tarefa quando me surpreendo com algo, papel ou coisa mais sólida, que me faz parar no tempo e no tempo mesmo regressar.

Hoje mesmo, revolvendo a primeira gaveta da cômoda em busca de qualquer coisa, dei de cara com dois objetos que custei a adivinhar a serventia. Um deles era uma espécie de moeda marcada por dois sulcos paralelos. Entre os dois sulcos, estava cunhada a palavra “local”. Acima deles, constava o número 1994. No verso, apenas um sulco dividia a moeda. No hemisfério superior estava escrito “Sistema Telebrás”. No inferior estava uma logomarca sugerindo um antigo telefone. Um pouco de paciência me lembrou a serventia do tal objeto. Era uma ficha telefônica para ser inserida nos aparelhos distribuídos em pontos estratégicos da cidade quando se queria fazer uma ligação local.

O outro objeto me exigiu mais tempo para identificá-lo. Era uma espécie de broche vermelho, em forma de estrela, vazado em branco com as letras “PT”. Fiquei um bom tempo com o pequeno objeto nas mãos, até que me veio uma vaga lembrança de um tempo de esperança em que muitas pessoas iam às ruas vestindo camisas e empunhando bandeiras com aquela cor e aquelas letras.

Devolvi os dois objetos inúteis à gaveta e ali eles ficarão até que venham os arqueólogos de um sistema solar distante vasculhar o que sobrou de nossa estúpida civilização. Se um deles achar minha gaveta, vai ter muito o que matutar sobre as coisas estranhas que dormem ali. Quando cruzar alguns dados de sua pesquisa, vai ficar querendo saber qual seria a pessoa para quem não telefonei. Vai também querer saber o destino da esperança que aquela estrela representava. Da pessoa, ele não terá resposta. Da esperança, vai voltar muito triste quando souber do seu destino.

09 novembro 2011

Felicidade





Chega a ser divertido o esforço das pessoas para definir o que seja felicidade. Antigamente, felicidade era um conceito vago, sua definição dependia das aspirações mais ou menos espirituais de cada um. Hoje a coisa ficou fácil, porque a felicidade passou a ser materializada pelos promotores de marketing. Pode ser encontrada num artigo de consumo disponível na prateleira de qualquer supermercado, nas revendas de automóveis ou no balcão das agências de viagem.
De tanto penar à procura de uma noção de felicidade que me deixasse feliz, resolvi aderir ao materialismo individualista pós-moderno e decidi: felicidade é o resultado do bom funcionamento das coisas.
Não existe coisa pior do que aqueles períodos em que todas as coisas da sua casa começam a deixar de funcionar. Começa pelas lâmpadas. Teve uma vez que cinco lâmpadas, nos mais diversos cômodos daqui de casa, deixaram de acender. Logo em seguida, inevitavelmente, quebra o liquidificador. Depois pode vir o ferro elétrico ou a televisão da sala. Daí em diante a coisa entra em progressão geométrica, podendo terminar com um vírus que corrompe todos os arquivos do seu computador, inclusive aquele que você deixou para fazer o back-up no final da tarde.
Tem uma coisa que aprendi a respeitar: o inferno astral. Isso existe, sim. E não consiste em nada de esotérico, espiritual. O inferno astral consiste exatamente nesse desmantelamento generalizado dos objetos domésticos. O que justifica a expressão: “minha casa está um inferno”.
Daí, espero ter justificado a minha definição de felicidade: É aquele estado de beatitude quando você entre em casa e as luzes se acendem uma a uma. O liquidificador prepara sua vitamina e você pode se jogar no sofá da sala para ver a mais nova besteira das oito. E depois poder ligar seu computador e ver que todos os seus arquivos estão ali, prontos para serem impressos. E a impressora está com tinta e funcionando. Pronto. Você está imerso no seu oásis particular de felicidade. Até que a próxima lâmpada deixe de acender.

02 novembro 2011

Abrir mão




Num gesto do mais autêntico autoritarismo, minha médica mandou a atendente medir a circunferência da minha barriga e tomou a decisão unilateral de me decretar obeso. Claro que protestei veementemente contra o reconhecimento científico do meu visível arredondamento. Mas no fundo eu já vinha achando que estava na hora de abrir mão de alguns prazeres para poder voltar a encarar sem medo a minha parte do guarda-roupa. Além disso, já andava chateado com a dificuldade em executar certos movimentos, fazer um mínimo de força, sustentar o peso de alguns objetos.

É um fato da vida. Vamos entrando nos anos, dobrando o Cabo das Tormentas (ou da Boa Esperança, para os mais otimistas) e nos damos conta de que nos falta força. Não apenas a força física. Aquele ímpeto que nos incita o espírito também vai esmorecendo.

É hora, então, de economia. É preciso aprender a abrir mão dos excessos. O primeiro deles é o excesso de peso. Do nosso próprio peso. Depois, comecemos a pensar nos outros excessos, verdadeiros pesos pendurados na alma, puxando-nos pra baixo, prendendo-nos ao chão. O maior desses pesos, o principal deles, é a presunção. Aquele sentimento de que valemos muito mais do que imaginam os nossos pobres semelhantes. Aquilo que nos faz roubar no peso e enganar no troco quando nos vendemos no mercado das vaidades. É dessa presunção que derivam todos os outros excessos.

Já me faltam as forças. Preciso me livrar de certos projetos inalcançáveis. Sem abrir mão dos sonhos, é claro. Mas a alma leve, num claro paradoxo, me faz sonhar mais ao rés do chão. Sonhos, digamos assim, da mão pra boca. Plantar milho em março pra colher em junho.

Vou sugerir à minha médica que, além da fita métrica normal, tenha no consultório uma fita metafísica para medir a alma da clientela. A partir de certa medida o freguês será declarado um obeso anímico, sendo então obrigado a fazer um regime para perder também os pesos invisíveis. Aqueles que mais dificultam a nossa caminhada.

26 outubro 2011

O adiantado da hora



Existe um personagem invisível e malévolo que exerce uma única e enervante função: acabar com os encontros entre as pessoas pelo esgotamento do tempo. Este desmancha-prazeres universal responde pelo nome de Adiantado da Hora.

Desde crianças já somos atormentados por este espectro. No melhor da brincadeira, ele sempre mandava um representante de maior idade dizer que estava na hora de dormir. Já um pouco mais crescidos, quando os casais estão no ponto mais alto da refrega, ele sempre vem lembrar a hora da namorada voltar para casa. Mais tarde, é sua voz interna que nos lembra que o sol está nascendo e o trabalho nos espera daqui a poucas horas. É ele também que faz o outro virar de lado na cama com um bocejo, alegando o monte de coisas a fazer de manhã cedo.

Passei muito tempo sendo perseguido por este personagem, sem saber o seu nome. Só quando comecei a participar de seminários e congressos acadêmicos é que me foi revelado que as discussões finais teriam que ser abreviadas devido ao Adiantado da Hora. Foi quando me dei conta de que o funesto pé frio tinha acompanhado toda a minha existência, entrado na universidade comigo, atazanado meus estudos da graduação ao doutorado e agora me impedia de expor com clareza meus obtusos pensamentos.

Hoje, o Adiantado da Hora já não me causa aflição. Aprendi que nunca chegarei antes dele em canto algum. Aprendi que as coisas podem muito bem ficar inacabadas. Outros as terminarão ou as esquecerão para sempre. Aprendi a rir desse espectro que me fez apressar o passo, deixando de ver e viver as coisas boas que se arrastam lentas. Hoje, é um seu parente mais velho que me vem afligir os dias: o Adiantado do Tempo. Não sou Manoel Bandeira, por isso ainda me resta lavrar o campo, limpar a casa e por a mesa com cada coisa em seu lugar, antes que chegue a indesejada das gentes.

17 outubro 2011

Personal person


A coisa começou com a invenção do personal training. Ser uma celebridade e não ter o seu personal training era quase um pecado mortal. Como eu tenho uma propensão natural para a maldade, acho que isso foi invenção da mulher de algum endinheirado que descobriu uma forma segura de descolar uma grana para o seu jovem e atlético amante. A partir daí a moda pegou e começaram a aparecer as mais diversas variações de assistência pessoal. Tem o personal care, destinado ao consolo das senhoras da terceira idade. Tem o personal wear, para sugerir as esquisitices que as dondocas devem usar em situações específicas. Tem até o personal dog, que não é exatamente um cachorro de estimação, mas um cuidador de lulus e totós das madames que não têm mais tempo além do que gastam no cabeleireiro (personal hair, eu suponho) e na academia.
Pois bem, para não parecer um retrógado ressentido, venho me lançar no mercado como Personal Person. E o que vem a ser exatamente um personal person?
Trata-se, obviamente, de uma pessoa (eu, no caso) que se propõe a agir como um ser humano comum, sujeito a variações de humor e condições de saúde. Isto é bom, porque oferece o elemento surpresa, o cliente nunca sabendo exatamente como eu vou chegar. Pode me pegar de bom humor ou completamente sorumbático, o que irá definir o tipo de assunto a ser conversado. Podemos falar de trivialidades, como o mais novo CD da Lady Gaga, ou pegar pesado com as previsões recentes sobre a economia global.
Como personal person posso ser usado numa fila de banco, na sala de espera do médico ou nos intervalos cada vez maiores das novelas. Mas o meu melhor aproveitamento será numa mesa de bar ou restaurante. Aí é que se disporá de um tempo agradável de espera, entre o pedido ao maitre e a vinda do garçom. Nada de self-service, portanto. Será aí, na penumbra e ao som de um piano que o seu personal person exercerá todo o encanto de uma pessoa ao mesmo tempo comum e diferenciada. Desde que seja pago por isso. Regiamente pago, bem entendido, como todo personal-qualquer-coisa que se preza.

02 outubro 2011

HD externo


Para quem ainda não sabe, um HD externo é aquela caixinha que se acopla ao computador que serve para guardar os arquivos que ficarão a salvo caso algum mal venha a acontecer com a memória do nosso PC.


Mas se engana quem pensar que o HD externo é uma invenção recente. Ele é apenas uma versão eletrônica de uma dispositivo que desde o início dos tempos vem tornando viável a vida da porção masculina da nossa espécie: a memória da mulher.


Sabe-se muito bem que nós, os homens, nascemos com um defeito congênito. No lugar da memória, trazemos uma vaga lembrança. Demonstramos desde muito cedo a nossa incompetência para saber onde deixamos os sapatos ou guardamos a baleadeira. Esquecemos de fazer a lição de casa e nunca entregamos aos pais os bilhetes da professora. Nosso primeiro HD externo atende pelo apelido de mamãe.


Acho mesmo que um casamento duradouro se deve, antes de mais nada, ao encontro entre um desmemoriado de nascença e um HD externo de confiança. Pelo menos no meu caso, a hipótese se confirma à exaustão. E não é apenas pelos pequenos deslizes rotineiros, tais como não saber onde está o celular, o documento do carro, a porta do guarda-roupas em que se escondem as camisas.


Minha vida correria sérios riscos sem o recurso permanente ao meu HD externo. Pelo menos minha vida social. Quando, por exemplo, você me ouvirem chamar uma moça de neguinha, querida ou coisa parecida, pode ter certeza: não lembro o nome dela. Meu velho, gente boa, amigão, são substitutos dos nomes dos homens que esqueço. Mas este vexame não ocorre quando meu HD externo está por perto. Basta uma cutucada discreta para ela se adiantar e cumprimentar a pessoa pelo nome.


O momento supremo desta ajuda se deu quando eu confessei minha angústia pela aproximação de um sujeito muito importante que eu esqueci o nome. Não será fulano de tal, adiantou minha mulher, na maior tranqüilidade. E era. Acontece que ela nunca tinha visto o tal fulano. Só de me ouvir falar dele, reconheceu o cara em plena rua. Com isto, acho que saímos do ramo da informática para entrar no âmbito mais obscuro do espiritismo.

28 setembro 2011

Poeira


Juro que qualquer dia desses eu crio juízo. Mas ainda não foi desta vez. Caí de novo em tentação e comecei uma nova reforma na casa. Coisa pouca, juro. Tinha um quarto praticamente sem uso, que depois de abrigar uns sobrinhos itinerantes, ficou conhecido como “o quarto de nada”. Servia apenas para entulhar os troços rejeitados pelos outros cômodos. O escritório não queria uns livros, manda pro quarto de nada. Aquela embalagem bonita que dá pena jogar fora, deixa no quarto de nada. Os brinquedos quebrados das netas, os colchões avulsos das visitas, as caixas de jogos antigos dos filhos, bota ali, no quarto de nada.


Decisão tomada, pedreiros contratados, começa a demolição de um banheiro inútil, propiciando uma janela para refrescar a cozinha. De quebra, a abertura de uns vãos na parede que separa o quarto do pergolado. Vai ficar um lugar ideal para as brincadeiras das netas.


Tenho uma espécie de tara por aquele barulho ritmado do martelo contra a talhadeira. Morro de inveja quando o escuto na casa de um vizinho. Na minha casa, então, o efeito se aproxima de um orgasmo.


Mas como nada é perfeito, tem o problema da poeira. Começa com um pequeno ardor nos olhos. Depois você sente uma leve aspereza nos dedos e só aí é que nota um certo tom opaco na superfície dos móveis. Vai pegar um livro e percebe que está entranhado de um pó que deixa uma sensação de sujo nas mãos. Os utensílios da cozinha, os sofás da sala, os lençóis das camas, janelas, paredes, chão, tudo vai ficando gradativamente coberto por aquele pó que gruda nas mãos, se entranha na roupa e nos faz lavar o rosto a cada quinze minutos.


Aqui estou eu, com os olhos ardendo, um pigarro na garganta, um chiado no peito e uma vontade delirante de ir para o meu apartamento em Paris (se eu tivesse um apartamento em Paris) e só voltar depois de o mordomo telefonar (se eu tivesse um mordomo) anunciando o fim da reforma.


É um vício, eu sei. Já me rendeu até um apelido entre os mais íntimos: o rei do puxadinho. Mas qualquer dia desses eu me curo. E em vez de gastar dinheiro com reformas, compro um apartamento em Paris.

25 setembro 2011

Amor, traição e katchup


Peraí... Você não é Erenildes? Tá lembrada de mim não? Eu sou o Carlinhos de Jesus. A gente cresceu juntos lá na Rua de Baixo, aqui mesmo em Pindobaçu. Você nem vai acreditar, mas eu vim aqui matar você. Não, você não me fez nenhum mal. Foi uma mulher que mandou. O nome dela é Maria Nilza. Ela me prometeu mil reais para matar você. É que ela gosta muito do seu marido e quer ficar com ele só pra ela. Espero que você me compreenda. Acabei de sair da prisão em Salvador e preciso muito do dinheiro.

É muito azar, o meu. A primeira pessoa que aparece pra matar é minha amiga de infância. Acho que não vou ter coragem de fazer mal a você. Não sei se você desconfiava, mas desde menino eu tinha uma queda por você. Fazia ponto na esquina da sua rua só para ver você ir comprar qualquer coisa na venda, sair toda pronta para a escola, passar de véu na cabeça indo para a missa.

O danado é que preciso muito desse dinheiro. Então, vamos fazer um negócio. Eu finjo que lhe mato e a gente divide o pagamento. Vamos, se deite aí no chão pra eu amarrar sua boca com um lenço. Agora eu vou enfiar um facão debaixo do seu braço, igual eu vi fazer nos dramas do circo. Só falta agora eu lambuzar seu vestido de katchup e pronto. Vou bater uma foto com meu celular pra mostrar a Maria Nilza.

Pronto. Agora eu vou soltar você. Desculpe se lhe machuquei. Descanse um pouco aqui no meu colo. Você não sabe o quanto eu queria ficar assim, com você junto de mim. E esse katchup deixou você ainda mais apetitosa. Deixa eu dar uma lambidinha na sua bochecha. Ai, que bom. Melhor ainda deve estar a sua boca. Ui. E se eu descer um pouco mais, você se importa? Se importa não? Então eu vou lamber você todinha, pois a minha fome de você é muito antiga. E você sabe que fome de menino custa muito a se acabar.

21 setembro 2011

Ditaduras


Fui ao quiosque da esquina comprar uns envelopes e o proprietário, amigo de longas datas, lamentou o estado das coisas, afirmando que bom era no tempo da ditadura. Mantive a calma e perguntei do que ele se lembrava de bom do tempo da ditadura. Ele me falou que era menino e não se lembrava de nada, mas, outro dia, um freguês, formado em medicina, tinha dito que só os militares poderiam dar um jeito nessa situação. Mais uma vez, perguntei em que o País era melhor do que hoje, no tempo da ditadura. Mais uma vez, ele não soube me responder.


Há poucas semanas, um desses apresentadores que enchem de sangue a telinha na hora do almoço, também apelou pela volta dos bons tempos da ditadura. Na sua visão torpe, era a única forma de acabar com a epidemia de violência que nos atinge a todos, sem exceção.

Lembrei ao meu amigo do quiosque, como lembro agora ao saudoso apresentador, que a primeira coisa que eles iriam perder com a ditadura seria o direito de dizer que sentiam saudade do regime anterior. O quiosqueiro teria seu negócio fechado e o apresentador seria sumariamente demitido. E ambos seriam presos, com grande probabilidade de serem torturados e mortos.

É preciso tentar entender o que representa essa saudade de um tempo que não se viveu. Todos nós trazemos uma saudade primitiva de uma mítica época de ouro. Há sempre um paraíso perdido para o qual desejamos retornar. De fato, todos nós experimentamos uma tal idade de ouro. Ela existiu enquanto vivíamos mergulhados no paraíso uterino, com todas as nossas necessidades satisfeitas, ao som contínuo e protetor do coração materno. De repente, somos expulsos desse paraíso e temos que respirar e comer por conta própria. Somos bombardeados por luzes e sons estranhos e insuportáveis. Caímos no mais extremo desamparo.

A partir daí, todo o nosso esforço vital é voltado para recuperar esse paraíso perdido. E qualquer obstáculo no caminho que escolhemos para chegar a ele é vivido como uma ameaça a ser destruída sumariamente. Aliado a isso, temos uma enorme preguiça em procurar saber quais as verdadeiras causas do nosso mal-estar no mundo. Daí, a solução mais fácil é chamar a polícia, contratar segurança privada, subir os muros de nossas casas, deixar que o medo nos isole cada vez mais dos nossos semelhantes. Estas são as verdadeiras ditaduras. A do medo e a da preguiça do pensamento.

Mais uma vez, abaixo as ditaduras.

13 setembro 2011

Limites




Quero pedir desculpas aos leitores pelo assunto que vou tratar nesta crônica. Nunca fiz isto, mas desta vez acho necessário, pois eu, que me considero calejado na escuta das misérias humanas, me senti atingido quando li a notícia no jornal. Fico imaginando, portanto, o quanto o fato deve ferir a sensibilidade dos menos traquejados com as manifestações quotidianas do mal.

Quatro pedras de crack. Quatro míseras pedras de crack foi o que um pai, no interior da Paraíba, recebeu de um traficante em troca de sua filha de quatro anos. Uma pedra para cada ano de vida. Recebido o pagamento, o homem enrolou a filha num lençol, vestida apenas com um short, e a levou para um matagal onde o estuprador esperava.

No domingo passado, comemoramos o aniversário de quatro anos da minha primeira neta. E é no seu corpo frágil e na sua alma esperta que eu penso agora ao tentar compreender essas duas infâmias: o que pode levar um pai a entregar sua filha a um estuprador em troca de qualquer bem, por mais valioso que seja. O que pode fazer uma criatura sentir um impulso sexual por um corpo imaturo e indefeso de uma criança.

Não vamos, em nenhum instante, chamar os criminosos de animais, pois os animais são incapazes de praticar qualquer ato perverso contra os de suas espécies. No terreno do mal, não é a animalidade que deve ser contraposta à humanidade. O contrário do humano é o desumano. Este duplo crime nos coloca nos limites da nossa humanidade. Aponta para o terreno obscuro da desumanidade, para onde qualquer um de nós pode ser remetido, dependendo de nossas circunstâncias.

Foi por isso que comecei esta Crônica com um pedido de desculpas. Peço perdão por ter de lembrar que todos nós corremos o risco de tornarmo-nos desumanos. E que a nossa frágil humanidade dever ser construída a cada instante, principalmente quando somos tomados por sentimentos de ódio e desejos de vingança frente às manifestações quotidianas do mal.

04 setembro 2011

Mentiras em torno do peixe



Não sei o que têm os peixes para atrair mentirosos em sua volta. Pois não são apenas os pescadores que mentem. Todo mundo sabe que os vendedores de peixe também são hábeis mentirosos. Se quiser fazer um teste, chegue junto de um peixe de olhos baços, guelra marrom e a carne afundando ao mais leve toque dos dedos. Pergunte, então, ao vendedor se o peixe é fresco.

Tem também as enganações a respeito dos tipos e espécies. Um vendedor já me disse que qualquer coisa vermelha, até mesmo um batom, eles vendem como cioba.

Um dia, eu estava no mercado do peixe de Tambaú, aquele de antigamente, com o cheiro de podre estendendo-se por quilômetros de distância. Tinha comprado umas postas de beijupirá e fiquei por ali, conversando mole com os peixeiros. Logo chegou uma madame que perguntou se tinha arabaiana, pois ela só comia arabaiana. Na maior cara de pau, o vendedor cortou as postas de arabaiana do mesmo beijupirá que me tinha vendido. A madame saiu satisfeita, pagando quase mais da metade do que eu havia pago pelo mesmo peixe. Depois disso, dá para acreditar em conversa de peixeiro?

Toda essa conversa é para contar o que aconteceu quando fui, no sábado pela manhã, comprar o peixe que ilustra esta crônica. O vendedor me disse que era uma arabaiana. Quando eu contestei, dizendo que arabaiana é castanha, apressou-se em dizer que aquela era uma arabaiana preta, muito conhecida por quem entende de peixe. Ante a minha expressão desconfiada, perguntou ofendido se eu o estava chamando de mentiroso. Claro que eu disse que não, pois, arabaiana ou não, eu tinha simpatizado com a cara do peixe.

Domingo de noite, aproveitando a casa vazia de filhos e netas, botamos a suposta arabaiana no forno para depois consumi-la acompanhada por um honesto vinho verde. Pouco importava se o vendedor havia mentido ou não. O peixe estava uma delícia.

Depois de fome e sede saciadas, dediquei um enorme perdão a todos os que mentem em torno dos peixes. Sei que não devia confessar, mas até eu, para não perder a fama de grande conhecedor de peixes, de vez em quando minto quando não sei o nome do peixe que comprei.

30 agosto 2011

Justiça

Quando a gente pensa que já viu e ouviu tudo sobre os limites da intolerância religiosa, sempre aparece um fato novo para enriquecer o nosso museu de horrores obscurantistas.

A notícia saiu primeiro no Ynet, um site de notícias israelense, e depois foi duplicada pela BBC: um tribunal judaico ultraortodoxo de Jerusalém condenou um cachorro vira-lata à morte por apedrejamento. O motivo da condenação foi o temor de que o cachorro fosse a reencarnação de um advogado que insultou os juízes daquele tribunal há vinte anos atrás. Na ocasião, os juízes desejaram que o espírito do advogado entrasse no corpo de um cão, animal tido como impuro no judaísmo tradicional.

Mas o tal cachorro é mesmo um endiabrado. Conseguiu escapar do prédio do tribunal antes que a sentença fosse cumprida. Inconformado com a fuga, um dos juízes fez um amável pedido às crianças da comunidade: que executassem a sentença matando o cachorro a pedradas.

É de estarrecer que em pleno século XXI um grupo de homens tidos como sábios achem que estão fazendo justiça quando estão apenas dando vazão aos seus instintos mais primitivos, baseados nas crendices mais obscuras. Claro que a sentença de morte dada ao cachorro deveria, se fosse permitido, ter como alvo o advogado que insultou o tribunal. É apenas mais uma manifestação do desejo de morte a tudo aquilo que nos é estranho. Mas o que é mais gritante é a crença absurda na transmigração das almas, como se a alma de um homem morto pudesse sair passeando no corpo de um bicho ou descansando nos cristais de uma pedra.

Pobre Jerusalém, que depois de servir de cenário a todas as atrocidades cometidas em nome das religiões, ainda ter que sofrer a ameaça de ver o sangue de mais um inocente banhar as suas ruas milenares.

Imagem obtida em: http://boasrisadasempre.blogspot.com

23 agosto 2011

Crueldade



Quando a professora foi morar no bairro de Manaíra, sua rua era feita de casas, todas com quintal e jardim onde pessoas, pássaros e bichos viviam em paz. Os sagüis saíam da mata próxima e vinham comer as frutas maduras dos quintais.
Com o tempo, as casas foram cedendo terreno aos espigões que alimentam a fome das imobiliárias. A casa da professora se tornou um ponto de resistência ao furor especulativo, cercada de paredões de concreto por todos os lados. Como conseqüência natural, os bichos que antes perambulavam pelos quintais passaram a se concentrar no oasis do quintal da professora. Pássaros, gatos e sagüis fizeram dali o último refúgio contra a devastação do seu espaço vital.
Mas a maldade dos homens não se contenta com o resultado indireto de seus desvarios. Os vizinhos da professora se sentiram incomodados com o cuidado que ela dispensava aos animais. E começaram a dar fim aos bichos com o uso de venenos.
Quando a professora demonstrou sua indignação, a violência dos vizinhos evoluiu para a mais pura crueldade. Passaram a executar rituais macabros em que os animais eram torturados e mortos sob a algazarra excitada dos criminosos. E junto aos gritos de dor dos animais, eles gritavam o nome da professora, para deixar bem claro que era a ela que eles gostariam de torturar e matar.
A professora que ama os gatos e os sagüis, ama também os homens e as mulheres. Seu espírito é forjado na luta política. Sua voz sempre foi e será ouvida em defesa de qualquer criatura em sofrimento. Os seus vizinhos alucinados fazem parte do velho e podre grupo de poderosos que não se furtam em torturar qualquer criatura - homem, gato ou sagüi - que interfira na sua acumulação insaciável de poder e de gozo.


17 agosto 2011

Solenidade

Era realmente uma sessão solene. A escritora e
humanista Maria Valéria Rezende recebia o título de cidadã na Câmara Municipal de João Pessoa, proposto pela Vereadora Sandra Marrocos. O ambiente fervia de emoção com a sucessão de manifestações de carinho e respeito pela amiga fraterna. De repente, o clima foi rompido por uma gargalhada vinda das galerias. A pessoa que falava tentou recuperar o tom emotivo, mas uma nova gargalhada se chocou contra a redoma de afeto que nos envolvia.

Como de costume nessas ocasiões, reagi instintivamente, mandando com um gesto que o dono da gargalhada saísse dali. Mas depois, pensando no fato, cheguei à conclusão de que nós, os amigos de Valéria, é que estávamos incomodando. A hiena estava em seu ambiente natural. Pois, com as raras e honrosas exceções, as casas do poder legislativo, em todos os níveis, têm se mostrado como cenários propícios à galhofa e o desrespeito à solenidade da nossa cidadania.

Não há nada mais deprimente do que assistir nos noticiários ao descaso dos parlamentares pelo que está sendo dito nas tribunas. Não podemos ouvir o que eles conversam entre si, aos cochichos e olhares de esguelha. Muito menos iremos saber o que causa as explosões gostosas de riso entre os grupelhos mais afastados da cena. Mas de uma coisa podemos ter certeza: eles não estão cuidando de nossos interesses. Cochichos, trejeitos e gargalhadas são indícios de que estão nos escondendo coisas e rindo às nossas custas.

Pode ser que a presença de Valéria e seus amigos tenha deixado algum fluido bom pairando no plenário da Câmara de Vereadores de João Pessoa. Seria muito bom que os ocupantes daquelas cadeiras se deixassem impregnar pelo espírito solidário e corajoso de Valéria Rezende. Melhor seria que esse espírito envolvesse todas as casas de todos os poderes do País. Talvez assim seus ocupantes cochichassem menos, conchavassem menos e possivelmente trocassem a gargalhada de deboche pelo sorriso fraterno de quem está ali, pago pelo povo, para cuidar do que existe de mais solene neste mundo: a vida de seus semelhantes.

10 agosto 2011

Os desmaios de Angola




Um amigo do Clube do Conto está em Luanda, capital de Angola, ministrando oficinas de teatro. Na semana passada, depois da aula da noite, foi procurado por uma aluna, aflita, justificando o seu atraso porque tinha sido chamada à escola da filha, pois todos os alunos estavam desmaiando. O meu amigo ainda não sabia, mas de julho para cá, mais de 800 estudantes angolanos sucumbiram a esta epidemia.

Em qualquer lugar do mundo, adolescentes desmaiam por vários motivos. Sendo o principal deles a explosão dos hormônios. Mas até aqui, não se encontrou uma causa para os desmaios dos jovens angolanos. Segundo a polícia, nenhuma substância tóxica foi encontrada no sangue das vítimas. O diretor do hospital psiquiátrico de Luanda, por sua vez, que nenhum dos jovens internados por conta dos desmaios foi diagnosticado com qualquer tipo de síndrome. Ele acha que a coisa é de origem psicológica. Uma forma fácil de livrar a cara do governo sobre a gravidade da situação.

E o governo, o que faz o governo de Angola? O que todo governo costuma fazer. Bota a culpa na imprensa, essa eterna irresponsável que só quer levar o pânico à população. E para dar um corretivo nessa cambada, prendeu e interrogou por 23 horas Adão Santiago, um jornalista da Rádio Eclesias que fez uma reportagem sobre casos de desmaios numa escola de Luanda onde dá aulas de Inglês. Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, com sede em Nova Iorque, Adão Tiago foi detido na sala de aula em frente aos seus alunos, por quatro policiais, sem mandado de prisão.

Em qualquer lugar do mundo, adolescentes costumam desmaiar por vários motivos. Principalmente nos delírios coletivos a que são levados por seus ídolos. Os Beatles que o digam. Mas algo muito perigoso deve estar causando os desmaios em Luanda. Algo muito grave, que o governo faz questão de manter em segredo. Mas seja qual for a causa da epidemia, o governo, qualquer governo, tem a obrigação de manter informada a população a quem cabe, por princípio, defender.

03 agosto 2011

Mensagem

A poesia navega à deriva pelas águas turvas do mundo, como uma garrafa com uma mensagem náufraga em seu bojo.
O hobby de Clint Buffing, professor de inglês no estado americano de Kentucky, é procurar e colecionar mensagens em garrafas e tentar encontrar seus remetentes e destinatários. Uma espécie de carteiro do improvável.
Paula Pierce, dona do hotel Beachcomber, na cidade costeira de Hampton Beach, em New Hampshire foi procurada por um repórter do jornal local que lhe falou de um certo professor de inglês que havia encontrado uma mensagem que certamente seria do seu interesse.
Buffing encontrou uma antiga garrafa de Coca Cola à deriva nas águas do mar ao sul do estado americano de New Hampshire. Dentro dela, havia um papel amarelado escrito por um certo Paul, em que pedia a quem encontrasse a mensagem a devolvesse a um certa Tina, dona do hotel Beachcomber, na cidade costeira de Hampton Beach, em New Hampshire. O portador receberia uma recompensa de 150 dólares das mãos da dona do hotel.
Paul e Tina eram os pais de Paula, mortos há aproximadamente trinta anos. A mensagem seria uma espécie de brincadeira de Paul com sua mulher. Terminou servindo de ponte entre o presente e o passado de Paula, criando uma atmosfera poeticamente densa, mesmo tendo como cenário uma cidade balneária ao norte dos Estados Unidos.
Por mais que nos atolemos no lodaçal informático, garrafas à deriva sempre terão o poder de nos levar para terras longínquas, num passado também distante, em que algum náufrago nos pediu socorro.
Náufragos todos, degredados dentro de nós mesmos, esperamos sempre encontrar uma prova de esperança na comunicação com outros náufragos nossos semelhantes, mesmo que esta esperança nos acene de dentro de uma prosaica garrafa de Coca Cola.

26 julho 2011

Um abraço

Eles deviam estar muito felizes. A noite na feira agropecuária de São João da Boa Vista devia estar muito boa para o pai, o filho e suas namoradas. Lá para as três da manhã, as moças, como é costume das moças, foram juntas ao toalete. Pai e filho, de tão felizes, esperaram abraçados a volta das namoradas.

Acontece que eles estavam numa feira agropecuária no interior de São Paulo. Lugar de macho. E logo um bando de machos se aproximou perguntando se eles eram gays. Quando souberam que eram pai e filho, os machos se afastaram para voltar logo depois com um grupo maior de machos. O bando então passou a agredir os dois com socos e pontapés. O filho sofreu ferimentos leves. O pai teve uma orelha decepada a dentadas.

Eis um sinal destes tempos. Por um lado, vários segmentos da sociedade avançam com a adoção de medidas acolhedoras das mais diversas formas de comportamento. Por outro lado, alguns segmentos fecham o círculo da intolerância à diversidade, chegando ao absurdo de condenar uma expressão pública de carinho entre pai e filho.

É com alegria que vejo a cada ano aumentar o número de participantes das paradas gays nos mais diversos cantos do mundo. Recebo como um ato civilizatório a legalização dos casamentos homoeróticos, assim como a adoção de filhos por casais homossexuais. A flexibilização dos dispositivos legais está fazendo com que um número crescente de casais do mesmo gênero se exponha nos lugares públicos, usufruindo livremente de sua cidadania.

Recusar a diferença, já sabemos, é não aceitar no outro aquilo que rejeitamos em nós. Daí o ódio aos homossexuais, às mulheres, aos negros e aos adeptos de crenças diferentes das nossas. Mas o que me impressiona no caso da feira do interior paulista é a não aceitação de qualquer manifestação pública de carinho. Um abraço entre dois homens é uma ameaça à moral fundamentalista do machismo. Mesmo que seja um abraço entre dois amigos. Ou entre um filho e um pai.

17 julho 2011

Púrpura


Velhice também é cultura. Um dia desses fui a uma dermatologista dar uma geral na lataria e aprendi que aquelas manchas avermelhadas que apareceram em minha pele atendem pelo nome poético de púrpura senil. De repente, passei a ter a maior admiração por essas testemunhas inexoráveis do passar do tempo em meu corpo.
Agradeço pelo eufemismo ao poeta (deve ter sido um poeta) que criou uma metáfora tão bela para este atestado do avançar dos meus anos. Uma mancha púrpura pode ser considerada uma espécie de signo de nobreza. Na Roma antiga, só o imperador tinha o direito de usar a cor púrpura em sua roupa. O bom e sábio Nero chegou a punir com a morte quem se atrevesse a vestir ao menos uma cueca púrpura.
Não é a primeira vez que o colorido do organismo me surpreende. Há alguns anos, fiz uma endoscopia e o médico, meu amigo, me deu um DVD com as imagens do exame. Fiquei extasiado ao descobrir que sou cor de rosa por dentro. Mas confesso que não fico confortável quando vejo aquela confusão de cores que o monitor do médico me mostra quando faço uma ultrasonografia. Fico imaginando coisas esquisitas que estariam ocorrendo nos meus órgãos internos, principalmente naquele abrir e fechar das válvulas do coração.
São muitas as cores que nos vestem pela vida. Ficamos vermelhos de raiva, amarelos de vergonha ou verdes de medo. Ficamos também azuis de fome e roxos de tanto amar. Praticamos o humor negro e algumas vezes nos dá um branco na memória. É vasto o espectro que nos habita. Mas só alguns privilegiados podem exibir publicamente a cor púrpura. 
Não me tomem, por favor, por hipocondríaco. Mas passei a conviver melhor com aquelas manchas delatoras depois que descobri o seu nome poético-científico. Claro que dispensaria de bom grado o “senil”. Mas de alguma forma me sinto privilegiado em repartir com os antigos imperadores o privilégio de passear por aí vestido de púrpura. 

12 julho 2011

Benefícios de uma pequena tragédia

Desde que mandei fazer novas estantes, há mais ou menos um ano, venho adiando a arrumação dos meus livros. Tinha uma vaga idéia onde eles estavam. Separei mais ou menos por assunto nas prateleiras, deixei ao alcance da mão os mais requisitados e fui tocando, movido pela preguiça e pela possibilidade de uma reforma que acabou adiada sine die.

Daí, aconteceu uma tragédia. O excesso de chuva encharcou uma parede e, quando dei por mim, o mofo estava definitivamente instalado em quatro prateleiras. Dada a sua fragilidade proveta, a minha coleção do Thesouro da Juventude foi a mais prejudicada. Mas teve outras preciosidades atingidas. Um livro bilíngüe de poesia universal e uma coletânea de poetas franceses contemporâneos, dentre outros, também foram atingidos. Definitivamente, uma tragédia.

Mas essas pequenas hecatombes domésticas sempre têm o seu lado bom. Depois de cavucar na internet, descobri que colocar pequenos recipientes com algodão embebido em terebentina serve para matar os fungos do mofo. Pequenos potes com cal virgem também ajudam a absorver a umidade. Não custa nada tentar.

O melhor de toda essa história é que me vi obrigado a por uma ordem nos meus livros. A partir disso, a trabalheira se transformou em prazer. Ter nas mãos cada um desses velhos e novos companheiros de viagem me leva a reviver os momentos em que cada um deles entrou na minha vida. Comecei hoje, e não sei quando vou terminar. Pois isso não é trabalho que se faça de enfiada, com o piloto automático ligado. É coisa a ser feita com cuidado, pegando cada livro com carinho, abrindo alguns deles numa página marcada com um pedaço de papel e ficar lendo algum trecho sublinhado, tentando adivinhar o que se estava pensando ou escrevendo quando se fez o tal destaque.

Depois, procura-se as melhores companhias para cada volume. Coisa difícil, pois alguns são inclassificáveis, sugerindo dois ou mais lugares nas estantes. Outros, de tão importantes em nossa vida, merecem um pedestal ou uma prateleira inteira para cada um deles. E tem o proletariado dos livros didáticos, além dos exilados para as prateleiras superiores pelo simples pecado de não fazer parte dos nossos interesses atuais. Mas cada um com o seu quinhão de história para lembrar.

Arrumar os livros é uma tarefa exaustiva, tanto do ponto de vista físico quanto do emocional. Na minha idade, já não é tão fácil subir e descer escada com alguns livros na mão. Também é difícil conter a emoção que me desperta cada um desses companheiros deste já não muito curta existência.            

05 julho 2011

A feira, a vida




“Morrer é não mais ir à feira”, diz o poeta Águia Mendes, no poema de abertura do seu livro “Sol de algibeira”. É por isso que vou á feira duas vezes por semana: para me sentir vivo. E não estou falando daquele amontoado sem graça de frutas e verduras compradas às pressas nos supermercados. Feira, pra mim, é um lugar sagrado, aonde vou conversar com as pessoas, ouvir suas queixas, escutar histórias, aprender novas formas de maldizer.

Claro que compro coisas. Tenho meus fregueses fixos a quem só abandono quando descubro que estão me enganando. Por exemplo, passei mais de vinte anos comprando peixe a um velho de muito boa prosa, até que um dia ele me vendeu um peixe estragado. Quando voltei lá para reclamar, ele me disse na maior cara de pau: a gente tenta passar a mercadoria ruim. Se colar, colou. Nunca mais comprei nada a ele, embora continuasse parando em frente à sua pedra para escutar suas histórias.

Muita gente não vai mais à feira. Prefere a comodidade dos supermercados. De alguma forma, já estão meio mortos. Meio mortas estão também as nossas próprias feiras. A que freqüento, no bairro dos Estados, é uma espécie de cloaca, em que o sangue das carnes postas á venda a céu aberto se mistura com as águas sujas e os restos de frutas e verduras estragadas que os feirantes jogam em qualquer canto.

Toda vez que vou a São Paulo, faço questão de ir a uma feira. Gosto de ver as frutas e verduras bem arrumadas, o chão limpo, o cuidado com a higiene, a pluralidade de produtos refletindo o pluralismo étnico da cidade. Bem que as feiras daqui poderiam minimamente se aproximar desse modelo mais higiênico e confortável. Desde que não perdêssemos o gosto pela conversa, pela pechincha, pelo maldizer.

É fundamental que as feiras continuem vivas, para que eu também continue vivo. Pois a vida é aquele burburinho, aqueles riachos de gente passando entre as barracas. Aquela catinga de tantos cheiros misturados. O poeta Águia Mendes tem toda razão: “morrer é não mais ir à feira”. Vida longa, portanto, ao poeta, a nós e à feira.

Ilustração: Aracy. Acrílico sobre tela.

27 junho 2011

Vista cansada





Às vezes me dá um certo cansaço de ver as coisas. Principalmente quando elas se repetem, sem me causar nenhum espanto. E neste mundo uniformizado, é muito raro aparecer algo que realmente chame nossa atenção. Veja a moda, por exemplo. Monte um posto de observação em qualquer lugar de um shopping e espere passar as moças. Todas elas, ou quase todas, passarão de short bem curto, sapatos de salto agulha, uma camiseta estampada e os indefectíveis óculos escuros enormes, cobrindo metade do rosto. Os moços, então, nem me falem. É um exército fardado de bermudões no meio da canela, tênis de marca, camisas de malha com uma estampa esquisita e uma frase em inglês indecifrável. Coroando tudo, um boné de aba longa que esconde as caras, acentuando a uniformidade. Claro que existem variações, mas são variações previsíveis, também ditadas pelos ditadores da moda.

Me cansa muito também ver a repetição dos fatos na televisão, no rádio e nos jornais. Violência, corrupção, desastres naturais ou artificiais. Celebridades escandalosas, motoqueiros suicidas, fugas de prisioneiros e os padres disputando venda de cd com forrozeiros de plástico.

A ciência chama de presbita a pessoa que não vê direito as coisas mais próximas. Mas não é por acaso que a palavra presbítero, com que os antigos chamavam as pessoas velhas, é usada também para designar os pastores de algumas religiões protestantes. Ser um presbítero é, ao mesmo tempo, ser experiente e capaz de tomar conta de um rebanho de almas. De certa forma, é uma pessoa que vê melhor, com sabedoria, as coisas distantes, difíceis de ser discernidas pelos mais jovens.

Gostaria muito que o cansaço de minha vista fosse devido apenas ao tempo em que gastei olhando o mundo. Mas o cansaço maior se deve ao trabalho permanente de procurar alguma coisa que me surpreenda em meio a tanta banalidade, tanta repetição. Alguma coisa que me encha os olhos, que faça descansar a minha vista cansada.

21 junho 2011

Inverno

As moças do tempo informam que o inverno começou na terça-feira, 21 de junho, exatamente às 14 horas e 16 minutos. E dizem mais: que este mesmo inverno vai nos chatear durante 93 dias, 15 horas e 49 minutos.

Não sei para que serve tanta precisão. Pelo menos aqui no litoral do nordeste, inverno é sempre um período indefinido em que a chuva atrapalha nossa praia. No mais, a temperatura baixa um pouco, o que leva alguns (algumas) extravagantes a usar a roupa de frio que estava guardada desde a última viagem a São Paulo.

Puxando pelo que me resta de memória, lembro das tardes chuvosas em que as luzes da rua se acendiam mais cedo com a chegada apressada da noite, o que dava a impressão que meu pai demorava mais a voltar do trabalho. Da janela da frente, o futuro nostálgico já se demorava vendo a água correr ligeira pelo meio-fio da rua deserta e encharcada.

No mais, tinha as férias do primeiro semestre, quando eu ia com meu irmão para a casa dos meus tios numa usina de Alagoas. Ali sim, fazia frio. A gente acordava de manhã e a serração não permitia que víssemos a parede dos fundos do grupo escolar que ficava a uns cinqüenta metros da casa. E se tiritava na volta do cinema, lá para as dez da noite. Aí ganhava sentido aquela música junina da “noite fria tão fria de junho”.

Sei que cada um tem um inverno dentro de si, pessoal e intransferível. Mas desconfio que o inverno de todo mundo é triste. É um tempo de ficar trancado em casa, sentindo o cheiro de mofo que sai das estantes e dos guarda-roupas. De vez em quando um pigarro na garganta, vez por outra o nariz escorrendo.

Com um pouco de boa vontade, porém, é possível criar alguns momentos bons no inverno. Pode ser bom assistir um filme em boa companhia. Pode-se jogar cartas ou conversa fora, dependendo da boa companhia. E em boa companhia também se pode inventar alguma coisa boa de fazer para esquentar o corpo.

15 junho 2011

Thesouro


Ela chegou na minha casa antes de mim. Desde que me entendo de gente que os dezoito volumes da coleção do “Thesouro da juventude” me olham do alto da estante do meu pai. Sempre pensei que ela ficaria, depois de mim, na estante da casa de um dos meus filhos. Mas foi com o maior pesar que descobri que os volumes de capa dura azul e miolo de papel couchê estavam cobertos de mofo. Quase todas as páginas estavam úmidas, algumas já se desmanchando ao mais leve toque.


Vocês podem muito bem imaginar a minha desolação. Cheguei a pensar em me desfazer dela. Não jogando-a fora, simplesmente. Haveria de ser com um ritual crematório digno da sua importância. Mas não tive coragem. Sob as ordens de minha mulher, duas boas samaritanas se dedicaram ao trabalho de expô-las ao sol para depois limpar todas as páginas, uma a uma, com um pano embebido em vinagre. Era como assistir o lento trabalho de uma equipe médica contra a morte de um ente querido.

Os livros ainda estão lá, no terraço da frente, arrumados em duas bacias de plástico para receber os raios generosos que o sol ofertou como uma trégua nesses dias chuvosos e friorentos. Em breve, estarão de volta ao seu lugar na estante do meu escritório. E de lá continuarão me olhando, saudosos dos meus olhos e mãos de menino que neles iam encontrar as respostas para minhas primeiras perguntas e os primeiros rumores de beleza e sabedoria que iria continuar a buscar vida a fora.

Talvez suas páginas nunca mais sejam visitadas, nem mesmo por mim. Mas é fundamental que esses livros continuem ali, me olhando do alto. Pois de toda a multidão que me guarda as costas e os flancos, eles foram os primeiros a mostrar a minha pequenez frente ao conhecimento do mundo. Muito mais que isto, eles servem para me lembrar que o mundo ainda tem muito o que mostrar aos meus antigos olhos de menino.

07 junho 2011

Gina

Para Branca, Rubens e Gesiel


Para mim, a moça da caixa dos palitos Gina era uma prova da existência da fonte da juventude. Como diz a embalagem, os palitos Gina existem desde 1947, o ano em que eu nasci. Ora, se há 64 anos a tal Gina já era uma moça feita, de seus vinte anos, como mostrava a foto, então ela deveria estar passando dos oitenta. E sempre com aquele ar de caipira saudável, os vastos dentes à mostra, como se devessem sua beleza ao uso dos tais palitos.

A curiosidade, dizem, matou o gato. A mim, ela matou uma ilusão. Fui ver no Google se existia alguma referência à moça dos palitos Gina. Existia sim. E muitas. No site de relacionamentos Orkut existem comunidades como "Eu amo Gina” e “Eu tenho medo da Gina”. Mas acontece que na vida real a Gina se chama mesmo Zofia Burk, uma das modelos publicitárias mais requisitadas em sua época. Sua foto ilustra a caixa de palitos desde 1975. São 36 anos de sorriso em nossas mesas.

Mas a carreira de Zofia terminou exatamente quando ela se eternizou na embalagem de palitos. Sua identificação com a marca foi tamanha que inviabilizou a assinatura de outros contratos. Dali em diante, ela seria apenas a Gina Palito. E não ganhou nada com isto além do cachê para a foto. Chegou a processar a empresa, em busca de uma justa participação no faturamento, mas desistiu da ação. Tocou sua vida, cursou psicologia e se tornou guia turística. E ainda guarda um pouco de mágoa por nunca ter sido convidada para conhecer a fábrica que ajudou a tornar famosa.

Depois de conhecer a história de Zofia Burk, decidi deixar de comprar os palitos Gina. Não gosto de ingratidão. Ainda mais que esses palitos estão vindo mal-acabados, quebrando fácil, soltando lascas. Pretendo voltar aos velhos palitos Monroe, achatados, macios, em sua caixa branca onde ondulava ao vento uma floresta de eucaliptos, que por certo ainda existem em algum lugar perdido da minha infância.

01 junho 2011

Esconde-esconde

A memória brinca de se esconder comigo. Certos fatos correm de mim agora, e só mais tarde ou nunca mais mostram sua cara. Esta semana mesmo, a memória me pregou uma peça. O escritor Nilto Maciel, um caro amigo virtual, mandou um e-mail dizendo que tinha postado uma crônica minha no seu blog. Fui lá conferir e tomei um susto, pois o texto estava ilustrado com uma foto da pequena Ana Torrent no filme “Cria Cuervos...”, do Carlos Saura. Intrigado, perguntei ao Nilto se ele era algum médium sensitivo pitonisa, ou se tinha algum informante dentro da minha casa, pois de alguma forma ele sabia que eu tinha comentado o “Cria cuervos...” no sábado passado, no cine-clube do Zarinha Centro Cultural. O Nilto não demorou muito para desfazer minhas suspeitas sobrenaturais. A informação sobre o filme estava justamente na minha crônica que ele havia publicado. Eu simplesmente tinha me esquecido deste detalhe.

É a idade. Só pode ser a idade, respondi para o Nilto. E acrescento aqui: para envelhecer sem muita angústia, é preciso aprender a brincar com a memória. Se sabemos que ela esconde os fatos mais recentes, podemos aprender a registrá-los de alguma forma. Ter uma agenda facilita muito. Meu Outlook me avisa com uma semana de antecedência os compromissos mais importantes. O risco é esquecer de anotá-los.

Mas se a memória falha nos fatos mais recentes, ela fica mais colorida com as coisas mais antigas. Por uma razão muito simples: a maioria dessas lembranças são invenções, brincadeiras da memória para nos esconder também o que vivemos de amargo e doloroso.
Envelhecer é aprender a brincar de esconde-esconde com as lembranças. Mesmo que algumas vezes seja uma brincadeira de mau-gosto. Mas aí já não é culpa da memória. Tem uma coisa a mais nos roendo por dentro. Daí a memória não quer mais brincar e vai embora.

24 maio 2011

Sombras e melancolia


Sobre o novo livro de Hildeberto Barbosa
À sombra do soneto e outros poemas

O poeta é aquele que se debruça nas bordas do seu próprio abismo e dali contempla o que não é e poderia ter sido. O poeta é um saudoso de si mesmo. Por isso, todo poeta é triste.

Hildeberto é poeta. Logo, é triste. Sofre dessa saudade de si mesmo a que se convencionou chamar melancolia. E o seu novo livro, À sombra do soneto e outros poemas é o seu testamento melancólico.

O teor melancólico começa pela própria escolha da forma da maioria dos poemas que compõem a obra. Como se vivesse ofuscado pelo excesso de luz com que o contemporâneo fere seus olhos, o poeta refugia-se na sombra geométrica dos sonetos, contrapondo aos excessos sonoros das ruas este pequeno som (soneto) para vasculhar as sombras do seu abismo.

E lá, no fundo do poço, passeiam as imagens irrecuperáveis do seu relicário poético. As coisas do amor, da terra de nascença, da infância vivida nas léguas de sol e cinza e as lições definitivas das pedras. Um cata-vento, um juazeiro, um vaqueiro, um boi e um canário vivem ali. E ali morre uma mãe. Tudo o que o poeta perdeu e ainda permanece.

Permanece o berço de pedra, a comarca das pedras, permanece o amor e a espera da morte que Hildeberto mente em não temer, pois para ele a morte “é apenas a névoa batendo no rochedo”.

Vencido o ciclo asfixiante dos sonetos, o poeta nos dá Outros poemas, em que disfarça mal o fumo melancólico do seu poço. Lá está um arroubo perdoável, uma loa à flama ardente que consome o seu coração rubro-negro. Mas logo volta o tema recorrente: “sempre amei as pedras”. Desde as pedras de sua trágica Aroeiras à pedra preciosa da poesia. E o poeta avisa a quem lima o diamante das palavras “que a poesia/é sagrada matéria/coroada de luz/ e abismo”. Lembra ainda “que em cada artéria/de sílaba e silêncio/pulsa o coração/de Deus/ e sangra o coração/do homem.”

Convido o leitor a se debruçar sobre o abismo do livro de Hildeberto Barbosa. Tenho certeza de que cada um de nós nele encontrará suas próprias sombras. E pagará o preço do encontro com a moeda da sua própria melancolia.

15 maio 2011

Invasão bárbara


Estava tudo programado para ser um sábado sofisticado. Começou logo nas primeiras horas, quando saímos de um bom restaurante onde jantamos um excelente salmão acompanhado de um vinho razoável. O que estava previsto em seguida, depois de umas boas horas de sono, era dedicarmos o dia a atividades exclusivamente culturais. Precisava me preparar para um encontro com a escritora Ana Miranda, o que incluía ler e reler alguns de seus livros e consultar sobre ela na internet. Além disso, precisávamos assistir “Cria cuervos”, de Carlos Saura, pois tinha sido convidado para comentá-lo numa sessão especial de cinema. Iríamos passar o sábado numa espécie de levitação.
Acontece que o homem põe, Deus dispõe e a mulher impõe. Deus até parece que havia concordado com a programação cultural. Mas minha mulher lembrou de uma receita de churrasco feito em panela de pressão que tínhamos visto no início da semana no programa de Ana Maria Braga. O problema era que nenhuma das nossas panelas estava em condições dignas de participar de semelhante evento culinário. Ante à proposta de minha mulher de adiar o prato para um dia em que tivéssemos uma panela de pressão decente, me indignei e tomei a decisão que se espera de um verdadeiro varão: hoje vai ter churrasco nesta casa, nem que eu tenha que mover céus e terras. Mover céus e terras, neste caso, consistia em pegar o carro e dar um pulo no shopping, o que foi feito em pouco menos de uma hora.
Nem precisou que o portão automático se abrisse todo para que aparecesse a figura arredondada do meu irmão, impaciente por não ter ainda iniciado os trabalhos do sábado. Daí em diante, dá pra imaginar o que aconteceu com o meu programa cultural. Livros e filme foram alegremente substituídos por fartos pedaços de carne, metros de lingüiça, generosos goles de cachaça e decalitros de cerveja bem gelada.
Saura e Ana Miranda que nos perdoem, mas não é todo dia que se compra uma panela de pressão.

10 maio 2011

Duas faces da maldade



Foi num mesmo dia da semana passada. Em dois canais diferentes de televisão. Primeiro, passou um documentário sobre a ablação do clitóris, ainda praticada em 28 países africanos. Depois, foi uma reportagem sobre os maus-tratos sofridos pelas pacientes da Maternidade Leila Diniz, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
O documentário exibia cruamente um ritual de extirpação do clitóris de uma adolescente que aparece depois, evolvida num manto azul, falando do tamanho da dor que acabara de sentir.
A reportagem, depois de mostrar as cenas já batidas de enfermarias lotadas e corredores apinhados de macas, mostra uma mulher recém saída da sala de cirurgia, colocada numa cadeira desconfortável, que reclamava: “Sentada em cima dos pontos, dói. Dói pra caramba.”
Estima-se que cerca de 115 milhões de mulheres sofreram mutilações genitais em todo o mundo. Mas esta prática vem sendo combatida através de movimentos internacionais pelo direito ao controle do corpo e da sexualidade. E para que estes direitos sejam respeitados, é necessário o recurso às leis.
Não sabemos quantas mulheres têm negado o seu direito a um tratamento digno num dos momentos mais importantes de suas vidas, em que dão à luz um novo ser humano. Mas sabemos que há leis obrigando o Estado a cuidar da saúde dos seus cidadãos, principalmente dos pequenos cidadãos recém-nascidos e suas mães.
Talvez o que esteja faltando seja um movimento internacional que chame a atenção do mundo para a maldade que se comete não apenas com as mulheres recém-paridas neste País. Somos todos nós que somos postos a sentar em cima dos pontos dados às pressas nessa ferida vergonhosa em que se transformou a saúde pública no Brasil.

03 maio 2011

Generosidade cotidiana

Não vou falar da morte de Bin Laden, nem dos espetáculos midiáticos patrocinados pelas monarquias decadentes da Inglaterra e do Vaticano. Tampouco me interessa a composição da comissão de ética do Senado nem os rumores sobre a volta da inflação. Nada disso tem valor se comparado aos atos de generosidade com que somos contemplados no cotidiano.

Vejam se não tenho razão: cheguei em casa um dia desses e encontrei sobre a mesa o novo livro de poemas de Eloi Firmino de Melo, “Um floral de sombras”. A capa é bonita, os poemas são bons e me deixaram alegre um bom tempo. Outro dia, depois de algum tempo de aborrecimento numa agência bancária, ainda na fila do caixa eletrônico, recebo das mãos amigas do Águia Mendes outros dois livros de poemas: “Sol de algibeira”, em que o poeta passeia entre a morte e a paixão, e “Um boi pastando nas nuvens”, escrito para os nossos resquícios de infância.

É raro o dia em que não saio de casa de mãos abanando e volto com algum presente impresso dado por algum amigo poeta. Às vezes, nem tão amigo, às vezes nem tão poeta, mas a generosidade é boa e verdadeira.

Mas a generosidade que me cerca não se resume a livros bem ou mal escritos. Esta semana, uma vizinha, até que nem muito próxima, nos deu três abacates colhidos em seu próprio quintal. Me fez lembrar uns vizinhos que tive no Recife, com nossos quintais separados por um muro baixo que nos permitia saber das novidades sem sair de casa. O bom dessa intimidade é que, todos os sábados, entre as onze e o meio dia, lá estava um copo de cuba-libre me esperando suado em cima do muro.

Parece mentira que ainda existam vizinhos assim, por trás desses muros altos e cercas eletrificadas. Mas eles existem e nos dão de presente o fruto secreto de sua generosidade.