26 julho 2011

Um abraço

Eles deviam estar muito felizes. A noite na feira agropecuária de São João da Boa Vista devia estar muito boa para o pai, o filho e suas namoradas. Lá para as três da manhã, as moças, como é costume das moças, foram juntas ao toalete. Pai e filho, de tão felizes, esperaram abraçados a volta das namoradas.

Acontece que eles estavam numa feira agropecuária no interior de São Paulo. Lugar de macho. E logo um bando de machos se aproximou perguntando se eles eram gays. Quando souberam que eram pai e filho, os machos se afastaram para voltar logo depois com um grupo maior de machos. O bando então passou a agredir os dois com socos e pontapés. O filho sofreu ferimentos leves. O pai teve uma orelha decepada a dentadas.

Eis um sinal destes tempos. Por um lado, vários segmentos da sociedade avançam com a adoção de medidas acolhedoras das mais diversas formas de comportamento. Por outro lado, alguns segmentos fecham o círculo da intolerância à diversidade, chegando ao absurdo de condenar uma expressão pública de carinho entre pai e filho.

É com alegria que vejo a cada ano aumentar o número de participantes das paradas gays nos mais diversos cantos do mundo. Recebo como um ato civilizatório a legalização dos casamentos homoeróticos, assim como a adoção de filhos por casais homossexuais. A flexibilização dos dispositivos legais está fazendo com que um número crescente de casais do mesmo gênero se exponha nos lugares públicos, usufruindo livremente de sua cidadania.

Recusar a diferença, já sabemos, é não aceitar no outro aquilo que rejeitamos em nós. Daí o ódio aos homossexuais, às mulheres, aos negros e aos adeptos de crenças diferentes das nossas. Mas o que me impressiona no caso da feira do interior paulista é a não aceitação de qualquer manifestação pública de carinho. Um abraço entre dois homens é uma ameaça à moral fundamentalista do machismo. Mesmo que seja um abraço entre dois amigos. Ou entre um filho e um pai.

17 julho 2011

Púrpura


Velhice também é cultura. Um dia desses fui a uma dermatologista dar uma geral na lataria e aprendi que aquelas manchas avermelhadas que apareceram em minha pele atendem pelo nome poético de púrpura senil. De repente, passei a ter a maior admiração por essas testemunhas inexoráveis do passar do tempo em meu corpo.
Agradeço pelo eufemismo ao poeta (deve ter sido um poeta) que criou uma metáfora tão bela para este atestado do avançar dos meus anos. Uma mancha púrpura pode ser considerada uma espécie de signo de nobreza. Na Roma antiga, só o imperador tinha o direito de usar a cor púrpura em sua roupa. O bom e sábio Nero chegou a punir com a morte quem se atrevesse a vestir ao menos uma cueca púrpura.
Não é a primeira vez que o colorido do organismo me surpreende. Há alguns anos, fiz uma endoscopia e o médico, meu amigo, me deu um DVD com as imagens do exame. Fiquei extasiado ao descobrir que sou cor de rosa por dentro. Mas confesso que não fico confortável quando vejo aquela confusão de cores que o monitor do médico me mostra quando faço uma ultrasonografia. Fico imaginando coisas esquisitas que estariam ocorrendo nos meus órgãos internos, principalmente naquele abrir e fechar das válvulas do coração.
São muitas as cores que nos vestem pela vida. Ficamos vermelhos de raiva, amarelos de vergonha ou verdes de medo. Ficamos também azuis de fome e roxos de tanto amar. Praticamos o humor negro e algumas vezes nos dá um branco na memória. É vasto o espectro que nos habita. Mas só alguns privilegiados podem exibir publicamente a cor púrpura. 
Não me tomem, por favor, por hipocondríaco. Mas passei a conviver melhor com aquelas manchas delatoras depois que descobri o seu nome poético-científico. Claro que dispensaria de bom grado o “senil”. Mas de alguma forma me sinto privilegiado em repartir com os antigos imperadores o privilégio de passear por aí vestido de púrpura. 

12 julho 2011

Benefícios de uma pequena tragédia

Desde que mandei fazer novas estantes, há mais ou menos um ano, venho adiando a arrumação dos meus livros. Tinha uma vaga idéia onde eles estavam. Separei mais ou menos por assunto nas prateleiras, deixei ao alcance da mão os mais requisitados e fui tocando, movido pela preguiça e pela possibilidade de uma reforma que acabou adiada sine die.

Daí, aconteceu uma tragédia. O excesso de chuva encharcou uma parede e, quando dei por mim, o mofo estava definitivamente instalado em quatro prateleiras. Dada a sua fragilidade proveta, a minha coleção do Thesouro da Juventude foi a mais prejudicada. Mas teve outras preciosidades atingidas. Um livro bilíngüe de poesia universal e uma coletânea de poetas franceses contemporâneos, dentre outros, também foram atingidos. Definitivamente, uma tragédia.

Mas essas pequenas hecatombes domésticas sempre têm o seu lado bom. Depois de cavucar na internet, descobri que colocar pequenos recipientes com algodão embebido em terebentina serve para matar os fungos do mofo. Pequenos potes com cal virgem também ajudam a absorver a umidade. Não custa nada tentar.

O melhor de toda essa história é que me vi obrigado a por uma ordem nos meus livros. A partir disso, a trabalheira se transformou em prazer. Ter nas mãos cada um desses velhos e novos companheiros de viagem me leva a reviver os momentos em que cada um deles entrou na minha vida. Comecei hoje, e não sei quando vou terminar. Pois isso não é trabalho que se faça de enfiada, com o piloto automático ligado. É coisa a ser feita com cuidado, pegando cada livro com carinho, abrindo alguns deles numa página marcada com um pedaço de papel e ficar lendo algum trecho sublinhado, tentando adivinhar o que se estava pensando ou escrevendo quando se fez o tal destaque.

Depois, procura-se as melhores companhias para cada volume. Coisa difícil, pois alguns são inclassificáveis, sugerindo dois ou mais lugares nas estantes. Outros, de tão importantes em nossa vida, merecem um pedestal ou uma prateleira inteira para cada um deles. E tem o proletariado dos livros didáticos, além dos exilados para as prateleiras superiores pelo simples pecado de não fazer parte dos nossos interesses atuais. Mas cada um com o seu quinhão de história para lembrar.

Arrumar os livros é uma tarefa exaustiva, tanto do ponto de vista físico quanto do emocional. Na minha idade, já não é tão fácil subir e descer escada com alguns livros na mão. Também é difícil conter a emoção que me desperta cada um desses companheiros deste já não muito curta existência.            

05 julho 2011

A feira, a vida




“Morrer é não mais ir à feira”, diz o poeta Águia Mendes, no poema de abertura do seu livro “Sol de algibeira”. É por isso que vou á feira duas vezes por semana: para me sentir vivo. E não estou falando daquele amontoado sem graça de frutas e verduras compradas às pressas nos supermercados. Feira, pra mim, é um lugar sagrado, aonde vou conversar com as pessoas, ouvir suas queixas, escutar histórias, aprender novas formas de maldizer.

Claro que compro coisas. Tenho meus fregueses fixos a quem só abandono quando descubro que estão me enganando. Por exemplo, passei mais de vinte anos comprando peixe a um velho de muito boa prosa, até que um dia ele me vendeu um peixe estragado. Quando voltei lá para reclamar, ele me disse na maior cara de pau: a gente tenta passar a mercadoria ruim. Se colar, colou. Nunca mais comprei nada a ele, embora continuasse parando em frente à sua pedra para escutar suas histórias.

Muita gente não vai mais à feira. Prefere a comodidade dos supermercados. De alguma forma, já estão meio mortos. Meio mortas estão também as nossas próprias feiras. A que freqüento, no bairro dos Estados, é uma espécie de cloaca, em que o sangue das carnes postas á venda a céu aberto se mistura com as águas sujas e os restos de frutas e verduras estragadas que os feirantes jogam em qualquer canto.

Toda vez que vou a São Paulo, faço questão de ir a uma feira. Gosto de ver as frutas e verduras bem arrumadas, o chão limpo, o cuidado com a higiene, a pluralidade de produtos refletindo o pluralismo étnico da cidade. Bem que as feiras daqui poderiam minimamente se aproximar desse modelo mais higiênico e confortável. Desde que não perdêssemos o gosto pela conversa, pela pechincha, pelo maldizer.

É fundamental que as feiras continuem vivas, para que eu também continue vivo. Pois a vida é aquele burburinho, aqueles riachos de gente passando entre as barracas. Aquela catinga de tantos cheiros misturados. O poeta Águia Mendes tem toda razão: “morrer é não mais ir à feira”. Vida longa, portanto, ao poeta, a nós e à feira.

Ilustração: Aracy. Acrílico sobre tela.