30 agosto 2011

Justiça

Quando a gente pensa que já viu e ouviu tudo sobre os limites da intolerância religiosa, sempre aparece um fato novo para enriquecer o nosso museu de horrores obscurantistas.

A notícia saiu primeiro no Ynet, um site de notícias israelense, e depois foi duplicada pela BBC: um tribunal judaico ultraortodoxo de Jerusalém condenou um cachorro vira-lata à morte por apedrejamento. O motivo da condenação foi o temor de que o cachorro fosse a reencarnação de um advogado que insultou os juízes daquele tribunal há vinte anos atrás. Na ocasião, os juízes desejaram que o espírito do advogado entrasse no corpo de um cão, animal tido como impuro no judaísmo tradicional.

Mas o tal cachorro é mesmo um endiabrado. Conseguiu escapar do prédio do tribunal antes que a sentença fosse cumprida. Inconformado com a fuga, um dos juízes fez um amável pedido às crianças da comunidade: que executassem a sentença matando o cachorro a pedradas.

É de estarrecer que em pleno século XXI um grupo de homens tidos como sábios achem que estão fazendo justiça quando estão apenas dando vazão aos seus instintos mais primitivos, baseados nas crendices mais obscuras. Claro que a sentença de morte dada ao cachorro deveria, se fosse permitido, ter como alvo o advogado que insultou o tribunal. É apenas mais uma manifestação do desejo de morte a tudo aquilo que nos é estranho. Mas o que é mais gritante é a crença absurda na transmigração das almas, como se a alma de um homem morto pudesse sair passeando no corpo de um bicho ou descansando nos cristais de uma pedra.

Pobre Jerusalém, que depois de servir de cenário a todas as atrocidades cometidas em nome das religiões, ainda ter que sofrer a ameaça de ver o sangue de mais um inocente banhar as suas ruas milenares.

Imagem obtida em: http://boasrisadasempre.blogspot.com

23 agosto 2011

Crueldade



Quando a professora foi morar no bairro de Manaíra, sua rua era feita de casas, todas com quintal e jardim onde pessoas, pássaros e bichos viviam em paz. Os sagüis saíam da mata próxima e vinham comer as frutas maduras dos quintais.
Com o tempo, as casas foram cedendo terreno aos espigões que alimentam a fome das imobiliárias. A casa da professora se tornou um ponto de resistência ao furor especulativo, cercada de paredões de concreto por todos os lados. Como conseqüência natural, os bichos que antes perambulavam pelos quintais passaram a se concentrar no oasis do quintal da professora. Pássaros, gatos e sagüis fizeram dali o último refúgio contra a devastação do seu espaço vital.
Mas a maldade dos homens não se contenta com o resultado indireto de seus desvarios. Os vizinhos da professora se sentiram incomodados com o cuidado que ela dispensava aos animais. E começaram a dar fim aos bichos com o uso de venenos.
Quando a professora demonstrou sua indignação, a violência dos vizinhos evoluiu para a mais pura crueldade. Passaram a executar rituais macabros em que os animais eram torturados e mortos sob a algazarra excitada dos criminosos. E junto aos gritos de dor dos animais, eles gritavam o nome da professora, para deixar bem claro que era a ela que eles gostariam de torturar e matar.
A professora que ama os gatos e os sagüis, ama também os homens e as mulheres. Seu espírito é forjado na luta política. Sua voz sempre foi e será ouvida em defesa de qualquer criatura em sofrimento. Os seus vizinhos alucinados fazem parte do velho e podre grupo de poderosos que não se furtam em torturar qualquer criatura - homem, gato ou sagüi - que interfira na sua acumulação insaciável de poder e de gozo.


17 agosto 2011

Solenidade

Era realmente uma sessão solene. A escritora e
humanista Maria Valéria Rezende recebia o título de cidadã na Câmara Municipal de João Pessoa, proposto pela Vereadora Sandra Marrocos. O ambiente fervia de emoção com a sucessão de manifestações de carinho e respeito pela amiga fraterna. De repente, o clima foi rompido por uma gargalhada vinda das galerias. A pessoa que falava tentou recuperar o tom emotivo, mas uma nova gargalhada se chocou contra a redoma de afeto que nos envolvia.

Como de costume nessas ocasiões, reagi instintivamente, mandando com um gesto que o dono da gargalhada saísse dali. Mas depois, pensando no fato, cheguei à conclusão de que nós, os amigos de Valéria, é que estávamos incomodando. A hiena estava em seu ambiente natural. Pois, com as raras e honrosas exceções, as casas do poder legislativo, em todos os níveis, têm se mostrado como cenários propícios à galhofa e o desrespeito à solenidade da nossa cidadania.

Não há nada mais deprimente do que assistir nos noticiários ao descaso dos parlamentares pelo que está sendo dito nas tribunas. Não podemos ouvir o que eles conversam entre si, aos cochichos e olhares de esguelha. Muito menos iremos saber o que causa as explosões gostosas de riso entre os grupelhos mais afastados da cena. Mas de uma coisa podemos ter certeza: eles não estão cuidando de nossos interesses. Cochichos, trejeitos e gargalhadas são indícios de que estão nos escondendo coisas e rindo às nossas custas.

Pode ser que a presença de Valéria e seus amigos tenha deixado algum fluido bom pairando no plenário da Câmara de Vereadores de João Pessoa. Seria muito bom que os ocupantes daquelas cadeiras se deixassem impregnar pelo espírito solidário e corajoso de Valéria Rezende. Melhor seria que esse espírito envolvesse todas as casas de todos os poderes do País. Talvez assim seus ocupantes cochichassem menos, conchavassem menos e possivelmente trocassem a gargalhada de deboche pelo sorriso fraterno de quem está ali, pago pelo povo, para cuidar do que existe de mais solene neste mundo: a vida de seus semelhantes.

10 agosto 2011

Os desmaios de Angola




Um amigo do Clube do Conto está em Luanda, capital de Angola, ministrando oficinas de teatro. Na semana passada, depois da aula da noite, foi procurado por uma aluna, aflita, justificando o seu atraso porque tinha sido chamada à escola da filha, pois todos os alunos estavam desmaiando. O meu amigo ainda não sabia, mas de julho para cá, mais de 800 estudantes angolanos sucumbiram a esta epidemia.

Em qualquer lugar do mundo, adolescentes desmaiam por vários motivos. Sendo o principal deles a explosão dos hormônios. Mas até aqui, não se encontrou uma causa para os desmaios dos jovens angolanos. Segundo a polícia, nenhuma substância tóxica foi encontrada no sangue das vítimas. O diretor do hospital psiquiátrico de Luanda, por sua vez, que nenhum dos jovens internados por conta dos desmaios foi diagnosticado com qualquer tipo de síndrome. Ele acha que a coisa é de origem psicológica. Uma forma fácil de livrar a cara do governo sobre a gravidade da situação.

E o governo, o que faz o governo de Angola? O que todo governo costuma fazer. Bota a culpa na imprensa, essa eterna irresponsável que só quer levar o pânico à população. E para dar um corretivo nessa cambada, prendeu e interrogou por 23 horas Adão Santiago, um jornalista da Rádio Eclesias que fez uma reportagem sobre casos de desmaios numa escola de Luanda onde dá aulas de Inglês. Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, com sede em Nova Iorque, Adão Tiago foi detido na sala de aula em frente aos seus alunos, por quatro policiais, sem mandado de prisão.

Em qualquer lugar do mundo, adolescentes costumam desmaiar por vários motivos. Principalmente nos delírios coletivos a que são levados por seus ídolos. Os Beatles que o digam. Mas algo muito perigoso deve estar causando os desmaios em Luanda. Algo muito grave, que o governo faz questão de manter em segredo. Mas seja qual for a causa da epidemia, o governo, qualquer governo, tem a obrigação de manter informada a população a quem cabe, por princípio, defender.

03 agosto 2011

Mensagem

A poesia navega à deriva pelas águas turvas do mundo, como uma garrafa com uma mensagem náufraga em seu bojo.
O hobby de Clint Buffing, professor de inglês no estado americano de Kentucky, é procurar e colecionar mensagens em garrafas e tentar encontrar seus remetentes e destinatários. Uma espécie de carteiro do improvável.
Paula Pierce, dona do hotel Beachcomber, na cidade costeira de Hampton Beach, em New Hampshire foi procurada por um repórter do jornal local que lhe falou de um certo professor de inglês que havia encontrado uma mensagem que certamente seria do seu interesse.
Buffing encontrou uma antiga garrafa de Coca Cola à deriva nas águas do mar ao sul do estado americano de New Hampshire. Dentro dela, havia um papel amarelado escrito por um certo Paul, em que pedia a quem encontrasse a mensagem a devolvesse a um certa Tina, dona do hotel Beachcomber, na cidade costeira de Hampton Beach, em New Hampshire. O portador receberia uma recompensa de 150 dólares das mãos da dona do hotel.
Paul e Tina eram os pais de Paula, mortos há aproximadamente trinta anos. A mensagem seria uma espécie de brincadeira de Paul com sua mulher. Terminou servindo de ponte entre o presente e o passado de Paula, criando uma atmosfera poeticamente densa, mesmo tendo como cenário uma cidade balneária ao norte dos Estados Unidos.
Por mais que nos atolemos no lodaçal informático, garrafas à deriva sempre terão o poder de nos levar para terras longínquas, num passado também distante, em que algum náufrago nos pediu socorro.
Náufragos todos, degredados dentro de nós mesmos, esperamos sempre encontrar uma prova de esperança na comunicação com outros náufragos nossos semelhantes, mesmo que esta esperança nos acene de dentro de uma prosaica garrafa de Coca Cola.