29 janeiro 2007

Rascunhos de uma gaivota



O trabalho do Piollin sempre me surpreende e emociona. Já faz quase trinta anos que assisti Os pirralhos, montada num galpão por trás do convento de São Francisco. O banho de rio dos meninos se dava numa banheira velha salvada de alguma demolição. Coisa mais recente, O vau da Sarapalha correu mundo com seu monte de tralha e uma narrativa obsessiva.
Agora, mais uma vez o Piollin me surpreende e emociona com A gaivota – alguns rascunhos. Aqui, Anton Tchekhov é minimalizado para caber no tempo e no espaço da contemporaneidade. Já vi duas vezes e ainda quero ver de novo. A harmonia das cenas me dá a impressão de ter assistido o trabalho de um corpo só, multifacetado nos cinco atores em cena.
Sabiamente, antes de mergulhar no texto propriamente dito e mais ou menos no meio do trabalho, os atores brincam entre si e envolvem a platéia no seu desvario. O primeiro momento serve para nos distrair e nos pegar de surpresa com a densidade do texto. O segundo nos alivia da tensão excessiva do drama, nos dando fôlego para suportar a densidade do desfecho.
A gaivota ainda fica em cartaz por mais dois fins de semana, no teatro de arena ainda inacabado montado na antiga fábrica de rapadura de um engenho bangüê. Só o local vale a pena a visita para quem está em João Pessoa. Se você não está por aqui, espere que mais cedo ou mais tarde esta gaivota voará para perto de você. Ela tem tudo para refazer os passos do Vau da Sarapalha. Aguarde.

Nós, os castrados




Vou entregar uma a uma, pelo nome. Quem deu a idéia foi Manu, a namorada do meu filho. Glória, minha mulher, aprovou imediatamente. Luana, uma sobrinha que mora com a gente, relutou um pouco, mas aderiu. Ana Lia, minha filha mais nova, analisou o problema do ponto de vista bioético e concluiu que era politicamente correto. Raíja, filha mais velha, em princípio de gravidez, deu de ombros por ter bem mais em que se ocupar. Malke, sobrinha em férias, com dois filhos para cuidar, pecou por omissão, o que, no caso, é a mesma coisa que ser a favor. Foi este bando de Lilith que decretou: a solução é castrar.
Até então, a angústia da castração era para mim uma questão apenas teórica. Mas, como dizem certos pragmáticos, na prática, a teoria é outra. O fantasma da castração inundou minha existência. O mundo tornou-se sombrio e sem perspectiva. Ofegava. Bebia além da conta.
Elas, as malévolas, tomaram todas as providências. Acertaram hora e lugar da mutilação. Montaram uma operação logística da qual, sadicamente, me obrigaram a participar. Servi de motorista, levando e trazendo os indivíduos envolvidos no plano minuciosamente elaborado.
A sensação melancólica que me abate é bastante justificável. Pois enquanto escrevo trancado no escritório, lá fora, no terraço da casa, o pobre Saramago, por mim mesmo batizado, convalesce. Paga com a perda da virilidade a sua recusa obstinada em subordinar aos caprichos humanos a força imperiosa dos seus instintos de cão.
Ninguém na casa agüentava mais dar banho nesse vagabundo quando ele chegava da farra toda manhã, sangrando e fedendo a carniça.

28 janeiro 2007

Umidade relativa



Saiu às pressas. Esqueceu de fechar a janela do quarto. Claro que choveu. Impossível não chover quando se esquece aberta a janela do quarto. Seu quarto era virado pra chuva. Quase não batia sol durante todo o dia. Mas a qualquer hora que chovesse, seguramente choveria em sua cama.
Passou o dia todo pensando na chateação de chegar em casa, tirar os lençóis, virar o colchão, forrar tudo de novo e deitar sabendo que mais dia menos dia o colchão não serviria mais pra nada. Um bom colchão custa os olhos da cara.
Entrou no apartamento e ficou enrolando pela sala, adiando a trabalheira que o esperava. Jantou, leu o jornal, viu televisão, folheou um livro, até que o sono o arrastou para o quarto.
Lá estava a cama do jeito que ele adivinhava. Úmida, mas não toda, desta vez. No lado mais próximo da janela, uma parte seca do lençol desenhava a silhueta de uma mulher. Ele olhou, tentou imaginar de quem seria aquele corpo que se deitou ali, de bruços, com uma perna estirada e outra encolhida, sugerindo um sono solto, relaxado.
Sentiu um calafrio. Era de medo. Fechou a porta do quarto, disparou pelo corredor, apanhou a chave do carro na mesinha da sala e desceu correndo as escadas. Quando o carro deixou a garagem do edifício, começou de novo a chover.

22 janeiro 2007

Ela


Era linda e fugidia. Relampagueava. Surgia nos desvãos da noite e sumia sem que ele pudesse fixar toda a figura. De uma vez, os olhos. De outra, o perfil. Outra mais, o sorriso perolado. Os movimentos rápidos mal deixavam supor os volumes do corpo. A cor dos cabelos não se definia. Um quebra-cabeça de mulher povoava seus sonhos de poeta.
Não parecia com nenhuma de suas muitas namoradas. Nem com sua mãe, nem com suas tias. Nem com sua irmã, nem com suas primas. Nenhuma possui aqueles traços que a noite lhe trazia. Por isso passou a deitar cedo, tomar lexotan para cair mais rápido no sono e esperar por ela. Mas nem toda noite ela aparecia.
Daí que sua vida virou uma roleta. O bem e o mal dos seus dias dependiam da presença ou da ausência daquele espectro que nunca se mostrava por inteiro. Depois, esta mesma indefinição das formas o fez melancólico. Poeta fértil que era, virou monotemático. Experimentador de formas e estilos, tornou-se fabricante de sonetos. Sentia saudades, criava parnasos, clonava Bilac.
E de tanto querer o que não via, já não queria mais a luz do dia. Trancou-se em casa, cerrou as cortinas, tornou-se inquilino das neblinas. E mais rimas faria se não fora, para tão grande dor, tão pouco o estro.
E foi assim, sem rimas, sem versos, ralo de palavras, que ele penou um dia inteiro. A mesa tosca mal suportava a agudez dos cotovelos que sustentavam uma cabeça em desvario. Foi aí que ele sentiu uma presença enchendo a sala. Era ela, enfim, ele sabia, que vinha revelar-se por inteiro. E já não era mais uma presença externa. Sentia que ela entrava em si, vindo para sempre povoar seus sonhos. E o calor daquela alma deixou no seu corpo uma enorme vontade de dormir. Ele dormiu.
Abriu os olhos com a luz do dia para ver escrito no papel que deixara em branco, em letras redondas de mulher: Meu amor, nunca mais vou perturbar teu sono. Adeus, André.

Foto: Nell Dorr

19 janeiro 2007

Fragilidade




Para Raíja e Ivan.


Somos frágeis. Muito frágeis. Por isso criamos ritos, por isso inventamos mitos, por isso precisamos de Deus.

Somos frágeis. Muito frágeis. Por isso precisamos do olhar do outro que nos garanta a continuidade.

Por isso precisamos da voz do outro para
narrar nossa passagem pelo mundo.

Somos extremamente frágeis. Por isso vivemos em bandos. Por isso precisamos da presença dos nossos semelhantes nos momentos dolorosos.
Por isso não suportamos sozinhos a felicidade.

E por não suportarmos sozinhos a gravidade da vida, inventamos cerimônias em que convocamos o testemunho dos outros em nossos momentos de passagem.

É a fragilidade que nos une. É a fragilidade que nos salva.


Ilustração: Ciranda. Xilogravura de Yole Travassos.

11 janeiro 2007

Migrante



Leva-me daqui,
deste canto espesso onde espero há horas
que passe este enjôo de mim mesmo.

Tira-me daqui,
destas águas turvas,
deste chão lodoso onde meus pés afundam.
Abre-me uma porta neste quarto escuro,
denso de miasmas, que me encharca de suor.

Toma-me pela mão
e mostra-me a escada por onde subir até a claridade.
Mas protege-me os olhos até que desacostumem das trevas.
Mostra-me um mundo limpo pela chuva da manhã.
Aponta-me um lugar ao longe, manda-me para lá.

Dá-me asas e empurra-me no abismo.
Deixa-me debater na queda
até aprender a planar,
navegar nas correntes de ar,
ver minguar e crescer os desenhos do chão.

Assiste-me ir para longe do lugar que me apontaste.
Tenho asas agora.
Sou migrante.
Deixo-me levar pelo instinto
de minha espécie alada.

08 janeiro 2007

Com a corda no pescoço



Poucos dias depois da execução de Saddan Hussein, uma empresa americana de brinquedos, a Herobuilders, lançou um boneco do ex-ditador com uma corda no pescoço. O dono da empresa justificou a brincadeira com o argumento de que “Saddan foi a personalidade do ano”. Nada mais justo, portanto, que se ganhe algum dinheiro com isso.
Como é um brinquedo para crianças, é natural que o boneco traga na camisa uma frase engraçada, com uma rima fácil de decorar: Dope on a rope. O que deve ser traduzido como “Droga numa corda” quando o brinquedinho for lançado no mercado brasileiro. Não vai custar muito para assistirmos a cena divertida do júnior fazendo birra com a mãe na prateleira do supermer-cado: “só saio daqui com o meu Saddanzinho enforcado”.
Não estou sendo sarcástico. Mais cedo ou mais tarde isto vai acontecer. Todos sabemos que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. E nada melhor para os Estados Unidos agora do que a banalização do episódio do enforcamento do ex-ditador. Quanto mais imagens da execução forem divulgadas na internet, quanto mais piadas forem feitas na televisão, quanto mais se mostrar grupos alegres de exilados iraquianos festejando nas ruas americanas, mais o governo Bush se sentirá justificado em prosseguir com sua política de morte no Iraque.
O bonequinho com a corda no pescoço é o símbolo mais monstruoso da fome pantagruélica do lucro a qualquer custo. Nenhum valor ético é capaz de impedir a voracidade do capital em busca de novos segmentos de consumo. Mas se mudarmos um pouco de perspectiva, veremos que o novo brinquedo americano nos mostra que, em sua ausência absoluta de valores, é todo um segmento da civilização capitaneada pelos Estados Unidos que está com a corda no pescoço.

03 janeiro 2007

Pena



A internet nos convida ao exercício da necrofilia exibindo cenas da execução de Saddan Hussein. Tive pudor em assistir os detalhes do enforcamento. Limitei-me ao momento em que o verdugo passava o laço no pescoço do condenado e depois à exibição do corpo já morto envolvido em um lençol branco, o que me obrigou à comparação com uma galinha morta.
Já fui ajudante na morte de muitas galinhas e sempre senti uma espécie de empatia com o bicho que se debatia até o fim para que sua vida não se esvaísse com o sangue que eu batia num prato com vinagre, premeditando a cabidela. Sou, portanto, testemunha antiga da luta de todo animal pela preservação da sua vida. Mas nem eu nem ninguém é capaz de se colocar no lugar de um condenado à morte.
Entreguemos, portanto, a palavra a quem entende do assunto. Chamemos Dostoievski que foi condenado à morte em 22 de dezembro de 1849 pelo czar Nicolau I. Ele sofreu passo a passo toda a agonia dos condenados até ser desamarrado do poste onde já esperava os tiros dos fuzis, indultado pelo próprio czar. Foi dessa experiência que ele falou ao narrar todo o horror do seu personagem Míchkin, de O idiota, contando a execução de um personagem à morte:
“E todavia a dor principal, a mais forte, pode não estar nos ferimentos e sim, veja, em você saber, com certeza, que dentro de uma hora, depois dentro de dez minutos, depois dentro de meio minuto, depois agora, neste instante – a alma irá voar do corpo, que você não vai mais ser uma pessoa, e que isso já é certeza; e o principal é essa certeza”. E arremata: “A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera que se salvará sem falta, até o último instante... essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que com certeza não se vai fugir a ela reside todo o terrível suplício, e mais forte que esse suplício não existe nada no mundo”.
Não me atrevo a dizer nada depois de Dostoievski. Quis apenas contribuir para a reflexão de cada um sobre a pena de morte. Seja a de Saddan Hussein ou de um garoto barbarizado por dever uma micharia ao narcotráfico.