24 maio 2011

Sombras e melancolia


Sobre o novo livro de Hildeberto Barbosa
À sombra do soneto e outros poemas

O poeta é aquele que se debruça nas bordas do seu próprio abismo e dali contempla o que não é e poderia ter sido. O poeta é um saudoso de si mesmo. Por isso, todo poeta é triste.

Hildeberto é poeta. Logo, é triste. Sofre dessa saudade de si mesmo a que se convencionou chamar melancolia. E o seu novo livro, À sombra do soneto e outros poemas é o seu testamento melancólico.

O teor melancólico começa pela própria escolha da forma da maioria dos poemas que compõem a obra. Como se vivesse ofuscado pelo excesso de luz com que o contemporâneo fere seus olhos, o poeta refugia-se na sombra geométrica dos sonetos, contrapondo aos excessos sonoros das ruas este pequeno som (soneto) para vasculhar as sombras do seu abismo.

E lá, no fundo do poço, passeiam as imagens irrecuperáveis do seu relicário poético. As coisas do amor, da terra de nascença, da infância vivida nas léguas de sol e cinza e as lições definitivas das pedras. Um cata-vento, um juazeiro, um vaqueiro, um boi e um canário vivem ali. E ali morre uma mãe. Tudo o que o poeta perdeu e ainda permanece.

Permanece o berço de pedra, a comarca das pedras, permanece o amor e a espera da morte que Hildeberto mente em não temer, pois para ele a morte “é apenas a névoa batendo no rochedo”.

Vencido o ciclo asfixiante dos sonetos, o poeta nos dá Outros poemas, em que disfarça mal o fumo melancólico do seu poço. Lá está um arroubo perdoável, uma loa à flama ardente que consome o seu coração rubro-negro. Mas logo volta o tema recorrente: “sempre amei as pedras”. Desde as pedras de sua trágica Aroeiras à pedra preciosa da poesia. E o poeta avisa a quem lima o diamante das palavras “que a poesia/é sagrada matéria/coroada de luz/ e abismo”. Lembra ainda “que em cada artéria/de sílaba e silêncio/pulsa o coração/de Deus/ e sangra o coração/do homem.”

Convido o leitor a se debruçar sobre o abismo do livro de Hildeberto Barbosa. Tenho certeza de que cada um de nós nele encontrará suas próprias sombras. E pagará o preço do encontro com a moeda da sua própria melancolia.

15 maio 2011

Invasão bárbara


Estava tudo programado para ser um sábado sofisticado. Começou logo nas primeiras horas, quando saímos de um bom restaurante onde jantamos um excelente salmão acompanhado de um vinho razoável. O que estava previsto em seguida, depois de umas boas horas de sono, era dedicarmos o dia a atividades exclusivamente culturais. Precisava me preparar para um encontro com a escritora Ana Miranda, o que incluía ler e reler alguns de seus livros e consultar sobre ela na internet. Além disso, precisávamos assistir “Cria cuervos”, de Carlos Saura, pois tinha sido convidado para comentá-lo numa sessão especial de cinema. Iríamos passar o sábado numa espécie de levitação.
Acontece que o homem põe, Deus dispõe e a mulher impõe. Deus até parece que havia concordado com a programação cultural. Mas minha mulher lembrou de uma receita de churrasco feito em panela de pressão que tínhamos visto no início da semana no programa de Ana Maria Braga. O problema era que nenhuma das nossas panelas estava em condições dignas de participar de semelhante evento culinário. Ante à proposta de minha mulher de adiar o prato para um dia em que tivéssemos uma panela de pressão decente, me indignei e tomei a decisão que se espera de um verdadeiro varão: hoje vai ter churrasco nesta casa, nem que eu tenha que mover céus e terras. Mover céus e terras, neste caso, consistia em pegar o carro e dar um pulo no shopping, o que foi feito em pouco menos de uma hora.
Nem precisou que o portão automático se abrisse todo para que aparecesse a figura arredondada do meu irmão, impaciente por não ter ainda iniciado os trabalhos do sábado. Daí em diante, dá pra imaginar o que aconteceu com o meu programa cultural. Livros e filme foram alegremente substituídos por fartos pedaços de carne, metros de lingüiça, generosos goles de cachaça e decalitros de cerveja bem gelada.
Saura e Ana Miranda que nos perdoem, mas não é todo dia que se compra uma panela de pressão.

10 maio 2011

Duas faces da maldade



Foi num mesmo dia da semana passada. Em dois canais diferentes de televisão. Primeiro, passou um documentário sobre a ablação do clitóris, ainda praticada em 28 países africanos. Depois, foi uma reportagem sobre os maus-tratos sofridos pelas pacientes da Maternidade Leila Diniz, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
O documentário exibia cruamente um ritual de extirpação do clitóris de uma adolescente que aparece depois, evolvida num manto azul, falando do tamanho da dor que acabara de sentir.
A reportagem, depois de mostrar as cenas já batidas de enfermarias lotadas e corredores apinhados de macas, mostra uma mulher recém saída da sala de cirurgia, colocada numa cadeira desconfortável, que reclamava: “Sentada em cima dos pontos, dói. Dói pra caramba.”
Estima-se que cerca de 115 milhões de mulheres sofreram mutilações genitais em todo o mundo. Mas esta prática vem sendo combatida através de movimentos internacionais pelo direito ao controle do corpo e da sexualidade. E para que estes direitos sejam respeitados, é necessário o recurso às leis.
Não sabemos quantas mulheres têm negado o seu direito a um tratamento digno num dos momentos mais importantes de suas vidas, em que dão à luz um novo ser humano. Mas sabemos que há leis obrigando o Estado a cuidar da saúde dos seus cidadãos, principalmente dos pequenos cidadãos recém-nascidos e suas mães.
Talvez o que esteja faltando seja um movimento internacional que chame a atenção do mundo para a maldade que se comete não apenas com as mulheres recém-paridas neste País. Somos todos nós que somos postos a sentar em cima dos pontos dados às pressas nessa ferida vergonhosa em que se transformou a saúde pública no Brasil.

03 maio 2011

Generosidade cotidiana

Não vou falar da morte de Bin Laden, nem dos espetáculos midiáticos patrocinados pelas monarquias decadentes da Inglaterra e do Vaticano. Tampouco me interessa a composição da comissão de ética do Senado nem os rumores sobre a volta da inflação. Nada disso tem valor se comparado aos atos de generosidade com que somos contemplados no cotidiano.

Vejam se não tenho razão: cheguei em casa um dia desses e encontrei sobre a mesa o novo livro de poemas de Eloi Firmino de Melo, “Um floral de sombras”. A capa é bonita, os poemas são bons e me deixaram alegre um bom tempo. Outro dia, depois de algum tempo de aborrecimento numa agência bancária, ainda na fila do caixa eletrônico, recebo das mãos amigas do Águia Mendes outros dois livros de poemas: “Sol de algibeira”, em que o poeta passeia entre a morte e a paixão, e “Um boi pastando nas nuvens”, escrito para os nossos resquícios de infância.

É raro o dia em que não saio de casa de mãos abanando e volto com algum presente impresso dado por algum amigo poeta. Às vezes, nem tão amigo, às vezes nem tão poeta, mas a generosidade é boa e verdadeira.

Mas a generosidade que me cerca não se resume a livros bem ou mal escritos. Esta semana, uma vizinha, até que nem muito próxima, nos deu três abacates colhidos em seu próprio quintal. Me fez lembrar uns vizinhos que tive no Recife, com nossos quintais separados por um muro baixo que nos permitia saber das novidades sem sair de casa. O bom dessa intimidade é que, todos os sábados, entre as onze e o meio dia, lá estava um copo de cuba-libre me esperando suado em cima do muro.

Parece mentira que ainda existam vizinhos assim, por trás desses muros altos e cercas eletrificadas. Mas eles existem e nos dão de presente o fruto secreto de sua generosidade.