31 agosto 2008

Matéria prima
























Lá vem o som que não diz o que me quer
e entra em mim cravando garras
num dentro qualquer
de onde fica espinhando
querendo dizer
querendo dizer
e não dizendo
e me fazendo repetir o que não sei.

Lá vem a sombra e sua luz em movimento.
Vem de longe, chega perto e logo foge
me embaraça sem dizer a que me vinha.
Fica presa nos meus olhos
essa luz e sua sombra
sugerindo uma forma que não sei denunciar.

Lá vem o frio e seu calor
que me envolve e acarinha
me toca, me aperta, me alisa, me crespa
me larga, me foge e se aloja
num lugar que não sei como alcançar.

Lá vem cheiro e catinga
com notícias de outro mundo
que me entram pelas ventas
e se entranham nas entranhas
desta carne que deseja se juntar a outra carne
de onde partem os odores, sem jamais a encontrar.

Lá vem esta carne tenra se alojar em minha boca
jorrar essa água morna que desliza nos meus ocos
e se infiltra nos meus ossos construindo meus volumes
definindo meus limites para logo me deixar
no mais profundo abandono
no mais atroz desamparo
na mais cruenta agonia.

Lá vem, lá vem a palavra
que me recria o som perdido nos ouvidos
que desenha meus fantasmas
que me devolve o calor
que me relembra dos cheiros
que me devolve a carne
que me lembra quem eu sou.

Lá vem de novo a palavra
reavivando os enigmas
desalojando fantasmas
me deixando sem dormir.








Ilusração: Manabu Mabe, obtida em http://www.sp-arte.com

21 agosto 2008

Melhor assim



Talvez eu não fosse este homem
se ao chegar numa esquina da vida
tivesse dobrado para o outro lado.
Não sei se o caminho que fiz
foi o melhor, o menos árduo.
Não sei que outro homem seria
se fossem outras as ruas,
outras as pessoas,
fossem outros os bares e igrejas
em que rocei meu corpo e minha alma.
Mas eu prefiro assim,
esse um e não outro.
Prefiro assim,
essas marcas
e esse andar um pouco penso.
Prefiro estas mãos ansiosas
que estalam por si mesmas,
essa miopia de infância,
esse joelho inseguro.
Eu prefiro essa história
feita de encruzilhadas
em que me encontro
a cada vez
atônito
e só.
Foto de Ana Patrícia

16 agosto 2008

A mancha vermelha



O velho Wan Tsu já tinha perdido a conta dos deslocamentos que tivera de fazer, obedecendo às ordens do Partido. De tanto que já havia se mudado, não sabia se sua mulher ainda estava viva, nem qual destino tinham dado a seus filhos. Jogado de um lado para outro, a depender dos grandes planos plurianuais, Wan Tsu tinha se despojado de seus míseros bens. Tudo o que lhe restava era a roupa do corpo, as botas surradas e um velho exemplar do Livro Vermelho do Camarada Mao Zedong.
Não entendia muito bem porque, mas depois da morte do Grande Timoneiro, quiseram confiscar o seu exemplar do Livro Vermelho. Teve que escondê-lo sob as tábuas do celeiro da fazenda para onde tinha sido mandado trabalhar na colheita. Carregou o volume escondido sob as calças quando foi removido para apertar parafusos numa fábrica de trator em Beijim. Agora estava carregando vergalhões de aço para a construção de um gigantesco estádio olímpico, mas o seu velho companheiro estava bem escondido dentro do forro do colchonete nos fundos do alojamento.
Wan Tsu nunca reclamou da vida. “A nossa posição é a do proletariado e das massas populares”, tinha escrito o Farol dos Povos. E o velho proletário acreditava que “o sistema socialista acabará por substituir o sistema capitalista”, como rezava o Livro, pois “essa é uma lei objetiva, independente da vontade do homem.”
Os olhos de Wan Tsu nunca viram o que se passava no mundo. Quando não estavam fechados, guardando o sono do velho dono nos longos deslocamentos, estavam olhando para baixo, pois o corpo gasto vivia curvado sob o peso das tarefas. Mas ali, de cima dos andaimes da construção monumental, seus olhos se assustaram com a visão maravilhosa do paraíso socialista. As largas avenidas apinhadas de automóveis que levavam os companheiros proletários para o trabalho. Rechonchudos e bem vestidos, os filhos dos proletários passeavam com sacolas cheias de tudo que o homem socialista necessitava para viver sem os excessos burgueses. Edifícios luzidios arranhavam os céus abrigando as famílias proletárias do sol e da chuva, do vento e da neve. Policiais elegantes e de luvas protegiam e orientavam os trabalhadores na volta para casa, depois de uma dura jornada de trabalho.
Turvados pelas lágrimas, os olhos de Wan Tsu não viram a chegada do mestre de obras que em nome do partido informou que aquela tinha sido a última etapa de trabalho da turma. Todos tinham que apanhar seus pertences e abandonar a cidade de Beijim, pois as Olimpíadas iam começar no próximo mês e o Comitê Gestor não queria nenhum maltrapilho perambulando pelas ruas da Capital.
Wan Tsu recordou a sua passagem preferida do Livro Vermelho e vociferou na cara assustada do mestre de obras: “A revolução não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado. Ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A revolução é uma insurreição, é um ato de violência pelo qual uma classe derruba a outra."
Antes que a polícia atendesse aos apitos de alerta, Wan Tsu atracou-se ao mestre de obras e jogou-se com ele do último andar do colosso olímpico. Depois do baque, uma mancha vermelha maculava o asfalto proletário de Beijim.

Clube do Conto, 16.08.2008

14 agosto 2008

Os endereços do mal



De vez em quando, o mal nos comunica um novo endereço. O mais recente fica na Geórgia, uma ex-república soviética, país espremido entre o mar Negro e as montanhas do Cáucaso.
Não me interessa aqui compreender os motivos políticos que levaram a Rússia a invadir este pedaço de terra um pouco maior do que a Paraíba. É muito difícil saber quem tem razão. Tudo o que sei é que o último conflito entre a Rússia e a Geórgia começou na última sexta-feira quando tropas russas entraram na região separatista da Ossétia do Sul, que havia sido atacada por forças georgianas. A Geórgia, por sua vez alega que os separatistas estavam atacando povoados georgianos. A Rússia então mandou seus tanques para defender tropas de paz e cidadãos russos que vivem na ex-república soviética.
De nada vale entender os motivos do mal. Não há nada que justifique os seus efeitos. Insisto em não acostumar meus olhos ao cenário que banalmente se repete nos noticiários. Velhos e crianças vasculhando o que sobrou sob os escombros de suas casas. Multidões de rostos atônitos sem saber que direção tomar. Super-homens arrombando portas frágeis com as botas e atirando a esmo no escuro das salas vazias. Declarações vazias dos poderosos que alimentam seu poder com a chacina. Hienas de paletó e gravata.
São muitos os endereços do mal. E muitos deles não ficam tão longe como a Geórgia, o Quênia ou o Iraque. Muitas vezes o mal é nosso vizinho. Algumas vezes mora em nossa casa. E o seu endereço mais certo é dentro de cada um de nós. O mal está sempre presente no intervalo entre mim e o estranho a quem não consigo acolher. Quando decreto a extinção ou o degredo desse estranho, por não aceitar a sua diferença.
Imagem obtida em O Globo Online

10 agosto 2008

Bem fiz eu



Ainda bem que eu não escrevi nada no livro de lembranças dos quinze anos de Marcela. Não escrevi porque André roubou o livro de minhas mãos e se escondeu com ele no banheiro. André morria de ciúmes de mim. E não somente de mim, mas de qualquer cara que se aproximasse de Marcela. Principalmente hoje, em que ela simplesmente arrasou com esse vestido branco bordado a fios de prata, suspenso por finas alças sem qualquer serventia, pois os peitos de Marcela eram suficientes para sustentar o peso de todo aquele luxo.
Por nada neste mundo André abriria mão do privilégio de ser o primeiro a escrever no livro de lembranças de Marcela. Entrou sôfrego no banheiro, passou o trinco na porta e sentou-se na bacia sanitária com o livro apoiado nas pernas. A Bic tremia em suas mãos quando ele começou a desenhar com sua letra escarrapichada:
Aonde quer que vás, meus pensamentos Contigo irão...
Com quem quer que estejas,
teu amor sempre me pertencerá...

André leu e releu, achou bom, mas achou pouco. Daí, arriscou:

Qualquer que sejam os lábios que toques,
recordarás do sabor de meus beijos...
Bem sabes que jamais amará outro.
Sem reparar nos tropeções da concordância, a mão, já menos trôpega, bordou mais um arroubo ditado pelo coração:
Teu coração e teus sentimentos são meus...
Por mais que tentes fugir,
será inútil, Pois estás presa a mim...
Não dava mais para esperar. Bati com força na porta do banheiro e tentei arrancar o livro das mãos de André. Mas ele me empurrou e correu para junto de Marcela. Fiquei de longe olhando ela se afastar para junto das suas damas de honra com o livro nas mãos. Fizeram uma roda e riam olhando para André a cada estrofe lida com afetação por Marcela. Todas elas conheciam aqueles versos. Eles estavam impressos num cartão que eu entreguei junto com uma pulseira de artesanato. Claro que Marcela nunca iria usar a tal pulseira, o presente mais caro que pude comprar com meu salário de cobrador de movelaria. Mas os versos, feitos por um certo Hélio Marques, sabia que não esqueceria. Ela somente não esqueceu, como me devolveu pulseira e cartão, depois de enfiar nas mãos de André a folha arrancada do livro.
Bem fiz eu, que não escrevi nada, consolava-me enquanto descia a rua junto com o pobre André para nos consolarmos no botequim da esquina.


Ronaldo Monte. Clube do Conto, 09.08.2008

Imagem obtida em: projectoamizade.blogspot.com

02 agosto 2008

A ocasião


Passei boa parte da vida escutando que a ocasião faz o ladrão. Até que um dia alguém me disse que não, a ocasião apenas põe o ladrão em frente ao objeto a ser roubado. Para que haja o roubo, é preciso que o ladrão já exista, pelo menos em potencial. Uma outra frase que não roubo, mas peço emprestado ao autor que desconheço, diz ser mentira que o poder corrompa. Ele apenas revela o corrupto que alcança o poder.
Acreditar que a ocasião faz o ladrão e que o poder corrompe a qualquer um que o exerça é aceitar que dentro de cada um de nós dormem um ladrão e um corrupto esperando ser despertados assim que encontrarmos uma velhinha distraída ou um cargo de faxineiro em qualquer prefeitura do interior.
Por mais que os fatos queiram me provar o contrário, não creio que todo político seja ladrão. E se todos os políticos fossem ladrões, isto não quer dizer que todos os cidadãos deste País sejam ladrões.

Não vou recorrer aos exemplos edificantes de pessoas simples que encontram malas de dinheiro e as devolvem a seus donos. As pessoas comuns não precisam de grandes exemplos para ser boas. Alguma coisa interna orienta suas condutas em função do respeito ao próximo e ao bem comum. E não é por obediência a um preceito moral, como os mandamentos que proíbem matar ou roubar. É algo mais sólido, como o imperativo que exige que a conduta de qualquer um possa servir de modelo à conduta de todos.

Não, a ocasião não faz o ladrão, nem todo poder corrompe. Ladrões e corruptos existem antes de qualquer ocasião ou poder. O que os faz ladrões e corruptos é um impulso, uma fome que os leva a procurar os objetos mais expostos ao roubo e os cargos mais propícios à corrupção. Nós, as pessoas comuns, devemos estar atentos a estas e outras figuras de retórica dos ladrões e corruptos que nos querem fazer pensar que somos iguais a eles.


Imagem obtida em www.fraudes.org/images/bassotto2a.jpg