19 abril 2015

Mortos na estante


         A última segunda-feira me deixou dois mortos. Um se chamava Eduardo. Outro se chamava Günter. Eram meus amigos. Conviviam comigo em minha casa. Por isso os tratava pelos primeiros nomes. Talvez se eu disser seus sobrenomes, vocês se lembrem deles. O primeiro é Galeano. O segundo, Grass.
         Não sei se vocês ainda se lembram do intelectual de suvaco. Era o cara que, para onde fosse, carregava um livro debaixo, é claro, do suvaco. Mesmo que não lesse o livro, o seu porte era uma espécie de senha com a qual se identificava com a turma nas intermináveis conversas no bar, nas sessões de cinema de arte, nas reuniões calorosas dos diretórios estudantis.  Num certo período da década de setenta, “As veias abertas da América Latina” foi um item obrigatório nos mais ilustres suvacos da juventude brasileira.  À medida em que se passaram os anos, seu texto ficou menos furioso, sua prosa ficou mais amigavelmente solidária com o sofrimento dos homens, seus livros puderam, enfim, abandonar a região anatômica inconveniente e abrirem-se confortavelmente por mãos mais maduras. 
         Günter Grass veio bem mais tarde. Já me pegou casado, pai de filhos, com um lugar confortável para ler em casa. Não li “O tambor”, mas vi o filme, numa sessão de arte do Hotel Tambaú, de saudosa memória. Meu livro de entrada no pensamento desse intelectual pesado, considerado a consciência moral da Europa, foi “O Linguado”, seguido de “A ratazana”. Foi a leitura de Günter Grass que me reavivou a esperança socialista. Sua crítica feroz aos erros históricos revolucionários sempre foi acompanhada por um feixe de esperança na reconstrução dos valores humanos. Sua leitura nos ensina a não desistir do futuro.

         Eduardo e Günter. Mais dois amigos que me deserdam de suas companhias. Minha biblioteca continuará rica com a permanência dos seus livros. Mas a humanidade se empobrece sem a lucidez das suas vozes. 

Foto: Ivan de Paula

12 abril 2015

20 - O dono do nada


 Almeidinha - O herói de paletó

Um folhetim burocrático

                


                     Quando Dona Marli bateu a porta da repartição, eu tomei um susto, como se tivesse acordado de um pesadelo. Mas aos poucos vou me acostumando ao vazio da sala, à ausência daquelas pessoas que fizeram parte da minha vida por tantos anos. Me chamavam de Almeidinha, de um jeito que eu pensava ser de carinho. Mas agora eu consigo entender o que estava por trás desse diminutivo. Almeidinha, o ninguém; Almeidinha, o servil; Almeidinha, o capacho.
                   Agora que estou só aqui, tenho uma sensação muito grande de paz, de alívio. Esta é a minha fortaleza, onde me sinto protegido de todo o mal que queiram me fazer. Longe daquela que se fazia de minha esposa, livre do Dr. Pacheco e sua empáfia, livre do Ciço e da sua falta de tempo, livre do Joel com sua falsa dor nas costas. Livre também de Dona Marli saindo da sala do chefe com seu sutiã desajeitado, sua boca sangrenta de batom, seu cabelo desalinhado. 
                   Fecho todas as janelas, deixo todas as luzes acesas e caminho lentamente até a sala do Dr. Pacheco. Não, não é mais a sala do Dr. Pacheco. Agora será minha sala. Acendo as luzes, e me sento na poltrona giratória, macia, reclinável que agora é só minha. Experimento me reclinar e botar os pés na mesa, como tantas vezes vi o Dr. Pacheco fazer. Não gostei, achei desconfortável. Desço as pernas, me reclino com as duas mãos cruzadas na nuca. Assim é melhor. Melhor para pensar nas ordens que darei aos meus subordinados, assim que eles cheguem para o trabalho. Sr. Joel, quero aquele relatório pronto ainda hoje de manhã. Sr. Cícero, hoje o senhor vai gastar seu tempo de almoço para pagar minhas contas na lotérica. Sr. Pacheco, traga-me um café e um copo de água gelada. Dona Marli, traga papel e lápis que eu vou ditar uma nova petição ao Diretor Geral.

                   Pronto. Todas as ordens dadas, todas as providências tomadas, tenho todo o tempo livre para pensar na vida. É uma pena que minha vida tenha tão pouca coisa para pensar. De minha infância, só me lembro de minha mãe me chamando para ir à missa com ela, enquanto meus irmãos fugiam para jogar bola. Ela só me deixava em casa quando eu acordava com asma. Aí eu ficava o tempo todo na cama, lendo revista velha e tentando fazer as palavras cruzadas dos jornais. Passava o tempo todo de pijama para não piorar do puxado. Acho que vem daí a mania de usar paletó.
                   As coisas não melhoravam quando ia para a escola. Padre Guido ainda era moço e já era diretor das Escolas Reunidas da Paróquia de Água Fria, o bairro em que eu morava. Ele conhecia minha fama de bom menino que ia à missa quase todo dia e vivia me pedindo para ajudar nas comemorações da Escola. Eu era mofino, desengonçado, não tinha jeito para jogar bola na hora do recreio. Gastava o tempo livre comendo meu pão com goiabada e fazendo palavras cruzadas. É por isso que eu conhecia muitas palavras e conseguia tirar boas notas em Língua Portuguesa. Era por isso também que algumas meninas se aproximavam de mim quando era tempo de exame. Eu não me dava conta na época, mas agora fica claro que elas só se aproximavam de mim para que eu ensinasse a matéria que ia cair na prova. Foi aí que aquela Sandra foi se chegando, tomando meu tempo, impedindo que as outras meninas me procurassem para tirar suas dúvidas. Ela me levava para almoçar na casa dela para que eu fizesse seus deveres de casa depois do almoço. Quando terminava, ela inventava que ia sair com a mãe dela, ou dizia que estava com dor de cabeça e me mandava embora.
                   Mas eu me lembro muito bem do ciúme que ela sentiu quando uma menina rechonchudinha entrou no meio do quarto ano primário. Era a tal Luana que enchia a sala com o seu cheiro de suor quando voltava do recreio. Ela era miudinha, mas era a melhor levantadora de vôlei da escola. Padre Guido gostava muito dela porque ela fazia dança e conhecia muito bem os passos do frevo, do côco, do maracatu e de tudo que era dança popular. E quanto mais ela dançava, mais forte era o cheiro do seu suor.
                   Essa Luana também queria estudar português comigo, mas a tal da Sandra não dava trégua. Grudava em mim na hora do recreio e quando a aula terminava, ela só me largava quando estava perto da minha casa. Mas numa hora de recreio em que Sandra foi no quartinho, Luana chegou perto de mim e perguntou se eu ia estar em casa naquela tarde. Eu disse que sim e ela combinou de ir estudar comigo. Entrei em casa com o coração aos pulos, tomei banho, almocei às pressas e fui para a porta esperar pela menina do cheiro adocicado. Cansei de esperar em pé, sentei-me no batente da porta. Cansei de esperar na porta, fui me sentar na mesa com o caderno de português aberto no dever de casa. Tive que sair da mesa para minha mãe botar a louça da janta. Não jantei e fui pro quarto com um nó me apertando a garganta. Só não chorei porque estava muito cansado de tanto esperar.
                   Do mesmo jeito que estou cansado agora, já quase dormindo sobre os braços cruzados em cima da minha mesa de diretor. Mas vou fazer de tudo para não dormir. Padre Guido garantiu que ela viria me visitar na repartição.  E quando ela chegar, vai me encontrar aqui, único senhor deste universo vazio que ela inundará com o seu cheiro. E o seu cheiro ficará para sempre entranhado no meu paletó.



                                                 FIM   

05 abril 2015

19 – A repartição vazia


Almeidinha  - o herói de paletó

Um folhetim burocrático

      


                   Pela primeira vez na sua vida, Almeidinha acordou atrasado para ir trabalhar. Viu que já passava das oito, mas não se apressou. Deixou a mulher ferrada no sono, fez um café forte que bebeu acompanhando um pão com margarina. Só então vestiu o paletó e saiu lentamente em direção ao ponto do ônibus.
                   Bom dia, seu Almeidinha. Era a voz de Dona Marli, num tom mais amável do que o de costume. A porta da sala do Dr. Pacheco estava aberta, mas ele não estava por trás da mesa.
                   Não se preocupe, seu Almeidinha. O senhor não precisa mais responder nada ao Dr. Pacheco. Ontem mesmo, depois que ele saiu, eu mesma telefonei para a Comissão de Patrimônio e contei tudo que sabia sobre as falcatruas dele, inclusive o negócio do computador. Hoje de manhã telefonaram para ele, pedindo que comparecesse imediatamente na sala da Comissão. Uma colega de lá me informou que ele foi afastado do cargo, estando proibido de voltar aqui até que sejam esclarecidas todas as suspeitas que pesam nos ombros dele. Inclusive uns negócios meio nebulosos que ele mantém junto com aquela Jackeline, numa certa boate chamada Ilha de Lesbos.   
                   Almeidinha ouviu sem acreditar o que Dona Marli tinha contado. Ficou parado em frente à mesa dela, sem saber o que iria fazer. De certa forma, estava decepcionado. Durante todo o percurso de vinda para a repartição havia ensaiado a melhor maneira de dizer não ao Dr. Pacheco de maneira que ele não ficasse furioso e o ameaçasse com uma suspensão. Levou mais tempo ainda pensando em como agir no caso do Dr. Pacheco insistir para que assumisse a culpa pelo desaparecimento do computador. Estava aliviado, sim, mas não podia evitar uma certa decepção. Perdeu a primeira oportunidade de mostrar que não era mais um capacho.

                   Foi só então que se deu conta de que não tinha mais ninguém na repartição. Dona Marli percebeu o seu espanto e explicou que logo no início do expediente, o Ciço pediu transferência para outra repartição onde pudesse ser mais útil. O Joel, com sua eterna dor nas costas, foi procurar uma junta médica que adiante a sua aposentadoria por invalidez. E ela, Dona Marli, ia tirar uma licença para tratamento de saúde. Precisava fazer uma plástica no nariz e uma lipo que lhe devolvesse a cintura.
                   Almeidinha parou para pensar na falta de delicadeza dos colegas. O Ciço não podia ter ido embora sem agradecer todas as vezes em que sacrificou a hora do almoço para pagar suas contas. E o Joel precisava se desculpar por ter se encostado o tempo todo, com a eterna desculpa da dor nas costas.
                   Então, era isso. Nenhuma gratidão, nenhum pedido de desculpa, nenhum aperto de mão de despedida depois de tantos anos de favores e sobrecarga de trabalho. Almeidinha então se dá conta de que todos ali o tinham feito de capacho o tempo todo. Somente Dona Marli parecia ter alguma consideração com ele. Mas quando caiu em si, Dona Marli estava de pé, com a bolsa a tiracolo, impaciente com a sua presença em frente de sua mesa.
                   O senhor me desculpe, seu Almeidinha, mas eu tenho mais o que fazer. E se o senhor encontrar outra vez com a tal da Jackeline, diga a ela que pode ficar com o Dr. Pacheco só pra ela, agora que ele não tem mais a gratificação de chefia.
                   Dona Marli disse isso já caminhando em direção à porta. Sem se voltar, jogou as chaves da repartição em cima da mesa e disse que agora ele era o dono de tudo aquilo. E foi embora sem olhar para trás.