30 dezembro 2009

Seconda chance




Se trovate a Gaza
un bambino in una mangiatoia,
circondato dai genitori,
tre magi
e alcuni animali,
per favore, proteggetelo.


Perché la mattanza degli innocenti
è già cominciata
e la strada per la fuga in Egitto
è chiusa.


Ronaldo Monte.
Traduzido por Rosella Pristera
http://bottega27.splinder.com/post/21906325



SEGUNDA CHANCE


Se for achado em Gaza
um menino em uma manjedoura,
rodeado pelos pais,
três magos
e alguns bichos,
por favor, protejam-no.


Pois a matança dos inocentes
já começou
e a rota de fuga para o Egito
está interditada.



(Ronaldo Monte. 16.01.2009)

21 dezembro 2009

O milagre possível


Pobre humanidade esta, que deposita suas esperanças no nascimento de uma criança que aconteceu, supostamente, há dois mil e nove anos. Pobre e contraditória humanidade, que deposita esperanças num evento que já aconteceu. Não há mais nada o que esperar. A não ser por um milagre. Mas se algum milagre tivesse de acontecer, não se deixaria esperar por mais de dois mil anos.
Se algum milagre tiver que acontecer, ele terá de ser feito pelas nossas próprias mãos. E não há mais tempo para esperar. A tarefa é urgente, para ontem. O planeta está exaurido. Os homens estão exaustos. O que era semelhante transforma-se no estranho que deve ser abatido.
Aos que ainda mantêm um mínimo de lucidez, resta insistir na construção de um mínimo fio de solidariedade. Coisa difícil, pois esta qualidade não é natural no ser humano. Ela tem de ser construída racionalmente. Mas é a única qualidade que pode nos salvar da barbárie. Solidariedade. Este é o nome do milagre.

15 dezembro 2009

A gênese de um buraco





Faz uns quinze dias que ele apareceu no cruzamento da esquina em que moro. Começou como quem não quer nada, uma pequena depressão no calçamento, próximo a um bueiro. Aos poucos, foi prosperando, ganhando direito a um arbusto anunciando sua presença. Agora já assume ares de adulto, servindo para depósito de entulho e quase inviabilizando o trânsito.

Não sei qual coligação é responsável pela obturação do buraco. Sei que, se alguma providência urgente não for tomada, ele tem um grande futuro pela frente. Uma madrugada dessas, em que fiquei escrevendo no terraço, tive minha concentração dispersa por um alvoroço na esquina, com direito a viatura da polícia. Soube depois, pelo vigilante da rua, que um rapaz tinha jogado um celular e uma trouxa de maconha no buraco.
O risco é ele aumentar muito de tamanho e alguma gangue instalar seu quartel general em suas profundezas. Aliás, pode nem ser tão ruim assim. Dependendo de uma política de boa vizinhança, talvez eu consiga dos novos vizinhos a segurança que nenhum coligação foi capaz de me dar até aqui.

13 dezembro 2009

As armas do jardineiro


Veio um jardineiro aqui em casa dar um jeito nas plantas para o fim de ano. Foi preciso podar alguns arbustos e o facão que ele usava revelou-se insuficiente. Ele lamentou não ter trazido outras ferramentas mais adequadas, mas teve medo de andar nas ruas carregando serras e grandes facões. A polícia poderia confundi-lo com um ladrão.
Cheguei a comentar com ele que os ladrões de hoje não usam mais esse tipo de armas. Qualquer dimenor carrega no mínimo um 38 na cintura. Mas parei a conversa por aí. Não ia adiantar muito qualquer reflexão que fizesse a respeito do nível de desamparo a que todos nós estamos sujeitos. Uns mais, outros menos, a depender das posições nas classes sociais.
Classes sociais, sim, pois a luta de classes só foi abolida no vocabulário dos neoliberais. Se eu sair nas ruas com minhas ferramentas de trabalho, a saber, um note-book, um celular e dois ou três livros, dificilmente um policial virá me abordar. No máximo, serei confundido com um malfeitor de colarinho branco, o que só fará aumentar o respeito do policial pela minha figura.
Bem faz o jardineiro em temer expor suas armas no meio da rua. Pois ele trabalha na contracorrente do esforço dos governos e grandes corporações em transformar o planeta num deserto infértil. Ele trabalha com zelo para a beleza do mundo. É isto que o torna perigoso.

06 dezembro 2009

Os sinos da depressão



Todo ano é a mesma coisa. Começa dezembro, os sinos bimbalham e eu me deprimo. É automático, inevitável. Vocês sabem muito bem de que sinos estou falando. Não é o sino da torre da velha igreja que todos trazemos da infância. Nem os carrilhões das grandes catedrais que conhecemos de passagem ou pelos filmes. Os sinos que me deprimem bimbalham nas musiquinhas cabulosas que tocam nas lojas, nos carros de propaganda e nos anúncios de televisão. Eles querem reproduzir em nossa memória uma lembrança que não temos. Querem nos lembrar os guizos de um trenó que desliza sobre a neve puxado por renas carregando um bom velhinho com um saco enorme cheio de presentes. E talvez seja isto o que me deprime.


Vejam que não estou falando de nostalgia, pois esta sempre nos lembra alguma coisa que perdemos e não podemos mais recuperar. Os sinos que bimbalham em dezembro não me lembram nada que alguma vez tenha perdido. Eu nunca vi um trenó, não conheço uma rena e não me lembro de nenhum velhinho gordo e simpático que me tenha dado um presente.
O que perdi, e disto sinto falta, foram os dias de correria que antecediam a noite de festa, no natal e no ano novo. O que perdi foi as mãos fortes do meu pai abrindo a massa do pastel com uma garrafa cheia d’água. Perdi também o cheiro dos pastéis assando no forno e depois se derretendo na boca, misturando o doce do açúcar com o gosto salgado da azeitona. Perdi também o presente achado debaixo da cama na manhã seguinte. Perdi o pai, a mãe as tias e uma parte dos irmãos que construíam comigo essas festas. Isto me faz nostálgico. Mas não me deprime.


É por isso que faço tudo para me recolher em casa assim que começa dezembro. Não quero ouvir o bimbalhar dos sinos. Não quero fazer parte da correria insana que leva as pessoas de um canto para outro em busca de uma coisa que não vão encontrar. Nem dentro delas mesmas. Pois esta coisa chata que as simones e os robertos cantam, que até o pobre do John Lennon é obrigado a cantar, não existe em canto nenhum de nossa memória. Elas existem fora de nós, fabricadas por uma indústria de ilusões e bugigangas. Não me perguntem, pois, por quem os sinos bimbalham. Uma coisa eu garanto: não é por mim.

26 novembro 2009

O ofício de Márcia


Que ofício dar a Márcia? É médica de profissão, mas pouco se sabe disso. O que se sabe de Márcia é o que ela faz noutro ofício. Márcia Maia é poeta. E por fazer bem o que lhe cabe, Márcia ganhou o primeiro lugar na categoria poesia dos Prêmios Literários Cidade de Manaus, em 2007, com o livro Cotidiana e virtual geometria.
Nada mais adequado do que este título em um livro feito com o rigor dos geômetras. Márcia Maia dá um demonstração da sua força poética, construindo poemas com uma exigência formal própria dos obsessivos. Cada peça é um desafio ao engenho da artista. E ela os vence um a um com a obstinação próprio aos compulsivos. Mas o rigor formal não esconde a sensibilidade da poeta. Sua delicadeza nos acolhe em cada letra. Seu bordado fino se revela em cada linha. Sua geometria é feita de traços sinuosos e harmônicos.

Se quizerem saber mais do ofício de Márcia, visitem seus blogs*, procurem seus livros. O que posso adiantar aqui é um poema em que ela mesma revela os subterrâneos de sua oficina geométrica. Apredamos com ela, senão a ser tão bons poetas, ao menos saber como um bom poeta constrói o edifício do poema a partir dos mais ínfimos grãos de areia:

Ofício
um zumbido de sentenças pequeninas
arremedo de palavras quase sílabas
que entre letras esvoaçam suas asas
no alvoroço de buscar o que dizer

entre tédio e rebuliço um sentimento
entrehabita onde o silêncio faz-se círculo
e o percorre – em cada passo o mesmo passo
volta a volta em vã vigília busca a voz

que o exprima que o decifre que alardeie
que desteça a sua teia em mel e ácido
que corrompa da placidez pura do ar

e alça vôo por entre as asas mariposas
que em palavras letras versos voam ávidas
a queimar voz e sentir na mesma luz

19 novembro 2009

Tórrido, ensurdecedor



Lá pelo começo dos anos sessenta, Núbia Lafayete cantava num bolero que briga de homem e mulher é de dois, não cabe três. Se ele está batendo nela, é porque alguma coisa ela lhe fez. Ainda hoje se diz que em briga de homem e mulher não se mete a colher. Mas as coisas estão mudando aos poucos e a Lei Maria da Penha está aí para diminuir a pancadaria. Não se tolera mais ouvir os gritos de uma mulher apanhando do marido. Mas o que fazer quando perdemos o sono com a barulheira fornicatória do casal do lado? Segundo a BBC, os moradores de Newcastle, na Inglaterra, chamaram a polícia e o casal for parar nas barras do tribunal.


Caroline e Steve se amavam com fervor, quase todas as noites. A rigor, o fervor começava po volta da meia-noite e se arrastava até às três horas da manhã. Eram gemidos ensurdecedores. Um detector de ruídos registrou níveis médios entre 30 e 40 decíbeis. Nas noites mais tórridas, o pico chegou a 47. A vizinhança não conseguia dormir. Rachel O’Connor, que morava ao lado, chegava tarde ao trabalho por conta da barulheira dos vizinhos. “Eu nunca escutei nada igual”, disse ao Juiz, “é como se eles sentissem muita dor”.


Proibida de gemer na cama, Caroline recorreu da sentença, alegando que os gemidos durante o sexo faziam parte dos seus direitos humanos. Mas perdeu. O juiz Jeremy Freedman apoiou sua decisão no nível de ruído que podia ser ouvido nas propriedades vizinhas, na rua onde o casal morava e na rua detrás de sua casa.


Pobre Carolina, pobre Steve. Se gemessem de dor por conta de pancadaria, talvez seus vizinhos fossem mais complacentes. Mas gemiam de amor, esse vício atávico que não respeita sonos ou pudores alheios. Pobres vizinhos de Carolina e Steve. Devem continuar perdendo o sono, agora por sentirem a falta daqueles gemidos ensurdecedores que lhes faziam morrer de inveja por não ter quem os amassem tão extremamente.

08 novembro 2009

Pálido azul





Quando amanheceu, olhou-se no espelho e se assustou. Estava pálido. Pálido, não. Quase azul. Morto, talvez. Mas não, morto não se olha no espelho. E, se olha, não se vê. Estava vivo, sim, mas com cara de morto. Morto-vivo. E um calafrio relampagueou seu corpo.


Não era apenas o rosto que estava azul. Os braços e os dorsos das mãos também azulavam. Seu peito também, com os tufos de pelos melados de azul. Então era isso. Não era a pele que estava azulada. Era alguma coisa azul que cobria seu corpo, como uma camada de tinta seca que se rachava.


Cheirou o braço esquerdo. Não era cheiro de tinta. Era um cheiro leve de cosmético fino. Precisava de um banho. Depois, de uma boa explicação para o azul.


Enquanto a água escorria levando o azul pelo ralo, no escuro dos olhos pintou um clarão. No meio do clarão, uma silhueta esguia de mulher. Braços estendidos, ela esperava que ele flutuasse ao seu encontro, sem deixar qualquer dúvida que podia flutuar. Ele flutuou até ser cingido pelos braços da mulher que o carregou em direção à lua.


Então ela o pousou no chão da lua. Estavam nus. E ela apanhou um punhado da areia fina da lua, derramou lágrimas azuis sobre a areia e passou suavemente no corpo do homem entorpecido. Ele queria mover-se e não podia. Era como se a pasta fina de lágrimas e lua guardasse seu corpo como uma armadura.


E foi assim que ele dormiu e acordou em casa. Olhou-se no espelho e se assustou. Estava pálido. Pálido, não. Estava azul.



Ronaldo Monte – Clube do Conto

02 novembro 2009

Sem os óculos




Ela olhou com carinho para o homem dormindo de óculos na poltrona, o livro tombado sobre as pernas. O rosto voltado contra o espaldar levantava um pouco os óculos do nariz. O queixo duplicava premido contra o peito. Ele ficava meio engraçado, assim.


Com mãos leves, ela tirou os óculos do homem e ficou por um tempo olhando para aquele rosto há tanto tempo amado. Parecia desamparado sem o escudo que protegia seus olhos do impacto direto das coisas.


A longa falta de incidência da luz do sol desenhava um círculo pálido na pele em torno das órbitas. As pálpebras deixavam à mostra uma teia de rugas invisíveis sob o véu das lentes fotocromáticas.


Ali estava o seu homem despido de suas máscaras. Mudo, ausente, vagando não se sabe por quais sonhos. Ali estava. Longe, inacessível. Mas, mesmo assim, tão seu.

Ronaldo Monte
Clube do Conto – 31.10.2009

01 novembro 2009

A "puta" da faculdade




Parece uma rebelião de presídio ou uma cena de filme em que a multidão pede a morte do gladiador abatido no circo romano... Nem presídio, nem circo. A cena se passa no pátio de uma universidade. A turba dirige sua fúria a uma aluna de vestido vermelho curto. Esse era o seu crime. E a sua condenação vinha de um coro enfurecido: “puta – puta”. Foi preciso vir a polícia retirar a moça do prédio, coberta com um jaleco. Ela corre, de fato, o risco de ser linchada pela multidão enlouquecida. Em uma das cenas filmadas por amadores, ouve-se uma voz feminina em off: “O pessoal está indo atrás da puta da faculdade”.
Tentando me afastar do misto de fascínio e horror que o episódio desperta, tento compreender a patologia social que se esconde por trás desse sintoma. O que estaria na base dessa manifestação de intolerância e violência?
Nas primeiras páginas de sua novela “Mário e o mágico”, Thomas Mann relata o episódio em que uma menina de oito anos, de corpo franzino, tira o maiô para lavar e corre nua para o mar. Logo, toda a burguesia italiana que frequentava o balneário se sente ferida em sua moral e denuncia os pais da menina à polícia. Deste pequeno incidente de intolerância, o autor deduz todo o clima belicoso que se apoderava do povo italiano prestes a se entregar à aventura fascista.
A alma italiana estava já envenenada pela versão mussoliniana do discurso nacional-socialista. Toda e qualquer manifestação de costumes estrangeiros era uma ameaça à supremacia da raça e deveria ser combatida e extirpada no nascedouro. A relação entre a intolerância dos veranistas e o ideal facista foi brilhantemente estabelecida pelo gênio de Thomas Mann.
Quanto a nós, o que temos a deduzir do episódio da universidade paulista? De saída, podemos estar diante do efeito do divórcio entre o ensino tecnológico e a ética humanista. Podemos,ainda, estar testemunhando uma exibição ruidosa da demonização do outro, qualquer outro, que desperte o que de mais vil ou execrável dormita dentro de nós. Pode ser um negro, um judeu, um muçulmano, um nordestino, um homossexual ou, no caso, uma mulher.
Vivemos num mundo em que os recursos ficam cada vez mais raros, sendo cada vez mais difícil partilhar os bens equitativamente. É preciso, portanto, criar estranhos, estrangeiros, culpá-los pelo escassez e destruí-los como indignos da partilha. Visto desse ângulo, cada um de nós, pode, a qualquer momento, ser transformado numa “puta” da faculdade.

31 outubro 2009

Os gemidos de Dôra



Tem gente que sai para se distrair, outros vão às compras ou ao trabalho. Dôra sai para ouvir a rua gemer. E sabe o que Dôra faz com esses gemidos? Escreve livros com eles. E não é somente o novo livro de Dôra que guarda os gemidos do mundo. Desde “Arquitetura de um abandono”, de 2003, passando por “Preces e orgarmos dos desvalidos”, de 2005, até “O beijo de Deus”, de 2007, Dôra não faz outra coisa além de nos contar do sofrimento que vê e escuta pelas ruas.


Mas repare que Dôra não fala de gritos, uivos ou impropérios. Ela se faz portadora do sofrimento sofrido em surdina, nos becos, nos cômodos apertados das casas de vila, nos banheiros imundos, na solidão das noites suarentas.


“Os gemidos da rua”, o mais recente livro de contos de Dôra Limeira, tem uma catinga azeda das valetas por onde escorre a podridão dos detritos humanos. Cada personagem de Dôra geme como a quem se espreme um carnegão. Sem escândalos, pois não se espera que a mão pesada alivie a força do aperto. Geme-se apenas, com a resignação de quem sabe que a dor vai piorar.
Dôra dividiu os 59 contos do seu livro em três partes: Transgressão, Desvio e Imtimidade. Não consegui adivinhar o critério que ela usou para tal divisão. Peguntem a ela. Pois, para mim, em qualquer parte em que se abra o livro, encontrar-se-á em cada personagem as qualidades da transgressão, do desvio e da intimidade. Isto porque, no meu fraco entender, estas são qualidades facilmente visíveis na própria Dôra.


Dôra cultiva a idossincrasia de usar recorrentemente em seus contos o verbo “adentrar” nos mais diversos modos, tempos e pessoas. Em quase todos os seus contos o verbo cabuloso está lá, às vezes mais de uma vez no mesmo conto. Um psicanalista apressado diria que o verbo adentrar teria uma significação fálica, revelando um desejo de agressão que teria como suporte a pulsão de morte em atividade nos porões do psiquismo dôriano. Limitado ao meu humilde papel de apresentador do livro, revelo apenas minha suspeita de que Dôra usa “adentrar” para se vingar de alguém que um dia disse que o tal verbo soava inadequado na boca de uma personagem que vivia num lugar sujo e pobre. Acontece que o tal lugar era calcado no espaço em que a própria Dôra tinha vivido sua infância. E ela, Dôra, adentrava, sim, quando vivia ali.


Convido-vos, pois, a adentrar ao livro de Dôra Limeira. Antes, porém, avisem aos familiares e amigos mais próximos que não estranhem qualquer mudança no seu modo de falar ou de andar pelas ruas. Seguramente, vocês não serão os mesmos quando saírem, gemendo, da leitura de “Os gemidos da rua”.

João Pessoa, 30 de outubro de 2009
Ronaldo Monte.

26 outubro 2009

Bolha


Definitivamente, ele não podia vir. No entanto, mais ao menos na hora dele chegar, uma menina soltou uma bolha de sabão que flutuou sobre nossas cabeças e definiu o tema do próximo encontro.

Ronaldo Monte – Clube do Conto
Imagem obtida em: tutoriaisphotoshop.net

18 outubro 2009

Muito prazer, Malu




Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que cochila aí ao lado. É minha mais nova neta, a Malu. Talvez eu devesse dizer futura neta, pois ela ainda está no quinto mês de gestação e o flagrante se deu na barriga de sua mãe, mulher do meu filho. Mas aí é que está um dos grandes problemas da humanidade: quando é que uma pessoa começa a existir?

Não quero perder tempo aqui com o problema sobre o início da vida, pois isso tem sido motivo para um desfile de discursos preconceituosos e pseudocientíficos, principalmente quando está em questão o direito ao aborto. Minha preocupação é bastante mesquinha e pessoal: posso considerar Malu como minha neta e começar a comprar coisas e fazer planos para ela, antecipando em alguns meses sua existência fora do ventre da mãe?

Vejam bem a situação atual em que estão as coisas: enquanto um projeto de menina se nutre, dorme e dá cambalhotas no exíguo espaço que lhe protege, um batalhão de adultos escolhe seu nome, borda esse nome em lençóis e toalhas cor-de-rosa, faz planos para os seus quinze anos e já pensa no que ela vestirá no baile de formatura. Em suma, já existe todo um presente e um futuro prontos para ela viver. Certos papéis já lhe estão destinados pelas condições de classe social e nível de informação de seus pais e adjacentes.

Enquanto isso, a futura Malu dorme, cresce e dá cambalhotas. Mas será que é de uma futura neta que estou falando? Ela já está aqui, determinando o que penso e escrevo. Essas meninas começam cada vez mais cedo a perturbar a vida a gente.

12 outubro 2009

O outro lado

Não tenho qualquer vocação para Polyanna e sei muito bem no que deu a fé inabalável de Anne Frank na bondade humana. Não é, portanto, de bondade que quero falar. É de um impulso muito mais primitivo na constituição do ser humano que o leva a arriscar a própria vida em defesa da vida de um semelhante. É algo ligado à preservação da espécie, valor mais alto do que a preservação do indivíduo.
O exemplo mais recente deste aspecto radical do comportamento humano foi dado pelos protagonistas do salvamento de uma mulher prestes a ser carregada com a sua moto numa enxurrada, na cidade de São José do Rio Preto, em São Paulo.
Quem viu as cenas pela televisão pode constatar o caráter impulsivo do comportamento dos voluntários. O próprio termo “voluntário” aqui se torna inadequado, pois não se trata de um tomada de decisão consciente, a partir da vontade individual. É um imperativo irrevogável que não considera os riscos da ação. Existe um semelhante em perigo e não cabe mais nada a fazer senão salvá-lo.
Estamos tão habituados às notícias sobre a violência entre os homens que somos levados a ver a nossa espécie como essencialmente destinada à destruição dos vínculos entre os semelhantes. É preciso que algo se eleve à condição trágica para que possamos ver a manifestação do instinto gregário que nos faz ainda resistir como espécie.
Não tenho, já disse, qualquer vocação para Polyanna, nem acredito incondicionalmente na bondade humana. Mas é muito bom ser lembrado, de vez em quando, que existe um instinto básico na minha espécie que permite um mínimo de esperança na construção de uma convivência solidária.

11 outubro 2009

Minh’alma é triste



Chamava-se André, mas gostaria de se chamar Casimiro José Marques de Abreu. Daria tudo para morrer tuberculoso. Daria a vida para ter escrito o poema Minh’alma é triste. Ah,como queria pegar da pena e escrever:
“Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora...”
Ó, meu Deus, se Yolanda pudesse um dia ler no seu caderno de folhas pálidas a constatação metafísica de que
"Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria...”
Não, talvez Yolanda não gostasse muito dessa coisa pesada de mortos, talvez nem curta o carpir melancólico dos sinos. Seria melhor dizer que
“Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato...”
André sabia muito pouco de Yolanda. E quanto mais queria ser Casimiro de Abreu, mais via sua musa sumir com a galera em busca dos embalos. André definhava, dormia mal, comia quase nada. Varava as noites com a janela aberta para ver a hora em que sua amada voltava, alegre, não sabia bem de onde.

“Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste...”,
pensava André, sob a luz pálida da sala.
Em algum lugar do mundo nascem flores, pensava André, menos aqui, neste pedaço de terra esquecido de Deus, onde faz sol ou chove, chove a cântaros. Como queria viver (morrer) em outras plagas para poder dizer a Yolanda:
“— Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri — mas a minh'alma é triste!”
A luz pálida do sol mandou Yolanda pra cama e o pálido André para seu velho exemplar de Primavera.


Ronaldo Monte - Clube do Conto - tema: Pálido

05 outubro 2009

Momento cultural






Se você quiser ganhar um jantar exclusivo com dois expoentes da cultura nacional, basta responder a esta singela questão: “o que você faria para conhecer a Joelma e o Chimbinha de pertinho?” É isto que está proposto num imenso cartaz nas lojas de uma das maiores cadeias de supermercados do País, com o título de “Momento cultural”. Não venha me dizer que sua formação cultural é insuficiente para reconhecer os seus prováveis futuros comensais. Chimbinha e Joelma são as estrelas da Banda Calypso. Dentre seus mais de 190 sucessos estão Doce mel, A lua me traiu, Deixa eu sonhar e Pra te esquecer.

Particularmente, não tenho nada contra a banda Calypso ou qualquer outro conjunto que ganhe seu dinheiro honestamente junto a um público imenso que curte, dança e canta suas músicas. A minha bronca é com os patrocinadores e divulgadores do tal “momento cultural”, pois iludem a clientela, vendendo como um momento de fruição estética um jantar entre um fã e seus ídolos.

Esta é apenas mais uma amostra de como a cultura vem sendo tratada pela midia. Os grandes jornais do País há muito vêm confundindo show business com movimento cultural. Colunas ditas culturais estão cheias de fofocas sobre Ivete Sangalo, Suzana Vieira e Dado Dolabela. Quando muito, anunciam uma peça caça-níqueis com um dos ídolos da última novela das oito. Com isto, livram-se da chatice do papo intelectual e das fotografias sem charme desses mal-encarados rodeados de livros e quadros que ninguém sabe o que querem dizer.

Um jantar de um fã com seus ídolos deve ser realmente um momento de muito prazer e emoção. Só não gosto que chamem a isso de momento cultural. Culturais mesmo são os momentos dos fins de tarde dos sábados quando me encontro com o Clube do Conto. São os momentos cada vez mais frequentes neste País em que muitos grupos se reúnem para produzir e divulgar cultura.

27 setembro 2009

Lembrança




Traga uma lembrancinha pra mim, ela pediu. Qualquer coisa simples que faça você lembrar de mim, ela falou, oferecendo a boca para a despedida.
Ele entrou no ônibus sabendo o cansaço que o esperava. Ia para longe, alto sertão, mais de doze horas de viagem. Cidade perdida entre serras. Ia ser difícil encontrar alguma coisa para ela.
O ônibus rolando pela estrada reta, hipnótica. O sol da tarde batendo de frente, ofuscando através do vidro fumê. Impossível dormir. O olhar compulsório não registrava nuances. Vastas planícies de vestes rasteiras e o horizonte de serras inalcançáveis.
Saiu no começo do dia, chegou no começo da noite. Um resto de luz teimando no poente, um resto de calor que cedia à frieza. A pousada em penumbra. A noite revirada na cama. A manhã que custou a chegar.
Com a manhã, os passarinhos. De onde vinham e para onde iriam tão logo o sol esquentasse? E as pessoas, onde estariam com suas vozes arrastadas e suas poucas respostas? E os bichos pequenos que não se mostravam, chispando entre as folhas ralas dos arbustos?
Era muita luz para o pouco a ser iluminado. A palavra agreste armou-se em todo seu sentido. Luz demais sobre quase nada. E este era o desafio. Forçar os olhos a ver o que a luz escondia. Inventar sombras. Criar movimentos.
Lembrança. Que lembrança levar para ela. Nada para comprar, nem pedir, nem achar. E estes olhos viciados aos contrastes chapados dos signos urbanos eram cegos para a beleza cantada pelos versos agrestes dos poetas.
Lembrança. Era isto que tinha para dar a ela. A lembrança dela o tempo todo enfeitando a paisagem impenetrável. Ela mesma impedindo que a paisagem se abrisse aos seus olhos. Era ela, a lembrança dela que o impedia de encontrar alguma coisa que levasse de lenbrança.
Foi isso que ele deu a ela. A lembrança dela o tempo todo ofuscando a visão, saturando a memória. Foi isto o que tentou dizer ao mostrar as mãos vazias e as retinas fatigadas com a imagem dela.

Ronaldo Monte – Clube do Conto da Paraíba.

Imagem obtida em:uni-adversidade.blogspot.com

17 setembro 2009

Sala de visita



Antigamente, as casas tinham sala de visita. Nem todas, é claro. Mas uma família de classe média tinha por obrigação ostentar uma sala de visitas. Geralmente, era o primeiro cômodo da casa e ali não se podia entrar a qualquer hora. Muitas delas eram trancadas a chave.
E não era qualquer visita que era recebida na sala de visitas. Os parentes próximos e os amigos mais chegados ficavam espalhados no terraço ou iam direto para a cozinha. Na sala de visitas, apenas certas visitas. Daí um certo alvoroço quando arrumavam a dita sala. Quem vai chegar?
Gralmente eram chatas as pessoas recebidas na sala de visitas. Gente de alguma importância, parentes distantes e cerimoniosos, mulheres eretas sorvendo sem barulho as pequenas xícaras de café.
As casas de hoje não permitem mais o luxo das salas de visita. Nos exíguos apartamentos, tipo já-vi-tudo, se entrar mais de quatro pessoas, alguém vai ficar em pé. Tanto melhor, pois nos livramos dos chatos e cerimoniosos. Em nossas casas, hoje, só entra quem nos quer bem. E os pequenos espaços nos dão a medida dos laços das nossas amizades.


Imagem obtida em: sedeieqblumenau.files.wordpress.com

10 setembro 2009

fotopoema




Foto de Ana Patrícia
http://www.flickr.com/photos/anap

02 setembro 2009

Index das cantigas




A presença das netas reestabeleceu aqui em casa o hábito de ouvir cantigas de roda. Por isso, de vez em quando fico pensando na mania recente de algumas “tias” em alterar certas cantigas, temendo que o teor de suas letras estimule tendências agressivas e politicamente incorretas nas nossas inocentes criancinhas. O exemplo clássico é a campeã de audiência “Atirei o pau no gato”.
Numa tentativa de contribuir para o novo “index librorum prohibitorum”, quero dedurar algumas modinhas que, no meu fraco entender, vêm há séculos pervertendo os hábitos e pensamentos dos nossos rebentos. Em primeiro lugar, denuncio a baixaria entre o Cravo e a Rosa. É coisa digna do programa do Datena. Sabe-se lá por quais motivos, o casal de engalfinhou em público debaixo de uma sacada, tendo como desfecho um ferimento de graves consequências no Sr. Cravo e a total destruição das vestes da Dona Rosa. Não bastasse o nível da agressão, ressalte-se ainda o total descaramento do casal, pois, no outro dia, a moça foi visitar o amante no hospital, reatando o caso amoroso entre suspiros e desmaios.
Caso menos complicado, mas nem por isso desculpável, é a má sina de um certo indivíduo que responde pelo nome de Sambalelê. Boa coisa o elemento andou fazendo, pois já levou uma surra, que o deixou doente e com a cabeça quebrada. E a turma ainda acha que ele precisa de umas boas palmadas. Outro cara que deve ser seu cúmplice, um tal de Bitu, quando chamado às falas, recusa-se a comparecer com medo de apanhar.
Se formos devidamente rigorosos e excluirmos dos cancioneiros de roda, além das cantigas claramente agressivas, aquelas que fazem alusão ao sexo nos mais diversos níveis (vide Terezinha de Jesus, a Pobre viuvinha, Desanda a roda, etc.) muito pouca coisa restará para ser cantada pelas nossas crianças. Então, para o alívio das “tias” politicamente corretas, elas estarão totalmente liberadas para se entregar ao universo poético do funk e do forró eletrônico.


Imagem obtida em: brincadeirasdecrianca.com.br

29 agosto 2009

A quem interessar possa




São dez e pouco da manhã do sábado. A feira está feita, as pequenas providências tomadas, adiou-se o que podia ser adiado. Daqui a pouco abriremos os trabalhos, qualquer que seja o quorum. Se der tempo, apareça.

23 agosto 2009

Manhãnzinha de nada




É uma manhã simples de domingo. Não me promete nada de grandioso, surpreendente. Daqui a pouco vai sair um café, logo mais chegarão os filhos que faltam, virão as netas, talvez algum amigo. Tem cerveja na geladeira e uma promessa de macarrão para o almoço. Aí já será de tarde e a manhã terá cumprido seu ofício: ser uma manhã simples de domingo, projetando uma calma luz no chão imprevisível da semana.

22 agosto 2009

Não posso ir



Gente: por maior que fosse minha boa vontade, não há dedão do pé que resista a uma pancada de prateleira. Foi a maior sangreira. Aí está a foto para provar. Não vou ao Clube do Conto por total impossibilidade de locomoção. Beijos gerais. Rona.

16 agosto 2009

Quando mentem as orelhas




Se o leitor soubesse como são feitas as leis, as lingüiças e as orelhas dos livros, não confiaria em nenhuma delas. Das últimas, pelo menos, tenho um bom exemplo de inconfiabilidade. Trata-se da orelha do livro “Relato de Prócula”, de W. J. Solha. Vou citar para poder ilustrar meus argumentos:
“Sempre houve um mistério na razão da defesa de Jesus feita por Pilatos ante o Sinédrio. E aí, o Padre Martinho Lutero Libório – vigário da paróquia de Pombal, na caatinga paraibana – pergunta-se, depois de fazer o papel do romano na Semana Santa, na capital da Paraíba, se o motivo teria sido, mesmo, um sonho de Cláudia Prócula – mulher do praefectus de Jerusalém – ou algo bem mais poderoso, como o vínculo dele com o Nazareno, agente infiltrado, judeu, mas cidadão de Roma, tal como eram Paulo de Tarso, Flávio Josefo e Filon de Alexandria.

“Este romance inova com essa sua teoria – tão polêmica quanto a do Código da Vinci” – e com a reprodução vívida da até então ignorada vida cultural do interior nordestino, realidade muito distante do universo retratado por obras como Vidas Secas, Fogo Morto ou Grande Sertão:Veredas.”

Saiba o leitor que, depois de ler duas vezes o “Relato de Prócula”, não liguei minimanente para as querelas do autor com as supostas verdades acerca do Cristo histórico. Muito menos considero a teoria do padre Martinho tão polêmica quanto a do best seller davinciano. Para mim, nada disso tem importância e cai para segundo plano quando nos deparamos com a força do personagem principal do romance. Os verdadeiros conflitos do padre Martinho não dizem respeito a questões da história das religiões. O que o padre não consegue superar é o conflito entre sua enorme virilidade sexual e intelectual e os arcaísmos dos dogmas católicos.

O bom mesmo do livro é a viva reconstrução das relações afetivas dos viventes da cidade de Pombal e da fazenda Mundo Novo. Dispensam-se as citações eruditas de livros e filmes, as pretensões filosóficas dos intelectuais do interior. O que nos prende são as paixões represadas, os desejos não ditos, a fome de amor do padre e suas meninas.

Angustiado e culpabilizado por conta da força de seu desejo, o pobre Martinho cai na tentação do suicídio. Mas a poderosa corrente dos amigos, principalmente das grandes mulheres que o cercam, faz com que sua inteligência vença de vez sua culpa e decida viver a plenitude de suas paixões.



Rubens Bentancur, o narrador do romance é, sem nenhum disfarce, o próprio Solha nos prestando contas da refundação de suas raízes na Paraíba. O padre Martinho é o seu alter-ego, aquele que sofre as dores do embate entre o desejo e os dogmas religiosos.

Que o leitor mergulhe sem medo nas páginas caudalosas do “Relato de Prócula”. Se souber navegar com cuidado, vai poder fruir um texto maduro, conduzido com mão segura, produzindo sonoridades que a orelha do livro não ouviu. Como nesta passagem em que o padre Martinho, depois de passar a noite no terraço da casa-sede de sua fazenda agarrado a um livro de memórias de Pôncio Pilatos, levanta-se “ao ouvir os primeiros cocoricós, balidos e mugidos em lugar dos cricrilos, coaxares, além de voos de corujas, morcegos e tetéus...” Isto é pura sonoplastia, esperando o momento em que o livro vire filme. Coisa fácil de fazer pelas mãos plurais do artista W. J Solha.

09 agosto 2009

Ofício paterno





Ouvir
o grito do teu corpo
no escuro.

Salvar
teu corpo dessa morte
prematura.

Colher
teu corpo desmembrado
do naufrágio.

Lançar
teu corpo derrelito
em praia firme.

Reter
o todo do teu corpo
nas retinas.

Rever-me no teu corpo.
Deixar-te com teu corpo
longe de mim.


Imagem obtida em mensagensvirtuais.com.br

06 agosto 2009

Vistam saias, meninas: é agosto





Publico de novo porque gosto do texto e também de agosto.

Há um certo prazer em falar mal de agosto. Dizem que é o mês das bruxas, onde cai o dia das sogras, foi quando morreu Getúlio e costumam ocorrer desgraças políticas. Pouca gente fala bem de agosto.

Quase ninguém se lembra que é o mês do mais belo luar do ano, promovendo encontros e reconciliações entre os já românticos e convertendo ao romantismo alguns indecisos pós-modernos. Em mim, particularmente, o luar de agosto produz um estado intermediário entre uma lânguida melancolia e uma vontade enorme de uivar.

É certo que em alguns anos agosto lembra um velho sombrio, com suas nuvens cinzentas, suas chuvas fora de hora, invadindo maleducadamente com seus miasmas setembro a dentro. Mas num ano como este, agosto merece ser tratado com toda a consideração. Já na primeira semana faz um sol quase de verão, esquentando um pouco a água do mar, levando à praia uma boa safra de mulheres e, vá lá, alguns homens dignos de nota. Só temos que aturar o vento forte, o bom vento de agosto que, se algumas vezes aborrece ao derrubar varais, espalhar jornais ou varrer areais, nos compensa com um dos mais belos espetáculos ao ar livre: a dança das saias.

E não me venham dizer que isto é coisa que só interessa aos homens. Alguma coisa me diz que as mulheres esperam ansiosas por agosto, preparam-se em academias e clínicas de beleza para o encontro com este mês abertamente masculino. E tenho certeza que uma pesquisa de mercado revelaria um forte incremento no comércio de saias ou cortes de tecidos para elas, cremes e óleos para pernas, além de peças íntimas de langerri a serem desvendadas num momento de estudada distração.

Os homens esperam por agosto como a um velho camarada. Um amigo maroto que faz por nós o que mais gostaríamos de fazer em plena rua: levantar as saias das mulheres.E reparem bem no rosto de uma mulher a quem o vento de agosto vai levantar a saia. Há, de início, uma certa expectativa, quase uma ansiedade, um temor de que não sopre vento nenhum e tenha sido em vão todo o preparo, todo o cálculo de chegar naquela esquina no momento em que um homem, ou um grupo de homens, passa atento pela calçada contrária. Logo, sopra o vento. Primeiro, de leve, deslocando os cabelos e fazendo a vítima fechar os olhos numa mescla de vago aborrecimento e satisfação. Quase um agradecimento.Ato contínuo, vem o farfalhar da saia. Aí é necessário que a dona da saia tenha alguma coisa em uma das mãos. Pode ser um sortimento de livros e cadernos, algum pacote não muito volumoso, até sacola de supermercado serve em certos casos. O importante é que apenas uma das mãos fique livre para segurar a saia em um dos lados, deixando o outro ao sabor do vento de agosto e dos olhos dos seus gratos amigos do outro lado da rua. O movimento, brusco mas não tanto, de segurar um dos lados da saia leva a um certo desequilíbrio que faz com que o volume sustentado pela outra mão ameace cair. Nisso, a mão que segurava a saia vai em ajuda à sua irmã, deixando agora todo o campo livre para o trabalho do vento e dos olhos.

Há variações do rito, é certo. A melhor delas é quando agosto apanha com seu vento um bando de mulheres no meio de uma ponte ou numa rua larga, de preferência ladeirosa, em que estejamos todos subindo. Mulheres na frente, como manda a boa educação, homens regulando o passo até alcançar a melhor distância para um visão de conjunto e, finalmente, ele, o ruidoso, o assobiador, o vigoroso e salutar vento de agosto, causando desordem e euforia, quebrando a monotonia das tardes friorentas. Estamos no começo de agosto. Já é tempo, meninas, vistam saias. E deixem brincar com elas o vento de agosto, para o alimento de vossas vaidades e o bem dos nossos olhos. Antes que todos, olhos e vaidades, sejam desviados pelo despudoramento de setembro, escancarando corpos e tornando vulgar o jogo sedutor que agosto sabe tão bem jogar.

(Publicado em Memória curta, 1996)

30 julho 2009

Poeta Antônio Mariano indica romance Memória do fogo

27 julho 2009

Sob os olhos do fantasma



Passei o fim de semana com o fantasma de Barreto em minha cola. Fui para minha casa em Cabedelo com a intenção de fazer a revisão do seu último livro de contos, Os colecionadores. Fátima, a mulher dele, tinha pedido a mim e a Valéria Rezende para editar o livro que ele tinha deixado já com índice e ficha catalográfica prontos. Junto com Valéria, tive o privilégio de fazer a leitura crítica de seus últimos livros. Era um privilégio que me divertia muito, pois lia antegozando as brigas homéricas que teríamos na hora de devolver os originais. Cada frase, cada palavra, cada vírgula era disputada a tapa, com argumentos nem sempre racionais e um jargão pouco imaginável entre cidadãos dados às lides das letras.

Desta vez, não foi diferente. E muito pior. O fantasma não esperou que eu terminasse a revisão. Chegava a qualquer momento e ficava espiando pelas minhas costas. Sentia sua apreensão toda vez que eu pegava o lápis para fazer uma anotação. Quando era um erro simples de digitação, o fantasma relaxava. Mas quando eu punha em dúvida uma construção mais redundante ou discordava de uma concordância, era sensível a sua muda irritação.

Por outro lado, sentia a vaidade do fantasma quando eu sublinhava uma construção de mestre: “Era uma sexta-feira e ele trazia na cara todos os expedientes da semana”. Fui eu que fiz, quase o ouvia dizer. Na passagem de “o vento varrendo a poeira do abandono”, senti um leve farfalhar nas folhas de um vaso próximo à rede onde eu lia. Acho que ele fez de propósito, para dizer que ainda sabia reconhecer a minha inveja. E fez cair uma folha quando viu que eu estava na parte em que a seca vinha “matando plantas, secando o capim, bebendo todo o molhado que havia”.
Quando terminei a leitura e sorri satisfeito pelo presente que havia recebido, senti que ele foi embora. Mas antes de sair, balançou com força o sino japonês pendurado no canto do terraço. Como quem diz, eu vou, mas volto em dezembro, quando o Clube do Conto se reunir para festejar o Natal.

19 julho 2009

O deus de Kaká

Existe um deus desocupado que, por não ter coisa melhor a fazer, decidiu ser torcedor do Real Madri. Um deus irresponsável que, no meio de uma crise financeira internacional devastadora, fez aparecer, por milagre, uma fortuna no cofre do seu clube para contratar um jogador de futebol de sua preferência. Não satisfeito, e vaidoso de sua divindade, mandou a mulher do jogador abrir uma igreja na Espanha para louvar os seus feitos em favor dos ricos e descolados deste e do outro mundo.
Pelo menos é isto o que nos deixa imaginando o depoimento de Caroline Celico, mulher do jogador Kaká, recentemente contratado pelo time espanhol. Para Caroline, o milagre é evidente: “Como pode alguém no meio da crise ter dinheiro? Deus colocou esse dinheiro ma mão do Real Madri para contratar o Kaká. Nós vamos abrir uma igreja lá. Existem vidas que têm que ouvir essa palavra”.
A igreja em pauta é a Renascer em Cristo, propriedade da bispa Sônia e de seu marido Estevam, aqueles mesmos que foram em cana e estão proibidos de sair dos Estados Unidos por tentarem entrar lá com um punhado de dólares não declarados. Devem ter achado sacrilégio declarar um presente tão singelo do deus lá deles.
Eu já devia não me espantar mais com essas picaretagens que, aliás, não são privilégio de nenhuma dessas seitas em particular. Quem se der ao trabalho de assistir ao vídeo vai constatar facilmente que a mocinha não acredita em uma vírgula do que está falando. O que me espanta mesmo é que exista gente crédula o suficiente para se deixar encantar por um discurso ôco de qualquer sustância, seja divina ou profana.
Não é que eu queira tirar o direito de Kaká e sua doce Carolina acreditarem em um deus particular que os protege e enriquece. O que me incomoda é qualquer desses descolados usar o seu brilho pessoal para nos convencer que são os escolhidos dos deuses. E que nós, que ralamos ao rés dos chão, só ascenderemos aos ouros celestes se abrirmos mão de uma parte significativa do fruto do nosso suor para abastecer a conta bancária dos arautos dessa divindade boçal e alienada do sofrimento dos povos.

12 julho 2009

Parto natural


À uma e meia da madrugada, entramos em trabalho de parto. Entramos eu e Glória, os avós, Flávio, o marido e, last but not the least, Ana Lia, que bateu no nosso quarto e avisou com toda naturalidade: minha bolsa rompeu.
Muito naturalmente, chispamos para a maternidade, pois nossas contrações já atacavam em menos de cinco minutos de intervalo. Parteira e pediatra a postos, decidiu-se que o parto seria ali mesmo, no quarto. Nada mais natural, portanto, que eu me retirasse, pois tinha clara consciência da minha inutilidade naquele momento.
Talvez essa tenha sido a decisão mais errada da minha vida. Fiquei andando feito um bicho enjaulado pelos corredores, ouvindo os gritos de minha filha e imaginando todas as torturas que lhe estavam sendo infligidas por aquele bando de perversos. Por vários momentos estive a ponto de irromper no quarto de arma na mão e gritar: isto é um seqüestro. Todos para a sala de cirurgia.
Mas de repente fez-se um silêncio logo quebrado por um vagido apaziguador. Foram-se os monstros e em seus lugares estavam uma médica perfeita, uma pediatra competente, uma avó em lágrimas, um pai em transe e um mãe em exausta beatitude.
Foi a primeira vez que testemunhei auditivamente um parto natural. Pelo que sofri, passei a achar que não existe nada mais natural do que uma boa cesariana. Mas todas dizem que é bem melhor a recuperação rápida do que a chateação pós-cirúrgica. Não tenho como optar.
Natural mesmo é o nosso resguardo. Há uma tendência generalizada a ficar na cama, voltar depressa pra casa, nadar em lágrimas a qualquer pretexto. Natural mesmo é o clima amoroso que se instala em toda a casa contaminando outros endereços em volta do mundo. Natural, muito natural é que eu esteja aqui tentando disfarçar um sentimento transbordante que me causa a condição de avô de Anita.

06 julho 2009

Mãos dadas


Deram-se as mãos.
E achando pouco, os dois deram-se as bocas.

Queriam mais.
Então, deram-se os corpos.

E muito mais tiveram para dar
assim presenteados um ao outro.


Imagem obtida em: cgi.ebay.com.sg

30 junho 2009

A hora e a vez



Uma eternidade se concentra nesses poucos segundos. Ele fixa o olhar na bola como se quisesse hipnotizá-la, antes de colocá-la no gramado. Os gestos são precisos. Todos os músculos de prontidão. Depois, os olhos miram o lugar por onde a bola fatalmente deveria entrar. Nenhuma dúvida em seu rosto. Nenhuma hesitação. Estava de frente do gol como um toureiro de cara com o touro.

Nenhum jornal publicou a foto do momento mais dramático da Copa das Confederações. Já se passavam 36 minutos do segundo tempo de Brasil e África do Sul quando Daniel Alves entrou em campo. Cinco minutos depois, o lateral direito deixava sua marca no placar que definiu a partida.

Depois chorou, correu como criança e levou cartão amarelo por ter levantado a camisa para mostrar o nome do filho recém nascido tatuado no peito. Tudo isso foi registrado e publicado nos jornais e nas revistas. Repetido pela televisão. Mas foi aquele ritual fechado e compacto que antecedeu o gol que ficou marcado na minha memória. A cena definitiva de um homem que soube fazer sua vez e sua hora.

21 junho 2009

Os mistérios do mundo


Vinha dirigindo meio distraído quando bati de frente com a faixa exibida sobre o muro da casa de esquina: “Colocamos mega-hair no nó italiano e na queratina com hora marcada”. Minha pobre capacidade hermenêutica sentiu-se desafiada por aquele enigma suburbano.
Pondo em prática o método desconstrutivo, comecei por separar o texto em pedaços conhecidos e desconhecidos. Meus parcos conhecimentos de inglês permitiram deduzir que o termo mega-hair devia se referir a uma cabeleira farta, daquelas dos rastafaris ou das louras adventícias.

Hora marcada, por sua vez, não deveria designar nada de novo além daquele velho procedimento há muito erradicado dos consultórios médicos. Restaram apenas, portanto, o nó italiano e a queratina.

Houve um tempo em que os italianos eram desbravadores de mares, tal como Colombo e Vespuci. Quem sabe o tal nó italiano era alguma espécie de nó de marinheiro? Quanto à queratina, o dicionário não ajuda muito. Remete a ceratina, que vem a ser “uma proteína fibrosa e pouco hidrossolúvel, comum na epiderme, constituinte principal do cabelo, unhas, pêlos, tecidos córneos... etc.”

De quase nada adiantou recorrer às mulheres da casa, pois são pouco dadas a salões de beleza, contentando-se com um ritual semanal de manicure ali mesmo no terraço. Aproveitei um desses momentos para me livrar definitivamente do meu analfabetismo capilar. Mira, a moça das tesouras e alicates, não soube dizer muito bem do que se tratava. Nem mesmo um telefonema para o próprio salão de beleza esclareceu muita coisa. Soubemos apenas que a coisa era cara. Cento e cinqüenta reais apenas o nó italiano e duzentos com a aplicação da queratina. O preço dos cabelos a ser implantados não estava incluído.

Saí do terraço chateado. O enigma continuava praticamente intacto. Entrei no escritório, liguei o computador e acessei o google. Foi só escrever “megahair nó italiano queratina”, e pronto. Todo o mistério do mundo estava resolvido em poucos segundos. Não vale nem a pena contar o que é. Quem quiser que vá lá ver.

14 junho 2009

Janelas de apartamento


Podem me acusar de voyeurismo, mas tem uma coisa que gosto muito de fazer: olhar janela de apartamento. Gosto de imaginar a vida daquelas pessoas, pensar como foi ou será o seu dia, o que estão comendo à mesa, o que conversam no terraço.
Em frente a um hotel em que me hospedava com frequência, tinha um prédio de pequenos apartamentos, desses de quarto e sala. Bem em frente ao meu quarto, morava uma mulher que não parava quieta. Ia da sala para o quarto, voltava, perdia-se lá por dentro para aparecer de novo, como um bicho na jaula. E minha curiosidade turbinava, pois eu só conseguia vê-la da cintura pra baixo. Tinha pena dela, mesmo sem nunca saber quem era.

Para mim, a melhor hora de espiar apartamentos é no finzinho da tarde. Me dá uma melancolia, uma vontade de ir esperar as pessoas que vão chegar do trabalho ou da escola, perguntar como foi o dia, ver quem chega com o pão para o jantar. Também gostaria de chegar de repente na porta dos que moram sozinhos, tocar a campainha e entrar para uma visita rápida. Talvez ficando para um café.

Se quiserem ainda me acusar de voyeur, saibam que estou muito bem acompanhado neste vício. Vejam, por exemplo, a letra da música abaixo, de autoria de Renato Rocha, cantada pelo MPB-4. É uma coisa linda. Assim que conseguir baixar a melodia, vou querer repartir aqui com vocês.


Janela de Apartamento

Homem entrando calorento afrouxando o colarinho
A mulher vem lá de dentro: um abraço um beijinho.
Janela de apartamento parece estória em quadrinhos

Lá naquela um cachorrinho, acho que fica sozinho,
a maior parte do tempo
Do lado mora um velhinho que nunca recebe gente
Acho que vive somente pra cuidar dos passarinhos.

O jantar está saindo ali, naquele do centro.
Todos comendo assistindo a novela do momento.
Em cima do cachorinho vagou um a pouco tempo.
Ali morava um brotinho que pra todos os vizinhos
era um acontecimento.
Saudades daquele tempo, aluga-se apartamento.

O homem do colarinho foi na janela um momento.
A mulher foi lá pra dentro, o casal tem um filhinho.
E o velhote sonolento, que dorme com os passarinhos,
fecha a cortina um pouquinho, tira a gaiola do vento,
apaga a luz do aposento.
Janela de apartamento parece estória em quadrinhos.


Ilustração: Óleo de Jean François Millet

Luvas



Não se pode chamar de perversão. Nem chega mesmo a ser um vício. O que André tem pode ser chamado de costume. André tem o costume de usar luvas.
Não é sempre, nem é em todo lugar. Tampouco é sempre a mesma luva. André tem uma luva para cada ocasião.
Quando Ana Beatriz viu André pela primeira vez, ele tomava sorvete de coco com luvas brancas. Ficou fascinada com a maneira elegante e precisa com que ele segurava a taça, manuseava a colher. Mas logo lhe bateu uma espécie de remorso. E se ele tivesse alguma doença de pele, coitado. Afastou-se olhando sorrateira para André e aquelas luvas não saíram de sua cabeça por uma semana.
Uma semana foi o tempo que Ana Beatriz levou para reencontrar André sozinho numa mesa de bar. Dessa vez ele usava luvas amarelas e tomava cerveja. Os olhares dos dois se cruzaram e ela não teve forças para recusar o convite de André para sentar.
Era atração, mas era muito mais curiosidade sobre as luvas que arrastaram Ana Beatriz à mesa. Sentou já com os olhos fixos nas mãos do rapaz. Ele notou e logo cuidou de explicar. Tinha essa mania. Usava luvas da cor mais próxima do que iria comer ou beber. Nada demais. Um amigo psicanalista garantira não ser doença.
A conversa mudou de rumo, pulou de André para a moça, seus gostos, suas manias, sua vida mais íntima, seu estado civil. Viúva. Ana Beatriz era viúva há quase um ano. Desde esse tempo, nenhum homem tocara seu corpo. Mas de um jeito meio confuso, insinuou que já era tempo de aliviar o luto fechado.
Não tinha lugar mais seguro do que o apartamento de André. Prédio pequeno, sem porteiro, vizinhança calma que se recolhe cedo. Ana Beatriz subia as escadas lentamente, a mão esquerda enlaçada com força à luva de André.
Ela esperou um tempo no sofá da sala enquanto ele dava um jeito rápido no quarto. Depois ele veio apanhá-la com as mãos descalças, deslizando com ela pelo corredor. Sentados na beira da cama, hesitantes sobre o que fazer, a moça sussurra meio rouca: vai com calma, André. Lembre-se que sou viúva. O rapaz então se levantou, levou um pouco tempo mexendo na porta do meio do guarda-roupa e virou-se mostrando as mãos. Beatriz saiu correndo do quarto quando viu as mãos de André vestidas com luvas de renda negra, um curto babado à altura dos punhos abotoados com pequenas pérolas.

Clube do Conto da Parahyba

07 junho 2009

O trabalho da alma



A alma mora no fundo do corpo. Neste sentido, ela é muito mais misteriosa do que a alma das religiões ou dos medos noturnos das crianças.
Parte da memória de tudo o que nos entra pelos olhos, pela boca, pele, ventas e ouvidos, permanece num canto obscuro do ser, reduzida a enigmas que se movem desordenadamente, apelando para voltar ao sentido que perderam ao penetrar no nosso corpo.
Situada numa região de fronteira entre o corpo e a linguagem, a alma é a operária que dá sentido aos nossos afetos. É o local onde se dá a superação que nos tira da confusão e nos lança no terreno da solidariedade. Pelo trabalho da alma, tudo o que nos invade pelos sentidos é devolvido ao mundo como linguagem.
Vista assim, a alma é o que nos torna humanos, fabricando a linguagem e nos dando a possibilidade de comunicação. Daí, a sua imortalidade. Pois a linguagem antecede a nossa entrada no mundo. E quando desaparecemos, algo do que transformamos em linguagem irá habitar como enigma o terreno obscuro dos afetos dos nossos descendentes, exigindo de suas almas a continuidade do eterno trabalho de nossa transformação em nós mesmos.

Ilustração: Óleo sobre tela de Carlos Godinho
Obtida em: www.galeriaaberta.com

28 maio 2009

Pesar














Pesamos todos mais 21 gramas.
É o peso da alma do amigo
que arrastamos
toneladamente.

Falta paquidérmica
densa
insustentável.


Ronaldo Monte

Imagem obtida em


25 maio 2009

Delicado

Se me pedissem uma palavra para definir Barreto, responderia sem hesitar: delicadeza. Esta era uma qualidade que vinha antes de todas as outras. Ele podia ser crítico, irônico, até mesmo gozador. Mas tudo isto revestido com a embalagem da delicadeza.
Se o leitor quiser saber exatamente do que estou falando, leia um livro de Barreto. Esses que ele assina como Geraldo Maciel. Pegue um conto, que seja. Logo se dará conta de que aquilo é fruto de um delicado trabalho de ouriversaria, ouro e prata engastados de palavras preciosas, mas tudo muito bem disfarçado em simplicidade e clareza. Tente imitar, como eu tentei, um mínimo parágrafo e saberá como é difícil e exaustivo o resultado.
Até para morrer, Barreto foi delicado. Nada de períodos longos de internamento, promessas ilusórias de melhora. Foi ao encontro do Clube do Conto, no sábado, sem dar a menor bandeira. Acordou no outro dia bem disposto e saiu para cuidar da vida. Foi ali, morreu e pronto. Não obrigou ninguém a cancelar compromissos, adiar ocupações, pois escolheu para partir numa manhã chuvosa de domingo, em que não dava praia. Com isso, não estragou o programa de ninguém.
Foi uma pena Barreto ter faltado ao seu velório. Ia ficar feliz com a turma que se reuniu, incrédula, para ter certeza de que a notícia não era brincadeira de mau gosto. Tinha muita gente boa, gente querida. Mas faltava alguém imprescindível. Aquele que saberia dizer as palavras exatas para a ocasião. Nos falaria de perda, de dor e de ausência. Mas falaria muito delicadamente.







Inveja

Tenho inveja de quem escreve melhor do que eu. Vejam, por exemplo, isto que Geraldo Maciel escreveu: “Uma cova comum tinha seus nove palmos de comprimento, quatro de largura e os sagrados sete palmos de fundura. O que passasse disto, ou seja, sendo o finado muito gordo ou muito alto, requeria uma taxa extra, pois, mesmo sendo a morte uma coisa meio sagrada, cavar covas cansa muito e deixa o corpo tão quebrado quanto trabalhar na agricultura ou carregar fardos às costas”. É um trecho do conto “O coveiro”, que está no seu último livro, O concertista e a concertina. Não é de dar inveja em qualquer um?Para quem não sabe, Geraldo Maciel é o mesmo camarada que muita gente conhece como Barreto. No começo se faz uma certa confusão, mas a gente termina se acostumando. Ele tem outra doença, além de ser contista e ter dois nomes: teima em ser dono de uma editora, a Manufatura, por onde editou o seu livro. Não é de hoje que tenho inveja do texto de Geraldo Maciel. É desde o seu primeiro livro de contos, Aquelas criaturas tão estranhas, em que ele gasta quase uma página com um tiro de clavinote, descrevendo o trajeto do material expelido desde a boca da arma até se alojar nas vísceras da vítima. Fui tentar imitar a técnica descrevendo um soco se aproximando em câmara lenta da cara de um sujeito. Não consegui passar das cinco linhas. Quem quiser roer de inveja como eu, leia qualquer coisa de Geraldo Maciel. Mas leia de preferência este novo livro. São textos maduros, de boa carpintaria. A história que dá título ao livro dá vontade de chorar. Mas emoção mesmo eu senti com a sina do Boca, cantor de corpo disforme mas com uma voz capaz de criar amores e reacender velhas paixões. É livro de se ler de um fôlego só e ficar com gosto de quero mais. Tenho muita inveja de quem escreve melhor do que eu. De Geraldo Maciel, ou de Barreto, não importa, eu tenho é raiva.



16 maio 2009

Brisa e rajada




Ninguém nota que falta luz quando se está enroscado no corpo do outro, mãos e bocas atarefadas em prender, sugar e morder a maior superfície disponível no menor tempo possível. Faltou luz, sim. O ventilador parou, mas sua brisa, ali, seria inútil.

Daí que eles permaneceram grudados um no outro enquanto o calor arrefecia. Literalmente grudados, pois o suor colava a pele dos ventres, amantes siameses ofegando a um só ritmo.

A luz voltou, mas os olhos não se deram conta, pois a lâmpada ficou apagada desde antes. Mas o resto dos corpos acusou um calafrio quando uma brisa tênue varreu a cama.

Um bisturi invisível descolou as peles dos ventres. Cada corpo entregue a seu frio respirava agora lentamente. O que foi brisa, agora é rajada. Os corpos enroscam-se novamente em busca de calor.

Ronaldo Monte
Clube do Conto, 16.05.2009

Imagem obtida em theurbanearth.wordpress.com

09 maio 2009

Para minhas mães

Para sempre

Carlos Drummond de Andrade

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.


Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

07 maio 2009

O fim da noite - versão em inglês de Elaine Erig





The End of the Night

by Ronaldo Monte


Failed to light yesterday evening. For absolute lack of what to do, I expect to sleep in bed. With the delay of sleep and the absence of internal images, focused my attention on the total darkness that was immersed. I spent the hand in front of the eyes and did not notice any movement.
I thought I was close to having an experience of blindness and one end of trouble appeared. But then I remembered what I told me my friend Jane Belarmino, blind and visionary: the fear of the dark is a problem for you.
I do not know the darkness. In fact, taking isolated experiences as last night, I do not know the darkness.And very few people living in cities can be said of the intimate dark. The night, as a synonym of darkness, is an increasingly rare phenomenon. The concern for security and control of people did with the darkness that was banned from the streets and buildings of cities. The evening today is only a period of time very different from the day. When you enter a supermarket or a mall, jumping in a time continuum, where the artificial light eliminates any difference between day and night. The - small dark of the film -is more an expression of caring that real. Besides not being an absolute darkness, the clear light projected on the screen, it can be enjoyed by day or night.
For lack of a clear distinction (or dark) in the day, the night lost its purpose for the period to rest and sleep. Pushed increasingly into the night did the things of day. Pharmacies, supermarkets, gas stations and many other services are open continuously. We crossing the night studying or working. Just going to bed when the exhaust no longer allows us to any activity. Here, then, is the insomnia. And then we realize that we lost contact with our first night. The side that leads us to dream and the pastures repairers that reveals the other side of sleep. The dry eyes, the soul dry, the dryness of the imagination. This is the price we pay at the end of the night. Besides the bad mood the other day.



30 abril 2009

O fim da noite



Ontem faltou luz de noite. Por falta absoluta do que fazer, fui esperar o sono na cama. Com a demora do sono e pela ausência de imagens internas, concentrei minha atenção na escuridão total em que estava imerso. Passei a mão na frente dos olhos e não percebi nenhum movimento. Pensei que estava tendo uma experiência próxima à da cegueira e surgiu uma ponta de angústia. Mas logo me lembrei do que me disse minha amiga Joana Belarmino, cega e vidente: o medo do escuro é um problema de vocês. Eu não conheço a escuridão.

Para dizer a verdade, tirando experiências isoladas como a da noite passada, eu também não conheço a escuridão. E muito pouca gente que mora nas cidades pode dizer-se íntima do escuro. A noite, como sinônimo da treva, é um fenômeno cada vez mais raro. A preocupação com a segurança e o controle das pessoas fez com que a escuridão fosse banida das ruas e dos edifícios das cidades.

A noite, hoje, é apenas um período de tempo muito pouco diferente do dia. Quando entramos num supermercado ou num shopping, mergulhamos num tempo contínuo, onde a iluminação artificial elimina toda diferença entre o dia e a noite. O próprio escurinho do cinema é mais uma expressão carinhosa do que real. Além de não ser um escuro absoluto, pela óbvia luz projetada na tela, ele pode ser usufruído de dia ou de noite.

Por falta de uma diferenciação clara (ou escura) com o dia, a noite perdeu sua finalidade de período próprio ao descanso e ao sono. Empurramos cada vez mais para dentro da noite as coisas que fazíamos de dia. Farmácias, supermercados, postos de gasolina e tantos outros serviços permanecem abertos ininterruptamente. Varamos a noite estudando ou trabalhando. Só vamos para a cama quando a exaustão não mais nos permite qualquer atividade. Aí, então, vem a insônia. E só então nos damos conta de que perdemos o contato com o nosso lado noturno. O lado que sonha e nos leva para os pastos reparadores que se descortinam do outro lado do sono. Os olhos secos, a alma seca, a secura da imaginação. Este é o preço que pagamos pelo fim da noite. Além do mau humor do outro dia.


Imagem obtia em: viajeaqui.abril.com

26 abril 2009

Luto



Tenho uma foto antiga de meu pai cercado com seus colegas de trabalho, todos com seus indefectíveis ternos de linho branco. O que chama a atenção é que um deles está de gravata preta e tem um pedaço de tecido preto na lapela do paletó. O pessoal mais velho sabe que o tecido preto se chama fumo e quer dizer que aquela pessoa perdeu alguém muito próximo recentemente. É uma demonstração externa de sofrimento e nos lembra que devemos ser tolerantes com aquela pessoa, respeitando o seu recolhimento, permitindo que viva até a exaustão o seu luto.
Das viúvas de antigamente, esperava-se que usassem luto fechado por um ano, o que exigia que todos os seus vestidos fossem tingidos de preto e mantivessem um comportamento sóbrio, sem nenhuma manifestação exacerbada de alegria durante doze meses. Só depois da missa de um ano é que lhes era permitido usar o luto aliviado, o que queria dizer que suas roupas podiam agora ser mescladas de preto e branco ou feitas com tecidos de cores sóbrias, como o azul marinho ou o marrom.
Era triste, sim. Mas era justamente de tristeza que se tratava. A tristeza aceita como um sentimento digno de ser exteriorizado, com regras e normas aceitas pela comunidade que partilhava e respeitava os enlutados.
Hoje, sua tristeza não interessa a ninguém. Se estiver triste, esconda-se. Você não será bem aceito nos templos maníacos da sociedade sem dor e sem memória. Sua tristeza não cabe nem mais nas igrejas ou nos cemitérios. Tudo virou festa. Aos que insistem com suas melancolias e estados depressivos, restam os livros de auto-ajuda ou os comprimidos de tarja preta. A mesma tarja que antes se via na lapela dos paletós dos viúvos.


Imagem obtida em: www.flickr.com

24 abril 2009

Bispo do Paraguai



Mais uma vez a igreja católica exibe sua potência ao mundo. Desta vez, sua potência sexual. No último dia 14, o presidente do Uruguai, Fernando Lugo, assumiu publicamente a paternidade de um menino de dois anos, fruto de uma relação mantida enquanto era bispo do Departamento de San Pedro. Menos de uma semana depois, outra paraguaia pede que o presidente assuma um filho de seis anos, também concebido enquanto era bispo e a moça tinha 16 anos. Mais recentemente, uma terceira mulher diz que também tem um filho do presidente, concebido depois da renúncia deste ao posto religioso para se candidatar à presidência do Paraguai. A relação dos dois, entretanto, vinha de antes da renúncia.
Sou incondicionalmente a favor do amor entre as pessoas, independente de qualquer circunstância. Mas não é de amor que estamos tratando. Estamos diante de um homem sem escrúpulos que escondeu do povo sua condição de pai irresponsável, posando de paladino da moralidade e dos princípios democráticos para os eleitores do seu País. E foi com esta falta de escrúpulos que ele se elegeu presidente. Pois a sua renúncia ao cargo eclesiástico não se deveu ao compromisso com nenhuma dessas mulheres ou com seus filhos. Renunciou apenas porque a constituição do Paraguai proíbe que ministros religiosos exerçam cargos púbicos.
Até que já estava caindo de moda dizer que era “do Paraguai” qualquer coisa ou pessoa falsa que tentassem nos passar como verdadeiras. Infelizmente, mais uma vez a falsidade vem se associar a esse País tão maltratado pela história, desta vez disfarçada sob os rótulos da religião e da política. O povo paraguaio merecia coisa melhor.
Todos nós, da América Latina, merecemos coisa melhor.



Imagem obtida em ocastendo.blogs.sapo.pt