Se o leitor soubesse como são feitas as leis, as lingüiças e as orelhas dos livros, não confiaria em nenhuma delas. Das últimas, pelo menos, tenho um bom exemplo de inconfiabilidade. Trata-se da orelha do livro “Relato de Prócula”, de W. J. Solha. Vou citar para poder ilustrar meus argumentos:
“Sempre houve um mistério na razão da defesa de Jesus feita por Pilatos ante o Sinédrio. E aí, o Padre Martinho Lutero Libório – vigário da paróquia de Pombal, na caatinga paraibana – pergunta-se, depois de fazer o papel do romano na Semana Santa, na capital da Paraíba, se o motivo teria sido, mesmo, um sonho de Cláudia Prócula – mulher do praefectus de Jerusalém – ou algo bem mais poderoso, como o vínculo dele com o Nazareno, agente infiltrado, judeu, mas cidadão de Roma, tal como eram Paulo de Tarso, Flávio Josefo e Filon de Alexandria.
“Este romance inova com essa sua teoria – tão polêmica quanto a do Código da Vinci” – e com a reprodução vívida da até então ignorada vida cultural do interior nordestino, realidade muito distante do universo retratado por obras como Vidas Secas, Fogo Morto ou Grande Sertão:Veredas.”
Saiba o leitor que, depois de ler duas vezes o “Relato de Prócula”, não liguei minimanente para as querelas do autor com as supostas verdades acerca do Cristo histórico. Muito menos considero a teoria do padre Martinho tão polêmica quanto a do best seller davinciano. Para mim, nada disso tem importância e cai para segundo plano quando nos deparamos com a força do personagem principal do romance. Os verdadeiros conflitos do padre Martinho não dizem respeito a questões da história das religiões. O que o padre não consegue superar é o conflito entre sua enorme virilidade sexual e intelectual e os arcaísmos dos dogmas católicos.
O bom mesmo do livro é a viva reconstrução das relações afetivas dos viventes da cidade de Pombal e da fazenda Mundo Novo. Dispensam-se as citações eruditas de livros e filmes, as pretensões filosóficas dos intelectuais do interior. O que nos prende são as paixões represadas, os desejos não ditos, a fome de amor do padre e suas meninas.
Angustiado e culpabilizado por conta da força de seu desejo, o pobre Martinho cai na tentação do suicídio. Mas a poderosa corrente dos amigos, principalmente das grandes mulheres que o cercam, faz com que sua inteligência vença de vez sua culpa e decida viver a plenitude de suas paixões.
Rubens Bentancur, o narrador do romance é, sem nenhum disfarce, o próprio Solha nos prestando contas da refundação de suas raízes na Paraíba. O padre Martinho é o seu alter-ego, aquele que sofre as dores do embate entre o desejo e os dogmas religiosos.
Que o leitor mergulhe sem medo nas páginas caudalosas do “Relato de Prócula”. Se souber navegar com cuidado, vai poder fruir um texto maduro, conduzido com mão segura, produzindo sonoridades que a orelha do livro não ouviu. Como nesta passagem em que o padre Martinho, depois de passar a noite no terraço da casa-sede de sua fazenda agarrado a um livro de memórias de Pôncio Pilatos, levanta-se “ao ouvir os primeiros cocoricós, balidos e mugidos em lugar dos cricrilos, coaxares, além de voos de corujas, morcegos e tetéus...” Isto é pura sonoplastia, esperando o momento em que o livro vire filme. Coisa fácil de fazer pelas mãos plurais do artista W. J Solha.
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