25 abril 2012

Lições da tarde


Tenho pena dos homens que perderam suas tardes. Tenho pena de mim, que sou pobre de tardes, tentando salvar algumas delas das salas fechadas em que trabalho. Quero-as de volta, uma a uma, para com elas aprender as eternas lições do tempo.

Aprendo com a tarde que o mais longo dos dias entregará sua luz à penumbra. Não adianta, nem vale a pena, querer retardar o passar do tempo. Inútil negar a lenta invasão das sombras com as luzes atemporais dos shoppings e escritórios. A tarde sempre cairá.

Por mais árduo que seja o dia, a tarde sempre nos espera com uma promessa de descanso. Pagamos um preço alto por não atender a este chamado. Nos lugares em que ainda existem árvores, vemos o recolher das aves assim que o sol começa o seu declínio. Os únicos bichos que não voltam de tarde para casa somos nós, que trocamos o tempo por dinheiro. E vendemos a tarde por tão pouco.

Ainda existem lugares em que as pessoas levam suas cadeiras para a calçada e ficam esperando a tarde findar. Ficam ali, incrustadas no tempo, passando com o tempo, sem resistir a ele. Sabem que dali a pouco será noite e a noite será bem-vinda, pois marcará o fim de mais um ciclo de luz e sombra. O fim é sombra.

Talvez seja o medo do escuro que nos faça melancólicos ao fim da tarde. Talvez seja o medo da morte que nos faz sentir medo da noite. Talvez seja a incerteza de que depois da noite volte a amanhecer. Temos medo de ser despejados do ciclo das noites e dos dias.

A tarde existe para nos ensinar a deslizar entre o claro e o escuro. É a mestra que nos prepara pacientemente para pisar o terreno estrangeiro do sono e por lá encontrar o que temos de mais íntimo e estranho.

A tarde me ensina a arte do silêncio e da espera. E, mais que isto, me ensina a lição da entrega ao escuro que carrego dentro de mim.

Foto: Ana Patrícia

17 abril 2012

Voltando à vida



Os cegos nos causam compaixão pelo tanto de beleza que supomos que lhes escapa. Os surdos mudos nos põem nos limites da nossa própria incomunicabilidade. Nada sabemos das pessoas que despossuem o tato. Mas existem dois sentidos que vez por outra nos privamos deles, o que nos faz perder, por um tempo, a graça de viver. Estou falando do olfato e do paladar, dois bens que nos fogem tão logo nos assola uma gripe bem fornida.

Já tive em casa uma cozinheira que não tinha olfato. Não sei se ela também não tinha paladar. Mas ficava muito intrigado em saber como ela acertava nos temperos. Ninguém até hoje conseguiu fazer uma fritura como ela.

Não sei nada a respeito das pessoas que não têm olfato ou paladar. Não sei nem se existe uma nomenclatura específica para estas patologias e estou com preguiça de consultar a wikipedia. Mas sei muito bem a falta que fazem estes sentidos. Estou gripado há mais de uma semana.

Não existe nada mais irritante do que você por uma fruta na boca e não sentir o seu sabor. Comer uma pizza tem a mesma graça que mastigar um papelão. Um gole de vinho equivale a um copo de água morna.

Quanto aos cheiros, parece que o mundo perdeu o viço, a natureza abandonou o cio. O caldeirão, que antes anunciava o feijão gordo dos sábados, fumega sem que a boca nos afogue de saliva. Perdem-se os cheiros doces da noite, inúteis os jasmins e as roseiras.

Mas, como já disse, minha gripe já passa de uma semana. Agora mesmo estou tomando um vinho e já descubro o grau do seu tanino. Pude sentir uma pequena diferença entre os sabores das frutas do café da manhã. Aos poucos, a vida vai voltando ao paladar e ao olfato. E mesmo que a idade já me leve um pouco da audição e um muito da visão, sou grato à vida por voltar pra mim com seus cheiros e suas catingas, com seus doces e seus amargos.

10 abril 2012

Quero Bromil



É o xarope dos poetas. Foi Olavo Bilac quem o chamou de “amigo do peito”. Depois, Bastos Tigre escreveu As Bromilíadas, uma paródia de “Os Lusíadas”, em métrica e sistema de rimas semelhantes aos de Camões. O próprio dono do laboratório era poeta. Como poeta, mesmo dos menores, tenho o direito de tomar Bromil.

Mas não é ao Bromil de rótulo desvirtuado que encontro hoje nas farmácias que estou me referindo. O que eu quero mesmo é o Bromil de antigamente, aquele que vinha numa garrafinha fina, sextavada, embrulhada em papel de seda, que depois se usava para botar molho de pimenta. Quero o Bromil que minha mãe trazia nas longas noites de tosse e acessos de asma. Quero o gosto mentolado do Bromil na minha boca e a sensação do peito livre da angústia e do chiado. Quero a reconquista do sono depois do beijo tardio de boa noite. Quero o peso nos olhos e o quarto se desmanchando em sonhos.

Quero as velhas gripes e os antigos resfriados que todo mundo sabia diagnosticar. Um resfriado era um certo mal estar que lhe deixava o nariz escorrendo e com um pouco de tosse. Uma gripe era coisa mais séria. O corpo doía e você passava o dia de meias. Era ridículo, mas tinha o privilégio de não ir à escola. Em ambos os casos, era proibido beber gelado ou tomar picolé. Hoje em dia só existe essa hipotética virose que passou a nomear qualquer coisa que os médicos não sabem o que é.

Tenho uma mulher cuidadosa que me dá remédios, tenho uma amiga médica que me cura as mazelas, tenho duas filhas e um filho que se preocupam com a minha saúde, mas nada disso é capaz de me confortar no estado de desamparo a que uma gripe me condena. O menino velho que tosse e geme espera o único e impossível gesto que o salvará: uma colher do antigo xarope levado à boca pela mão antiga que depois afagará sua cabeça e o fará dormir.

02 abril 2012

Derivas


Os judeus celebram a Páscoa em memória da libertação da escravidão no Egito. Os cristãos comemoram a passagem para o novo tempo que a ressurreição do cristo anuncia. Liberdade, renovação. Que sentido fazem estas palavras fora do seu contexto estritamente religioso e litúrgico?
Um olhar mais atento sobre o mundo nos mostrará que a única liberdade visível é a que se anuncia como liberalidade do mercado. E todos sabemos o quanto isto tem acentuado a desigualdade entre os países e aprofundado a distância entre as classes. Quanto à renovação, ela se dá do ponto de vista estrito das mercadorias, o que nos empurra para um processo alucinado de consumo.
A humanidade ainda não conheceu a Páscoa. Somos todos errantes. Vivemos à deriva num deserto ético em que só os sistemas religiosos parecem apontar alguma salvação. E nisto reside a nossa miséria e nossa esperança. Miséria, porque todo o nosso percurso histórico ainda não conseguiu prover a humanidade dos instrumentos tecnológicos e ideológicos necessários a uma convivência de bonança e harmonia. Esperança, porque alguns desses sistemas religiosos apontam para certas saídas éticas que contemplam uma convivência na diversidade.
Judeus ou cristãos, muçulmanos ou budistas, pagãos ou ateus, nenhum de nós conheceu ainda a liberdade ou a renovação. Vivemos todos ainda à espera de uma Páscoa que nos resgate a todos deste êxodo em que ainda não vislumbramos nenhuma terra prometida. E enquanto esperamos a Páscoa, reconheçamo-nos humildemente como seres de incertezas e derivas. Que a humildade seja o nosso único ponto em comum. No mais, cada um que derive a seu modo.
O cuidado maior, enquanto derivamos, é não dar ouvidos aos que apregoam suas crenças como caminhos exclusivos para a salvação. Todos temos o direito de escolher se e como queremos ser salvos.

Ilustração :"Le Radeau de la Méduse", de Théodore Géricault (1791-1824).