23 fevereiro 2011

Poder



O mundo assiste, perplexo, os levantes populares contra os velhos ditadores de países do Oriente Médio e norte da África. Líbia, Egito, Bahrein, Marrocos, Argélia, Tunísia, Jordânia, Síria, Irã, Arábia Saudita, Iêmen, países que sofrem há décadas o peso da ditaduras ou do autoritarismo monárquico, vêem abaladas suas caducas estruturas de poder pelo povo nas praças. E o resto do mundo, espantado e solidário, acompanha em tempo real o que nos vem através das redes sociais. E foram estas mesmas redes que permitiram a veiculação das informações e das palavras de ordem que levaram as pessoas às ruas.
Agora, vem a parte que nos cabe. Como e quando iremos usar estes instrumentos de comunicação instantânea para denunciar e derrubar os milhares de ditadores que se perpetuam em todas as instâncias do poder neste País? Quando as pracinhas de nossas cidades do interior serão tomadas pelos famintos espoliados há séculos pelas oligarquias rurais? Quando o povo tomará as praças em frente aos palácios das capitais para exigir respeito e dignidade aos grupos de poderosos que se revezam no poder?
Nada contra o espanto e a solidariedade aos manifestantes das praças do mundo contra a ditadura e a corrupção. Apenas gostaria que esta onda de esperança que lava as praças do Oriente Médio e do norte da África lambesse também as portas dos nossos velhos ditadores.
Sabemos muito bem quem são os nossos khadafis, mubaraks e abdullahs. São os eternos donos das terras e das gentes acostumados ao mando e ao desmando sem nenhum pudor ou temor da justiça. São os mesmos que agora, fantasiados de democratas, se perpetuam no poder pelo voto comprado àqueles que temem que lhes invadam as praças. Por isso os mantém famintos, ignorantes e distantes das redes de comunicação social.

16 fevereiro 2011

Retábulo




Determinados eventos têm o poder de nos transformar de uma maneira irreversível. Não estou falando dos escândalos da paixão nem das agonias da morte, casos extremos e inevitáveis em nossa condição de viventes. Não me refiro tampouco aos fenômenos naturais, enchentes, furacões, tsunamis, nem aos desastres ambientais. Falo de acontecimentos mais sutis, que nos pegam de surpresa em certos momentos da vida. Pode ser um encontro com algum desconhecido, ou a revelação de uma qualidade nova em algum velho amigo. Você tem um colega de trabalho que vive uma vidinha de nada. De repente, ele senta num piano e toca uma sonata de Chopin. Eis um pequeno exemplo de espanto.
Existe outro tipo de acontecimento menos gratuito. É aquele que você vai procurar sem saber muito bem o que irá encontrar. Pode ser a releitura de um parágrafo de um livro que você já leu muitas vezes. Naquele exato momento, duas ou três linhas ganham um significado novo que você nunca imaginou que estivesse ali. Outras vezes é o impacto de uma música que ouvimos pela primeira vez. Pode ser também o detalhe de um quadro conhecido, mas que se mostra totalmente outro quando o vemos diretamente na parede de um museu.
Estou falando disso tudo, para chegar a uma experiência perturbadora a que me submeti no último domingo: Retábulo. O mais novo experimento cênico do Grupo de Teatro Piollin. O trabalho é uma tentativa de responder a um desafio fundamental para o teatro contemporâneo: construir, para o público de hoje, narrativas cênicas que possam, realmente, ultrapassar os limites do convencional. A resposta do Piollin foi dada a partir do texto rigoroso de Osman Lins para instaurar, nas palavras do diretor Luiz Carlos Vasconcelos, “uma cena também rigorosa, apoiada simultaneamente na poesia da palavra e do corpo em ação”.
Retábulo não é uma peça para se assistir. É uma experiência para se viver. Mergulhar com todos os sentidos e sair dela com todos os sentidos afetados pela novidade do acontecimento. E a partir daí, encontrar novos sentidos nas pequenas coisas do cotidiano.

10 fevereiro 2011

Desvio de função



A partir de certa idade, o que mais nos faz perder tempo é o que chamo de desvio de função. Esclareço. Se eu estiver indo em direção à cozinha pegar um copo d’água, não me peçam para apagar ou acender uma luz. Daí eu posso ver se o portão lateral está fechado, depois vou aguar as plantas e depois me sentar no terraço para terminar de ler o jornal. Somente aí é que vou me lembrar que estou com sede. E saio de novo em direção à cozinha na esperança de que não me peçam para apagar ou acender nenhuma luz.
Quando ainda não existia internet, um dos meus passatempos preferidos era varar as noites pulando de livro em livro das minhas estantes, assunto puxando assunto, num exercício de livre associação que sempre acabava num texto que me espantava e às vezes servia de inspiração para um poema ou um conto. Mesmo que andasse à deriva pelas prateleiras, nenhum contratempo me desviava do meu intento. Estava ali para flanar. E flanava.
Hoje, a própria internet me bota em desvio de função. Quando me sento na frente do computador para escrever um texto, não me furto à tentação de dar uma olhada no e-mail. Daí vou ler as páginas dos jornais, depois, às vezes, vou ver como está o rombo na conta bancária. Quando me lembro do motivo pelo qual abri o computador, já perdi no mínimo uma hora em desvio de função.
Agora, se juntar os labirintos virtuais em que me perco, com os desvios de rota pelos cômodos da casa, sobra-me muito pouco tempo para as coisas objetivas. Vocês não imaginam quanta coisa aconteceu ao meu redor enquanto me preparava para escrever esta crônica. Comecei em casa, ontem de noite, e estou terminando ao meio-dia, na redação do jornal. Juro que não aconteceu nada de extraordinário de lá pra cá. Apenas me pediram para apagar a luz do corredor, quando eu ia pegar um copo d’água na cozinha.

03 fevereiro 2011

Ferida oriental



Eu avisei que não valia a pena. Mas Robinson e Patrícia insistiram e lá fomos nós visitar o ponto mais oriental das américas. Eles tinham ido lá há mais de dez anos e ainda nutriam a esperança de rever as maravilhas que feriram suas jovens retinas: a imponência da falésia, a praia ensombrada de coqueiros. Eram essas imagens que meus amigos queriam deixar nos olhos de suas filhas Marina e Cacau, como marca indelével de sua estada entre nós.
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Mas a incúria dos homens é inexorável. E as maravilhas da Ponta do Seixas não escaparam à incúria dos homens. A fúria natural das águas solapa a falésia e avança indiferente sobre coqueiros e barracos favelizados que fazem as vezes de bares. Homens e mulheres de olhares perdidos procuram alguma coisa que já não está mais ali. Bebem cerveja barata e mal gelada, ouvem um arremedo de música e fazem de conta que se divertem. Como agravante, soma-se a rapina das terras da União pelos vastos muros eletrificados que privatizam o pouco de praia que resta do avanço do mar.
As marcas dolorosas deixadas nas retinas dos amigos foram mitigadas pela visita à imponência arquitetônica da Estação Ciência e pelo deslumbre dos arrecifes de Picãozinho. Mas onde quer que estivessem, a imagem feia insistia na memória, estragando o passeio.

Fazia muito tempo que não andava por aquelas bandas. Não me dá prazer nenhum ver ou mostrar às minhas visitas o resultado de décadas de descaso com o bem público. E se lá de cima, no mirante do farol, com a vista perdida no mar grande, ocorre sempre a idéia da proximidade com a África, é impossível evitar a comparação com os séculos de maus-tratos infligidos ao povo e ao chão do continente do qual nos separamos.

É muito ruim, chega a ser doloroso, em meio a tanta coisa bonita pra mostrar, ter que expor aos olhos ávidos de beleza de Marina e Cacau, essa ferida que nos enfeia as costas.