30 dezembro 2013

Brincar de eternidade


 

Conheço um homem que se angustia com os relógios em que o ponteiro dos segundos desliza sem marcar os intervalos. Um comichão interpretativo me leva a supor que essa angústia decorre do nosso desamparo frente à transformação contínua do presente em passado, sem nos deixar a ilusão de que, por um breve momento, o tempo repousa nos traços dos segundos.
É para fugir da agonia frente a este fluxo constante que dividimos o tempo em fatias e vamos fingindo que o devoramos, enquanto, na realidade, é ele que nos consome goela abaixo.
E assim inventamos as horas, os dias, anos, séculos e milênios na tentativa de nos defendermos da pequenez da nossa existência. Com isto podemos nos enfronhar no passado e projetar no futuro, fugindo dos limites da mediocridade do presente. É isto que nos leva a procurar ancestrais ilustres em nossas árvores genealógicas e imaginar uma vida gloriosa para nossos descendentes. É uma forma plausível de nos tornarmos eternos.

Aqui estamos, de novo, brincando de eternidade. Diz o calendário que mais uma vez iniciamos um ano novo. Mesmo sabendo que isto é apenas uma convenção, necessitamos deste repouso do tempo em que algo passa definitivamente e algo desconhecido avança ao nosso encontro. É neste intervalo que nos juntamos aos nossos antepassados e caminhamos rumo às gerações descendentes. Como o homem que se angustia com o correr contínuo do ponteiro dos segundos, precisamos fatiar o tempo para criar a ilusão da eternidade. E com isso inventar alguns momentos de felicidade.

16 dezembro 2013

Um pouco mais de Dôra


Ela guarda a dor em seu nome, mas a dor não demora em sua alma. Ela reparte suas dores com quem as merece: todos nós que sofremos e fazemos sofrer. Ela é Dôra Limeira, a que dói e dá frutos. “Cancioneiro dos loucos” é o seu mais novo fruto.  E dói.
O que dói em Dôra são as dores das putas, das bichas, das mal-amadas, das desamadas. As dores das velhas, das loucas, das aleijadas. As dores dos homens que perdem, que batem, que cheiram mal.
“Cancioneiro dos loucos” foi publicado pela Idéia, de João Pessoa, com recursos do FIC da Secretaria de Cultura do Governo da Paraíba. Divide-se em duas partes. “Cantigas lacrimosas” concentra contos inspirados em velhas canções de amor e desespero. “Lamentos de porta em porta” é o que o nome diz: cada porta de casa guarda um lamento por um filho morto, um sonho desfeito, uma mutilação...
Quem conhece os livros anteriores de Dôra já sabe o que esperar deste “Cancioneiro”. Contos curtos, quase sem enredo, instantâneos das vidas comuns que precisam de pouco para viver suas tragédias. O mundo em que vivem tudo provê para que sofram pelo simples motivo de estarem vivos.
Os leitores de Dôra também não se espantarão com o seu estoque de escatologias. Seus personagens sangram, vomitam, se mijam, se cagam e fedem todos os fedores que o muito sol e a pouca água podem fazer feder.
O leitor atravessa o livro com um embrulho no estômago e respira aliviado quando vira a última página. Então, pergunta-se ao leitor: porque não largou o livro no meio? Porque suportou até o fim esta ânsia de vômito?  A resposta é simples: é impossível deixar de lado aquilo que nos pertence. O leitor se deixa seduzir pelo texto de Dôra porque ele lembra que somos feitos dessa matéria. Se somos diferentes em nossa aparência externa, ninguém conseguiria identificar as nossas tripas se as vissem expostas no açougueiro. Somos também iguais nas sombras que engendram nossas almas. Um pouco mais, um pouco menos, todos cheiramos mal. São testemunhas disto nossos sonhos, que nunca acabam bem e sempre nos geram angústias.
Foi para nos lembrar disto mais uma vez que Dôra escreveu seu “Cancioneiro dos loucos”. Nas mãos dos leitores, portanto, um pouco mais de Dôra, um pouco mais de dor.       

                                                        Ronaldo Monte.

                                                              04.12.2013

06 dezembro 2013

Menos um


Acordei com um presságio de que alguma coisa má me aguardava no lado da vigília. À medida em que tomava posse dos sentidos, o presságio deu lugar à certeza: uma coisa má havia acontecido. Meu dia começaria com menos um.
Tem sido assim, de uns tempos pra cá. O tecido antes íntegro dos afetos vai a cada dia se esgarçando, criando furos. Menos um, menos um, menos um. “O homem é a soma dos seus mortos”, eu mesmo disse em um poema antigo. Mas, acrescento agora, esta soma se alimenta da diminuição dos nossos vivos.
Esse um de menos de hoje é Jader Nunes dde Oliveira, amigo de muito tempo, desde meus primeiros anos como professor da UFPB. Nas nossas greves no tempo da ditadura, era sua voz segura que nos apontava os caminhos da luta. Corrigia meus textos para os editoriais do boletim de greve e se deleitava com alguns achados que tornavam menos áspera a leitura nas assembleias.
Mais tarde, nos encontramos na tarefa árdua de reconstruir a Universidade a partir dos escombros deixados pela rapina e incúria dos nossos antecessores. Primeiro, como Pró-reitor de administração, depois, em dois mandatos como Reitor, sua obstinação pelo trabalho bem feito, sua intransigência contra a dilapidação do bem público deixaram seu nome na história da Instituição e na mira dos seus inimigos.
Jader morreu sem avisar. No seu gabinete de trabalho. Como qualquer um de nós, cuidava de suas coisas de aposentado com o sentimento justificado do dever cumprido. Amava sua família, cuidava de longe dos amigos. De vez em quando me mandava um e-mail comentando um texto meu.

Vou ficar sem saber o que fazia no momento em que foi fulminado pelo enfarto. Tenho apenas a certeza de que, de hoje em diante, sua falta será acrescida a esta sensação dolorosa de menos um. Até que um dia eu mesmo seja um de menos.

26 novembro 2013

Olho roxo


 

         Estou com um problema sério. Minha mulher está com um olho roxo, fruto de uma queda no banheiro da casa de uma de nossas filhas. E este é justamente o meu problema. Quem não me conhece direito vai pensar que fui eu que tingi o olho dela de roxo. E a coisa pode piorar quando ela explicar que caiu no banheiro. Toda mulher que aparece de olho roxo por conta do marido, diz que levou uma queda no banheiro. Já sugeri que ela usasse uma camiseta com a frase: “não foi meu marido”. Mas aí, podem pensar que fui eu que a obriguei a usar a camisa.
         Nunca convivi tão de perto com um olho roxo. E confesso que é uma experiência incômoda. Além do mal-estar estético que causa, o olho roxo é o símbolo universal da violência. Nos filmes, nas histórias em quadrinhos, quando se quer mostrar que um personagem levou uma surra, ele aparece com uma mancha roxa ao redor de um olho.
         De uns tempos pra cá, o olho roxo tem servido para denunciar a violência contra a mulher. As marcas da brutalidade podem se espalhar por todo o corpo, mas é o hematoma no rosto que demonstra, na forma mais dramática, a covardia do agressor.
         Nas ruas de junho, a repórter Giuliana Vallone foi atingida no rosto por uma bala de borracha. O seu olho roxo virou símbolo da campanha “Muda Brasil”, o que inspirou o fotógrafo Yuri Sardenberg a fotografar uma galeria de famosos maquilados com um olho roxo como parte de um protesto contra a violência policial.
         A quem interessar, comunico que o olho de minha mulher já começa a voltar ao normal. É um olho roxo prosaico que causou alguma dor e um pouco de preocupação. Mas serviu para lembrar dos muitos outros olhos roxos que ficarão marcados para sempre na memória das vítimas da violência, que ainda protegem seus algozes com a mentira da queda no banheiro.  


Imagem da cantora Alinne Rosa, participante da campanha “Dói em todos nós”, obtida em WWW.bahianamidia.com.br 

24 novembro 2013

A bruxa aprendiz



         Uma aprendiz de bruxa passou o último sábado com a gente. Logo de manhã, meu irmão telefona, aos prantos, comunicando que um dos seus filhotes de cachorro morreu por conta de uma virose. O filhote que sobrou também estava ameaçado.
         Logo depois, telefona minha nora informando que o marido, logo, meu filho, tinha sido picado por um escorpião e estava sendo cuidado no setor de vítimas de animais peçonhentos do Hospital Universitário.
         Minha filha mais nova decidiu dar uma trégua ao vegetarianismo e nos convidou para jantar um peixe que ela mesma tinha comprado e iria preparar. No caminho da casa dela, fomos ameaçados duas vezes de sofrer um acidente por imprudência alheia.
         Tudo estava pronto para o jantar no terraço ao ar livre, com duas pequenas lanternas para abrigar velas que tínhamos levado de presente. Ficamos bebericando, acompanhados de queijo e presunto de Parma, sem desconfiar que a pequena bruxa estava por perto. Quando o prato principal chegou na mesa, cumpri o doloroso dever de comunicar que o peixe estava estragado.
         Não satisfeita, a bruxinha providenciou uma nuvem escura e mandou que chovesse sobre nossas cabeças. Arrastamos a mesa para o terraço coberto e continuamos a tomar vinho com o que restou do queijo e do presunto.
         A feiticeira aprendiz deve ter ficado furiosa com a sua incompetência em estragar a nossa noite.  Deu uma carga extra na varinha mágica e radicalizou: levou minha mulher para o banheiro e fez com que levasse uma bruta queda, batendo com o lado esquerdo da testa no mármore da pia.

         A pobre bruxa deve ter ficado assustada com o enorme galo que brotou no supercílio da sua vítima. Mais assustada deve ter ficado hoje de manhã, quando viu a mancha roxa em volta do olho de Glória. Tenho certeza de que ela fugiu apavorada, pois a manhã do domingo transcorreu em paz. E se não fosse o olho roxo de minha mulher, ninguém ia mais se lembrar de sua visita inoportuna.

06 novembro 2013

Cila



Caminhava na praia entre o mar e a falésia quando avistei sobre as pedras um vulto que me pareceu de uma mulher. Enquanto andava em sua direção, configurava-se o corpo acinzentado de uma morta, fendido pelo sal e pelo sol. A boca meio aberta calava angústias. A cabeça pendida denunciava um longo tempo de agonia. Cheguei mais perto e mostrou-se a cauda ressequida de sereia. O ventre alto tinha marcas de coisas que antes pendiam dali. 

Próximo daquela criatura que o tempo me trouxera, pude entender o que queria de mim: que contasse a sua história. Que a salvasse do esquecimento e da tortura a que estava condenada. A cada vez que o mar subia, à medida em que as águas molhavam suas carnes, sua memória despertava aos poucos, revelando traços, formando quadros, ligando tempos, mostrando cenas. Mas quando alguma história parecia se formar, já era tempo de baixar as águas. E com o líquido se esvaía também a possibilidade das lembranças. Seca e esquecida ficava ao pé da falésia até que novamente o mar subisse. Então eram outros os traços, os quadros, os tempos e as cenas. Uma história outra se insinuava. Mas antes de qualquer esboço de sentido, a maré novamente vazava. 

Adivinhei seu nome: Sila. Busquei os antigos que narraram seu mito. Assumi o fardo de contar seus infortúnios. Até onde permitiu o engenho, teci uma memória para Sila. Para que ela enfim pudesse livrar-se do esquecimento e eu pudesse enfim livrar-me do peso da sua presença. É o resultado deste esforço que ofereço agora.

18 agosto 2013

Os monstros de André

Eu tenho medo de alma, não gosto de filme de vampiro, não durmo com o pé do lado de fora do lençol e fico olhando de lado quando vou sozinho pela rua. Sou um medroso assumido. Foi por isso que abri com certo receio o “Chá de sumiço e outros poemas assombrados”, novo livro - supostamente infantil - de André Ricardo, que saiu agora pela Autêntica de Belo Horizonte.
O livro fala de cemitério, coveiro, Frankenstein, morto-vivo, Bicho-Papão, múmias e outros espectros menos cotados. André enrola a gente com uma poesia bem elaborada, umas palavras bem escolhidas, transformando em brincadeira os nossos medos de criança. Às vezes avança em um terreno onde a criação poética trisca as farpas do trocadilho. Mas o poeta vence e a poesia é maior que o simples jogo das palavras. O poema do Bicho-Papão é o que mais se arrisca nessa fronteira.
As ilustrações de Luyse Costa traduzem bem o espírito dos poemas. O traço finge uma simplicidade que revela, mais que esconde, a intenção geral do livro que, no meu fraco entender, é tocar com leveza nos nossos fantasmas recônditos, despertando-os, mas deixando-os meio sonolentos, sem muita vontade de assustar.
Este é o dever de todo bom poeta: usar o artifício da palavra para tocar em certos territórios estrangeiros do leitor e ali despertar sentimentos há muito adormecidos e alguns jamais suspeitados. O poeta é uma espécie de “coiote” mexicano que transporta os afetos migrantes pela fronteira desertificada com a promessa (nem sempre cumprida) de fazê-los emergir no território da palavra, onde por fim alcançarão a cidadania simbólica.
André é um “coiote” competente. Seu poema “Almas” é o que melhor estabelece esta ponte de palavras entre os medos infantis e sua elaboração pelo humor, permitindo-nos revisitar nossos fantasmas com a íntima distância que o trabalho simbólico permite.

Será o “Chá de sumiço...” um livro infantil? Certamente que sim. Mas no sentido em de que se dirige ao “infantil”, o território do “infans”, do sem fala, que permanece como relíquia em cada um de nós.

01 julho 2013

Os radicais de Jericó



Sempre achei uma demonstração de fraqueza as piruetas que certos parlamentares fazem para justificar suas ausências nas casas em  que supostamente nos representam. Finalmente, um grupo seleto desses políticos acaba de tomar uma atitude radical. Os vereadores da cidade de Jericó, no Sertão da Paraíba, decidiram que não são de ferro: só vão trabalhar seis meses por ano. E, nesses seis meses de sacrifício, se reunirão apenas uma vez por semana, nas sextas-feiras. Cada vereador jericoense recebe dois mil reais por mês.  Receberão, portanto, 24 mil reais por 24 dias de trabalho por ano. Mil reais por dia. Muita gente vai querer largar suas ocupações atuais para tentar se eleger em Jericó. É um dos melhores empregos do mundo.
Segundo o IBGE, Jericó tem uma população de 7.538 almas, distribuída em pouco mais de 179 quilômetros quadrados. De fato, seus vereadores não têm muito o que fazer. Se decretarem que vão ter doze meses de férias por ano, ninguém sentirá sua falta. Assim como seria muito bom se todos os vereadores, deputados e senadores do Brasil deixassem definitivamente de trabalhar. Garanto que as coisas andariam muito melhor sem a roubalheira geral que estes senhores promovem no pouco tempo em que trabalham. No lugar da parafernália legislativa que promovem, adotaríamos o projeto sensato de constituição proposto pelo historiador Capistrano de Abreu: “Art. 1º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Parágrafo único: Revogam-se as disposições em contrário.”

E parece que este pessoal que está nas ruas está levando a sério a Constituição do Capistrano. Essa turma está tomando vergonha na cara  bem a tempo de evitar que este País se transforme de vez num imenso Jericó.

22 abril 2013

Boa vida



Fui convidado para apresentar “A menina De Noite” numa feira de livros para alunos do primeiro grau. Trabalho duro. Três apresentações, uma pela manhã e duas pela tarde.

Na primeira turma, dos mais novos, aberta a palavra para as perguntas, fui bombardeado com uma questão fulminante: quanto é cem mais cem? Logo eu, que sempre fui uma lástima com os números, não poderia arriscar qualquer palpite. Não sei, respondi. A gargalhada foi geral. 
 
Consegui me sair melhor com as perguntas mais prosaicas das turmas mais velhas sobre o meu processo criativo: “é muito difícil escrever um livro?” “Quanto tempo o senhor levou para escrever ‘A menina De Noite?”  “Por que ‘De Noite’ e não ‘Da noite’?” “De onde vem a sua inspiração?”

Uma menina que estava fantasiada de Emília perguntou se era eu que tinha escrito “O sítio do Pica-pau amarelo.” Deu vontade de mentir, mas achei melhor falar um pouco sobre o valor de Monteiro Lobato na literatura e a sua luta pelo petróleo brasileiro.

Depois de cada apresentação, teve a indefectível sessão de autógrafos. Ao todo, foram mais de cem assinaturas com uma pequena dedicatória em cadernos, agendas e folhas avulsas de papel arrancadas às pressas.

O melhor disso tudo é o clima de cumplicidade que as respostas sinceras e brincalhonas criam entre mim e este público que se entrega numa relação de confiança depois de entender que estou do lado deles. Já na saída, no corredor entre a biblioteca e o pátio, me vi cercado pelo carinho de um bando ruidoso de meninas e meninos que me desejavam uma boa tarde, um bom fim de semana. Até que um dos mais velhos me abraçou e disse: “uma boa vida para você, Ronaldo”. Não pude evitar as lágrimas. Pois com aquela frase simples, o garoto estava me desejando o que eu já vivia naquele momento. Pois não tem coisa melhor na vida do que viver cercado de carinho como recompensa pelo nosso trabalho.     

Foto de Ana Patrícia      

26 março 2013

Poemas maternos





Primeira canção


Sei que estás aqui.
Um resto de gozo
ainda me ondula as carnes,
mas sei que já estás aqui.

Ainda tensa pelo esforço recente,
minha mão já afaga
o lugar onde te guardo.

Mal começo a te fazer
e já meus braços querem
se fechar em ninho.

E minha voz ainda arfante
já ensaia as primeiras notas
de uma canção
para te ninar.




Ofício do tempo

 

Entrega teu corpo ao tempo
que o tempo faz seu milagre

Entrega ao tear do tempo
As fibras da tua carne

Espera
Somente espera
que o tempo sabe o ofício
de tecer com tuas fibras
o pano rubro da vida.



Berço


Ainda não sabes,
mas já tens um nome.

E os nomes de todas as coisas
já esperam para brincar contigo.

Teu verdadeiro berço é minha voz.
E com ela te mostrarei o mundo.

Já estão prontas em mim as palavras
Que transformarão teu corpo
Em carne viva.





Canção do ventre

Dorme
que dentro de mim
é sempre calmo.
Meu clima é bom.
Sou um canto de esperar.

Dorme
que dentro de mim
é sempre berço.
E canta uma eterna cantiga de ninar.

Dorme
que dentro de mim
é sempre casa.
Um cômodo só,
muito espaço pra brincar.

Dorme
que em mim
será sempre madrugada.
Dorme
que dentro de mim
é sempre mar.

Dorme
que dentro de mim
é sempre tempo
da vida se refazer
e depois se acordar.


 De pé

Em poucos meses repetes
O que custou séculos à humanidade.

Levantas do chão
as patas dianteiras
e entre júbilo e quedas
ensaias teus primeiros passos.

Agora
tens as mãos livres
para o amor
        o trabalho
        a guerra.



Embalo do trem noturno


Longe, longe,
muito longe.
Impossível ver o corpo do teu filho
morto
caído
os olhos abertos ao trem
que não o levará.

Tarde, tarde,
muito tarde.
Impossível ter o corpo do teu filho
morto
frio
a carne ressecada
ávida da terra que o amornará.

Longe e tarde jaz
o corpo do teu filho,
prematuro nada.
  
Resta apenas o corpo do teu filho
ontem
pequenino
que embalas hoje
noite adentro
tempo adentro
até não restar mais
dor, canto, noite ou tempo.

Até que durmas tu,
mãe do sofrimento.

20 fevereiro 2013

A gente se vê




Desde janeiro de 2010 que ocupo este espaço no Contraponto com minhas crônicas. Chovesse ou fizesse sol, de casa ou de um hotel, nunca deixei este espaço em branco. Foram mais de cento e quarenta crônicas (boas, ruins ou sofríveis) inspiradas no que meus olhos viram nesses três anos. Acho que está na hora de dar um tempo.
Não tenho um motivo específico para tomar esta decisão. É apenas um sentimento difuso de que já não tenho muito a dizer. Isto coincide com a minha necessidade de voltar ao ponto de partida da minha escrita, os poemas, que há muito reclamam um tempo específico nos meus afazeres de escritor.
Vejam bem o que eu disse: estou apenas dando um tempo neste espaço semanal. O que significa dizer que, sempre que me surgir uma ideia que valha a pena, mando para o Contraponto o que ela me render como escrita. Se vai ou não ser publicado, fica por conta da Mariana e do João Manoel.
Foi grande o prazer de ocupar este espaço. Foi grande também a responsabilidade, pois, à medida em que  ia conhecendo meus leitores, passei a ter cuidado com o estilo de cada crônica. Tive que desenvolver uma linguagem que atingisse o balconista da farmácia, o dono da oficina de eletrônica e as atendentes do Maurílio de Almeida, sem ficar mal na fita com meus amigos escritores e professores de literatura. Claro que algumas vezes tive que desagradar a uns e a outros, mas, no geral, acho que me saí bem.
Uma coisa quero que fique clara: não existe coisa mais gratificante do que ser parado na rua por uma pessoa emocionada pelo conteúdo de uma determinada crônica. Fico feliz sabendo que alguns dos meus textos fizeram algumas pessoas refletir sobre algo que até então lhes passava desapercebido. Gosto também de saber que muita gente compartilhou de alguns aspectos da minha intimidade cotidiana.
Só peço que não tomem esta trégua como um gesto de renúncia. Isto é coisa para os papas. Vou continuar a publicar no meu blog (blog-do-rona.blogspot,com), mas sem o compromisso da periodicidade. Quando der na telha, faço uma postagem por lá. Vocês não vão se ver livre de mim, definitivamente. Estou só dando um tempo. Mais cedo ou mais tarde, a gente se vê.

13 fevereiro 2013

Nossa Senhora dos Prazeres




No meio de tanto incentivo ao sofrimento mundano para a salvação da alma, me chama a atenção a existência de uma Nossa Senhora dos Prazeres dentre as inúmeras denominações da Virgem pela igreja Católica. Me interessei pela história e fiquei sabendo (por São Google, claro), que em Portugal, nos idos de 1590, uma imagem de Maria apareceu  sobre uma fonte na quinta dos condes de Alcântara. Quando a Santa começou a fazer milagres, os proprietários da fonte levaram a imagem para dentro de casa. Quem já viu pobre ter direito a prazeres em fontes e terras de ricos? Mas logo a imagem desapareceu para ser encontrada mais tarde junto a um poço por uma menina sedenta. Foi quando a Madona apareceu para ela e disse que se construísse uma igreja ali em devoção a Nossa Senhora dos Prazeres, que viria também a ser conhecida por Nossa Senhora das Sete Alegrias.

Não tenho o menor interesse pela classificação que os franciscanos deram aos prazeres da mãe de Jesus, todos eles ligados à sua imagem imaculada, como se ela não tivesse outros filhos além do Crucificado e ido a outras festas além das bodas de Caná. A mim me basta que exista uma Santa protetora dos prazeres e das alegrias.

Mudando um pouco o rumo da prosa, sempre me diverti com certos compositores que se apressam em louvar o “princípio do prazer” quando querem dar um certo ar de erudição á pobreza dos seus versos. O conceito freudiano de prazer é decepcionante: quer dizer que o aparelho psíquico é regido pelo evitamento ou evacuação da tensão quando esta se torna desagradável. O melhor exemplo disto é aquela sensação maravilhosa quando encontramos um banheiro depois de algumas horas de viagem. Nada poético, portanto, mas bastante prazeroso.

Deixemos, pois, de lado, a piedade católica e a falta de sal da psicanálise. Cuidemos de nossos prazeres e alegrias cotidianos que podem ser recolhidos nos momentos mais simples da contemplação da natureza, das obras de arte, do convívio com nossos semelhantes e de intimidade com a pessoa amada. E vivamos cada um desses momentos sem culpa ou remorso, com a atenuante de que até a mais persecutória das instituições criou uma protetora benevolente que sabe muito bem o valor dos prazeres e das alegrias.  

31 janeiro 2013

Nem morto


Quando assistíamos ao DVD de abertura do ano cultural dedicado a Sérgio Castro Pinto, denunciei que Hildeberto Barbosa Filho tinha arrumado suas estantes para gravar o seu depoimento. Ele engoliu a corda e afirmou veemente que sua biblioteca estava sempre impecável, como foi mostrada. Isto me veio à mente quando revi o título “A geometria da paixão”, que encabeça o sumário do livro que reúne sua poesia desde os idos de 1986, “Nem morrer é remédio”.
Manter uma biblioteca arrumada requer um esforço tão inútil quanto o de enfeixar paixões em figuras geométricas. O poeta HBF pode muito bem ser considerado um Sísifo com dupla jornada de trabalho.
Nunca estive pessoalmente na biblioteca de Hildeberto, mas sou freqüentador assíduo de sua poesia. O problema é que o poeta produz muito, produz efusivamente, o que me faz de vez em quando perder o fio da sua poesia. Mas agora o problema está resolvido. Tudo o que ele escreveu, pelo menos até uma certa parte do ano passado, está aqui, na minha frente.
O título do livro deixa o leitor em dúvida: “Nem morrer é remédio”. Remédio pra quê?, pergunta o leitor. E na falta de resposta do poeta o leitor tem que seguir sozinho em sua busca. Pra vida não pode ser, pois, para esta, a morte é, sim, um ótimo remédio. Da mesma forma que remedia a solidão, a tosse, a falta de dinheiro.
O que a morte não remedia, sugiro eu, é a busca incessante do poeta, de todos os poetas, de uma forma que dê conta de toda a sua angústia frente ao mistério do que ele apenas vislumbra na penumbra dos seus sonhos. E depois de tanto desarrumar seus livros em busca das palavras que o socorram na construção de tanques geométricos para suas paixões, o poeta morre de olhos secos e mãos vazias. Mas é aí que nem a morte é remédio.  Morto este poeta, logo outro Sísifo tomará o seu lugar.

21 janeiro 2013

O homem que lê




Vamos falar de Solha. Tudo bem, mas de qual Solha? Porque temos o Solha romancista, o poeta, o ensaísta, o cronista. Temos também o Solha ator de teatro e cinema, o letrista, o pintor... Mas tem um determinado Solha que é maior do que todos esses outros: o Solha leitor.
Um outro Solha, o conversador, me contou que, há muito tempo, uma luz acesa, numa constância sem igual, assombrava aquela gente da cidade de Pombal. Debaixo dessa lâmpada estava o bancário W. J. Solha que varava as noites devorando todos os livros que lhe caíam nas mãos. Ele estava encantado com a qualidade cultural das pessoas da pequena cidade paraibana que lhe emprestavam os clássicos nacionais e estrangeiros. Até que um dia, por conta do acúmulo de noites insones, o leitor voraz desmaiou a caminho do expediente no Banco do Brasil.
Até hoje Solha lê. E lê muito. E porque muito lê, muito escreve. E escreve também sobre o que lê. Um dia desses, eu estava no quiosque dos Correios do Bairro dos Estados, postando uns exemplares do Baú do anão, meu último livro de contos. Como acontece de vez em quando, lá estava Solha com um monte de exemplares do seu último livro (não sei se ainda é o último) para enviar a alguns privilegiados. Aproveitamos para trocar figurinhas. Dei a ele o meu Baú e ganhei um exemplar da sua coletânea “Sobre 50 livros (brasileiros/contemporâneos) que eu gostaria de ter assinado”.
Deixei o livro na cabeceira para ir mordendo aos poucos. São comentários, alguns tendendo para o ensaio, sobre obras das mais diversas categorias. Livros de poemas, contos, romances e memórias, recebem o olhar calejado de Solha, mostrando o que o leitor comum não vê.
O mais importante deste livro é que Solha não se deteve a resenhar ou comentar apenas autores consagrados que viessem corroborar o seu refinamento de leitor. Tem gente que somente uns poucos leitores paraibanos conhecem. Claro que não concordo com algumas escolhas, mas isto não tem a menor importância. Mesmo porque sou autor de um dos livros comentados, o romance “Memória do Fogo”. E para mim é um grande privilégio ter roubado algumas horas de sono deste leitor inveterado.

A voz e o tempo



Quando cheguei e vi a quantidade de jovens espremidos na areia da praia pensei que, depois da apresentação da Renata Arruda, todo mundo iria embora. Restaria apenas um mar de cabelos brancos mal conseguindo balançar suas obesidades à voz nostálgica de um setentão decrépito. Estava redondamente enganado. Quando a banda competente atacou os primeiros acordes da música “Bola de meia, bola de gude”, toda aquela gente, dos adolescentes aos velhotes, cantou ansiosa para que chegasse a voz que daria o verdadeiro tom de todo o show. Todos carregávamos um menino moleque no coração e essa entidade coletiva se manifestava ali, atendendo pelo nome de Bituca, no corpo e na voz de Milton Nascimento.

         Não sei quanto tempo durou o espetáculo. Foi o tempo necessário para  sentir passar as lembrança mais significativas da minha vida. Ali desfilava boa parte da minha trilha sonora. Cada música me lembrava o lugar, as pessoas e as circunstâncias que me rodeavam quando aquele som me surpreendeu.

         O show de Milton Nascimento em João Pessoa serviu para mostrar que nem tudo está perdido em termos de recepção estética musical. Pelo esforço infernal das emissoras de rádio e televisão em nos servir o pior do seu lixo, era de se esperar um retumbante fracasso de um artista refinado, avesso a concessões. E ali estava a prova de que vale a pena se manter íntegro, distante das imposições do famoso “mercado”. Todo mundo que estava lá sabia de cor as canções de Milton Nascimento, das mais antigas às mais recentes.

         Meu coração aos pulos, os olhos afogados em lágrimas, as lembranças afagando o corpo todo, eu me sentia um privilegiado em poder viver aquela dose concentrada de emoção. Como se aquela voz possante e límpida trouxesse todo um tempo no seu bojo. E eu vi plasmados em minha frente os versos de Chico Buarque, em que “o velho cantor subindo ao palco, apenas abre a voz, e o tempo canta”. 

         Ali estava o tempo, o cantor e a voz que nos reúne a todos, mais uma vez, no eterno Clube da Esquina.
  

16 janeiro 2013

Nada de novo





É a quarta vez que começo este texto. Apaguei as outras versões porque todas as ideias que me ocorreram foram descartadas por excesso de pessimismo. Reconheço a dificuldade em encontrar um assunto agradável sem recorrer aos pequenos fatos do cotidiano doméstico. Mal chegamos a viver os primeiros quinze dias do Ano Novo e tudo nos indica que vamos continuar no velho mundo de sempre. É isto o que nos querem fazer acreditar os senhores da economia e da política, desde o mais obtuso vereador aos mais altos mandatários das grandes potências. Desde o técnico de contabilidade da esquina, ao mais festejado economista dos grandes conglomerados financeiros.
Para falar a verdade, nada de muito grave pode nos acontecer se as coisas caminharem, de fato, de mal a pior, como dizem e querem os donos do dinheiro do mundo. Nada pode nos acontecer que já não tenhamos vivido. Se não conseguirmos pagar nossas contas, vão nos tirar o cartão de crédito, o cheque especial e mandar nosso nome para o Cerasa. Já vivemos isto nos tempos de Fernando Collor. O governo pode deixar o funcionalismo público sem reajuste por anos a fio. Fernando Henrique já fez isto. A inflação pode voltar aos píncaros dos dois dígitos. Isto já aconteceu no tempo de Zé Sarney. Não vamos nos preocupar com os apagões, pois o País está caminhando para uma recessão e não vamos precisar de energia para tocar a produção industrial, do mesmo jeito que aconteceu também nos tempos do FHC. E a roubalheira que está comendo solta na construção dos estádios para a Copa é só uma reedição do que se roubou no tempo da construção de Brasília.
         Nada, portanto, de novo. Felizmente, digo eu. Pois o bom e velho sol continua nascendo todos os dias. Tem o mar enchendo e vazando como faz desde o começo do mundo. Tem sempre um resto de verde resistindo ao descaso dos poderosos. E tem os amigos, os antigos e os novos. Tem o pessoal mais querido que ama e briga com a gente, dependendo da veneta. Tem os livros para ler e reler. Tem os filmes para assistir, tem música para ouvir e dançar.
         Estamos apenas começando mais um ano. Todo mundo sabia que logo-logo ele deixaria de ser novo. Vejo o calendário e penso na trabalheira que temos pela frente. Às vezes me dá um desânimo, mas me lembro que o cronista Antônio Maria se dizia “brasileiro, profissão: esperança”. Eu que também sou cronista e brasileiro, me sinto também condenado a esta profissão de alto grau de insalubridade.

07 janeiro 2013

Problema com passarinho




Nesse fim de ano minha mulher decidiu armar duas árvores de Natal. Uma, melhorzinha, na sala, e outra, mais mufamba, no terraço lateral, pois seria o lugar mais adequado para distribuir os presentes, por conta do calor que não tem neve de algodão que alivie.
Passou o Natal, o Ano Novo e chegou o dia de Reis, data base para o desmonte dos enfeites natalinos. Pois bem, na manhã do dia sete, descobrimos que tem um casal de passarinhos fazendo um ninho na árvore de Natal do terraço.
É impressionante como as coisas estão mesmo de cabeça pra baixo. Um passarinho não discrimina mais um amontoado de plástico de uma árvore de verdade. Aliás, esse não é o meu primeiro problema com a maternidade alada. Uma rolinha, sabidamente uma ave de arribação, fez um ninho na pitangueira em frente ao meu quarto e nunca mais arribou pra canto nenhum. Faz quase um ano que está lá, sendo disputada pelos machos da sua espécie. Já me acostumei aos seus arrulhos nas primeiras horas da manhã, mas continuo achando que ela deve seguir a rota migratória da sua laia. Mas ela não está nem aí em seu sedentarismo promíscuo. Semana passada, encontramos um ovo novo no seu ninho. Será mais uma criança sem pai neste mundo.        
A vizinhança da rolinha é mais preocupante, pois preciso fazer uma poda na pitangueira, agora que acabou a safra generosa do ano passado. Mas me vem um drama de consciência, pois temo desguarnecer o ninho que está situado no pé do galho que mais precisa ser cortado.
Definitivamente, sou um desadaptado em relação às leis naturais. Qualquer animal menos culpado teria violado o ninho da rolinha e devorado seus ovos, quem sabe até a própria inquilina.  Qualquer ser humano menos conflituado teria mandado o casal de passarinhos às favas e desmontado a árvore de Natal com ninho e tudo. Mas eu não tenho essas qualidades fundamentais à sobrevivência e fico aqui, escrevendo, ganhando tempo, até que alguém da casa tome alguma decisão por mim. É no que dá ter intimidade com passarinho.

02 janeiro 2013

O homem que ensina a ver no escuro




Faz algum tempo que escrevi uma crônica sobre a “Igreja Batista”, me referindo ao número de discípulos que gravitam em torno da sabedoria e paciência de João Batista Brito. Sempre me impressionou a capacidade do João em agregar as pessoas, deixá-las à vontade para expressar suas idéias, respeitar a diversidade de opiniões, falar com propriedade e sem empáfia sobre as coisas que lhe concernem. E dentre essas coisas, a que mais lhe concerne é o cinema.
Por isso foi grande a minha alegria em ver de novo a Igreja Batista reunida, desta vez lotando o auditório Linduarte Noronha, da Funjope, para assistir ao filme que Mirabeau Dias fez sobre o nosso JBB. De saída, o título é de fazer inveja a quem vive de escrever: “O homem que vê no escuro”. Minha filha mais velha sugeriu que eu processasse o autor, pois estava na cara que o título foi roubado de mim. Claro que concordei, lisonjeado, e certo de que não conseguiria fazer coisa melhor.
Mesmo um pouco longo para um documentário, o filme é conduzido com mão segura por Mirabeau que evitou o cansaço das entrevistas com a intercalação de trechos dos filmes citados por JBB. Foi divertido ver o tímido João, de jeans surrado e camisa quadriculada, no melhor estilo cow-boy, fazer a performance de um dos contos tirado do seu livro “Um beijo é só um beijo”. 
Sou um mau aluno de João, pois demorei muito a aprender o que diabos era diegese, conceito que ele usa em vestes caseiras, como quem toma café.  Mas o filme de Mirabeau é didático sem ser chato, exatamente como o seu objeto, conseguindo infiltrar em nós as noções mais complicadas da estética, da literatura e, obviamente, do cinema, sem nos fazer bocejar.
Minha mulher saiu da sessão dizendo que tinha assistido a um curso completo de cinema em menos de duas horas. Concordo com ela. Pelo menos uma coisa eu garanto: nunca mais vou ter dúvidas sobre o significado de diegese. E não se espantem quando me virem usar o conceito em uma de minhas crônicas. Será minha forma particular de pagar o dízimo à Igreja Batista e mostrar que não sou tão mau aluno assim.