31 outubro 2009

Os gemidos de Dôra



Tem gente que sai para se distrair, outros vão às compras ou ao trabalho. Dôra sai para ouvir a rua gemer. E sabe o que Dôra faz com esses gemidos? Escreve livros com eles. E não é somente o novo livro de Dôra que guarda os gemidos do mundo. Desde “Arquitetura de um abandono”, de 2003, passando por “Preces e orgarmos dos desvalidos”, de 2005, até “O beijo de Deus”, de 2007, Dôra não faz outra coisa além de nos contar do sofrimento que vê e escuta pelas ruas.


Mas repare que Dôra não fala de gritos, uivos ou impropérios. Ela se faz portadora do sofrimento sofrido em surdina, nos becos, nos cômodos apertados das casas de vila, nos banheiros imundos, na solidão das noites suarentas.


“Os gemidos da rua”, o mais recente livro de contos de Dôra Limeira, tem uma catinga azeda das valetas por onde escorre a podridão dos detritos humanos. Cada personagem de Dôra geme como a quem se espreme um carnegão. Sem escândalos, pois não se espera que a mão pesada alivie a força do aperto. Geme-se apenas, com a resignação de quem sabe que a dor vai piorar.
Dôra dividiu os 59 contos do seu livro em três partes: Transgressão, Desvio e Imtimidade. Não consegui adivinhar o critério que ela usou para tal divisão. Peguntem a ela. Pois, para mim, em qualquer parte em que se abra o livro, encontrar-se-á em cada personagem as qualidades da transgressão, do desvio e da intimidade. Isto porque, no meu fraco entender, estas são qualidades facilmente visíveis na própria Dôra.


Dôra cultiva a idossincrasia de usar recorrentemente em seus contos o verbo “adentrar” nos mais diversos modos, tempos e pessoas. Em quase todos os seus contos o verbo cabuloso está lá, às vezes mais de uma vez no mesmo conto. Um psicanalista apressado diria que o verbo adentrar teria uma significação fálica, revelando um desejo de agressão que teria como suporte a pulsão de morte em atividade nos porões do psiquismo dôriano. Limitado ao meu humilde papel de apresentador do livro, revelo apenas minha suspeita de que Dôra usa “adentrar” para se vingar de alguém que um dia disse que o tal verbo soava inadequado na boca de uma personagem que vivia num lugar sujo e pobre. Acontece que o tal lugar era calcado no espaço em que a própria Dôra tinha vivido sua infância. E ela, Dôra, adentrava, sim, quando vivia ali.


Convido-vos, pois, a adentrar ao livro de Dôra Limeira. Antes, porém, avisem aos familiares e amigos mais próximos que não estranhem qualquer mudança no seu modo de falar ou de andar pelas ruas. Seguramente, vocês não serão os mesmos quando saírem, gemendo, da leitura de “Os gemidos da rua”.

João Pessoa, 30 de outubro de 2009
Ronaldo Monte.

26 outubro 2009

Bolha


Definitivamente, ele não podia vir. No entanto, mais ao menos na hora dele chegar, uma menina soltou uma bolha de sabão que flutuou sobre nossas cabeças e definiu o tema do próximo encontro.

Ronaldo Monte – Clube do Conto
Imagem obtida em: tutoriaisphotoshop.net

18 outubro 2009

Muito prazer, Malu




Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que cochila aí ao lado. É minha mais nova neta, a Malu. Talvez eu devesse dizer futura neta, pois ela ainda está no quinto mês de gestação e o flagrante se deu na barriga de sua mãe, mulher do meu filho. Mas aí é que está um dos grandes problemas da humanidade: quando é que uma pessoa começa a existir?

Não quero perder tempo aqui com o problema sobre o início da vida, pois isso tem sido motivo para um desfile de discursos preconceituosos e pseudocientíficos, principalmente quando está em questão o direito ao aborto. Minha preocupação é bastante mesquinha e pessoal: posso considerar Malu como minha neta e começar a comprar coisas e fazer planos para ela, antecipando em alguns meses sua existência fora do ventre da mãe?

Vejam bem a situação atual em que estão as coisas: enquanto um projeto de menina se nutre, dorme e dá cambalhotas no exíguo espaço que lhe protege, um batalhão de adultos escolhe seu nome, borda esse nome em lençóis e toalhas cor-de-rosa, faz planos para os seus quinze anos e já pensa no que ela vestirá no baile de formatura. Em suma, já existe todo um presente e um futuro prontos para ela viver. Certos papéis já lhe estão destinados pelas condições de classe social e nível de informação de seus pais e adjacentes.

Enquanto isso, a futura Malu dorme, cresce e dá cambalhotas. Mas será que é de uma futura neta que estou falando? Ela já está aqui, determinando o que penso e escrevo. Essas meninas começam cada vez mais cedo a perturbar a vida a gente.

12 outubro 2009

O outro lado

Não tenho qualquer vocação para Polyanna e sei muito bem no que deu a fé inabalável de Anne Frank na bondade humana. Não é, portanto, de bondade que quero falar. É de um impulso muito mais primitivo na constituição do ser humano que o leva a arriscar a própria vida em defesa da vida de um semelhante. É algo ligado à preservação da espécie, valor mais alto do que a preservação do indivíduo.
O exemplo mais recente deste aspecto radical do comportamento humano foi dado pelos protagonistas do salvamento de uma mulher prestes a ser carregada com a sua moto numa enxurrada, na cidade de São José do Rio Preto, em São Paulo.
Quem viu as cenas pela televisão pode constatar o caráter impulsivo do comportamento dos voluntários. O próprio termo “voluntário” aqui se torna inadequado, pois não se trata de um tomada de decisão consciente, a partir da vontade individual. É um imperativo irrevogável que não considera os riscos da ação. Existe um semelhante em perigo e não cabe mais nada a fazer senão salvá-lo.
Estamos tão habituados às notícias sobre a violência entre os homens que somos levados a ver a nossa espécie como essencialmente destinada à destruição dos vínculos entre os semelhantes. É preciso que algo se eleve à condição trágica para que possamos ver a manifestação do instinto gregário que nos faz ainda resistir como espécie.
Não tenho, já disse, qualquer vocação para Polyanna, nem acredito incondicionalmente na bondade humana. Mas é muito bom ser lembrado, de vez em quando, que existe um instinto básico na minha espécie que permite um mínimo de esperança na construção de uma convivência solidária.

11 outubro 2009

Minh’alma é triste



Chamava-se André, mas gostaria de se chamar Casimiro José Marques de Abreu. Daria tudo para morrer tuberculoso. Daria a vida para ter escrito o poema Minh’alma é triste. Ah,como queria pegar da pena e escrever:
“Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora...”
Ó, meu Deus, se Yolanda pudesse um dia ler no seu caderno de folhas pálidas a constatação metafísica de que
"Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria...”
Não, talvez Yolanda não gostasse muito dessa coisa pesada de mortos, talvez nem curta o carpir melancólico dos sinos. Seria melhor dizer que
“Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato...”
André sabia muito pouco de Yolanda. E quanto mais queria ser Casimiro de Abreu, mais via sua musa sumir com a galera em busca dos embalos. André definhava, dormia mal, comia quase nada. Varava as noites com a janela aberta para ver a hora em que sua amada voltava, alegre, não sabia bem de onde.

“Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste...”,
pensava André, sob a luz pálida da sala.
Em algum lugar do mundo nascem flores, pensava André, menos aqui, neste pedaço de terra esquecido de Deus, onde faz sol ou chove, chove a cântaros. Como queria viver (morrer) em outras plagas para poder dizer a Yolanda:
“— Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri — mas a minh'alma é triste!”
A luz pálida do sol mandou Yolanda pra cama e o pálido André para seu velho exemplar de Primavera.


Ronaldo Monte - Clube do Conto - tema: Pálido

05 outubro 2009

Momento cultural






Se você quiser ganhar um jantar exclusivo com dois expoentes da cultura nacional, basta responder a esta singela questão: “o que você faria para conhecer a Joelma e o Chimbinha de pertinho?” É isto que está proposto num imenso cartaz nas lojas de uma das maiores cadeias de supermercados do País, com o título de “Momento cultural”. Não venha me dizer que sua formação cultural é insuficiente para reconhecer os seus prováveis futuros comensais. Chimbinha e Joelma são as estrelas da Banda Calypso. Dentre seus mais de 190 sucessos estão Doce mel, A lua me traiu, Deixa eu sonhar e Pra te esquecer.

Particularmente, não tenho nada contra a banda Calypso ou qualquer outro conjunto que ganhe seu dinheiro honestamente junto a um público imenso que curte, dança e canta suas músicas. A minha bronca é com os patrocinadores e divulgadores do tal “momento cultural”, pois iludem a clientela, vendendo como um momento de fruição estética um jantar entre um fã e seus ídolos.

Esta é apenas mais uma amostra de como a cultura vem sendo tratada pela midia. Os grandes jornais do País há muito vêm confundindo show business com movimento cultural. Colunas ditas culturais estão cheias de fofocas sobre Ivete Sangalo, Suzana Vieira e Dado Dolabela. Quando muito, anunciam uma peça caça-níqueis com um dos ídolos da última novela das oito. Com isto, livram-se da chatice do papo intelectual e das fotografias sem charme desses mal-encarados rodeados de livros e quadros que ninguém sabe o que querem dizer.

Um jantar de um fã com seus ídolos deve ser realmente um momento de muito prazer e emoção. Só não gosto que chamem a isso de momento cultural. Culturais mesmo são os momentos dos fins de tarde dos sábados quando me encontro com o Clube do Conto. São os momentos cada vez mais frequentes neste País em que muitos grupos se reúnem para produzir e divulgar cultura.