30 dezembro 2013

Brincar de eternidade


 

Conheço um homem que se angustia com os relógios em que o ponteiro dos segundos desliza sem marcar os intervalos. Um comichão interpretativo me leva a supor que essa angústia decorre do nosso desamparo frente à transformação contínua do presente em passado, sem nos deixar a ilusão de que, por um breve momento, o tempo repousa nos traços dos segundos.
É para fugir da agonia frente a este fluxo constante que dividimos o tempo em fatias e vamos fingindo que o devoramos, enquanto, na realidade, é ele que nos consome goela abaixo.
E assim inventamos as horas, os dias, anos, séculos e milênios na tentativa de nos defendermos da pequenez da nossa existência. Com isto podemos nos enfronhar no passado e projetar no futuro, fugindo dos limites da mediocridade do presente. É isto que nos leva a procurar ancestrais ilustres em nossas árvores genealógicas e imaginar uma vida gloriosa para nossos descendentes. É uma forma plausível de nos tornarmos eternos.

Aqui estamos, de novo, brincando de eternidade. Diz o calendário que mais uma vez iniciamos um ano novo. Mesmo sabendo que isto é apenas uma convenção, necessitamos deste repouso do tempo em que algo passa definitivamente e algo desconhecido avança ao nosso encontro. É neste intervalo que nos juntamos aos nossos antepassados e caminhamos rumo às gerações descendentes. Como o homem que se angustia com o correr contínuo do ponteiro dos segundos, precisamos fatiar o tempo para criar a ilusão da eternidade. E com isso inventar alguns momentos de felicidade.

16 dezembro 2013

Um pouco mais de Dôra


Ela guarda a dor em seu nome, mas a dor não demora em sua alma. Ela reparte suas dores com quem as merece: todos nós que sofremos e fazemos sofrer. Ela é Dôra Limeira, a que dói e dá frutos. “Cancioneiro dos loucos” é o seu mais novo fruto.  E dói.
O que dói em Dôra são as dores das putas, das bichas, das mal-amadas, das desamadas. As dores das velhas, das loucas, das aleijadas. As dores dos homens que perdem, que batem, que cheiram mal.
“Cancioneiro dos loucos” foi publicado pela Idéia, de João Pessoa, com recursos do FIC da Secretaria de Cultura do Governo da Paraíba. Divide-se em duas partes. “Cantigas lacrimosas” concentra contos inspirados em velhas canções de amor e desespero. “Lamentos de porta em porta” é o que o nome diz: cada porta de casa guarda um lamento por um filho morto, um sonho desfeito, uma mutilação...
Quem conhece os livros anteriores de Dôra já sabe o que esperar deste “Cancioneiro”. Contos curtos, quase sem enredo, instantâneos das vidas comuns que precisam de pouco para viver suas tragédias. O mundo em que vivem tudo provê para que sofram pelo simples motivo de estarem vivos.
Os leitores de Dôra também não se espantarão com o seu estoque de escatologias. Seus personagens sangram, vomitam, se mijam, se cagam e fedem todos os fedores que o muito sol e a pouca água podem fazer feder.
O leitor atravessa o livro com um embrulho no estômago e respira aliviado quando vira a última página. Então, pergunta-se ao leitor: porque não largou o livro no meio? Porque suportou até o fim esta ânsia de vômito?  A resposta é simples: é impossível deixar de lado aquilo que nos pertence. O leitor se deixa seduzir pelo texto de Dôra porque ele lembra que somos feitos dessa matéria. Se somos diferentes em nossa aparência externa, ninguém conseguiria identificar as nossas tripas se as vissem expostas no açougueiro. Somos também iguais nas sombras que engendram nossas almas. Um pouco mais, um pouco menos, todos cheiramos mal. São testemunhas disto nossos sonhos, que nunca acabam bem e sempre nos geram angústias.
Foi para nos lembrar disto mais uma vez que Dôra escreveu seu “Cancioneiro dos loucos”. Nas mãos dos leitores, portanto, um pouco mais de Dôra, um pouco mais de dor.       

                                                        Ronaldo Monte.

                                                              04.12.2013

06 dezembro 2013

Menos um


Acordei com um presságio de que alguma coisa má me aguardava no lado da vigília. À medida em que tomava posse dos sentidos, o presságio deu lugar à certeza: uma coisa má havia acontecido. Meu dia começaria com menos um.
Tem sido assim, de uns tempos pra cá. O tecido antes íntegro dos afetos vai a cada dia se esgarçando, criando furos. Menos um, menos um, menos um. “O homem é a soma dos seus mortos”, eu mesmo disse em um poema antigo. Mas, acrescento agora, esta soma se alimenta da diminuição dos nossos vivos.
Esse um de menos de hoje é Jader Nunes dde Oliveira, amigo de muito tempo, desde meus primeiros anos como professor da UFPB. Nas nossas greves no tempo da ditadura, era sua voz segura que nos apontava os caminhos da luta. Corrigia meus textos para os editoriais do boletim de greve e se deleitava com alguns achados que tornavam menos áspera a leitura nas assembleias.
Mais tarde, nos encontramos na tarefa árdua de reconstruir a Universidade a partir dos escombros deixados pela rapina e incúria dos nossos antecessores. Primeiro, como Pró-reitor de administração, depois, em dois mandatos como Reitor, sua obstinação pelo trabalho bem feito, sua intransigência contra a dilapidação do bem público deixaram seu nome na história da Instituição e na mira dos seus inimigos.
Jader morreu sem avisar. No seu gabinete de trabalho. Como qualquer um de nós, cuidava de suas coisas de aposentado com o sentimento justificado do dever cumprido. Amava sua família, cuidava de longe dos amigos. De vez em quando me mandava um e-mail comentando um texto meu.

Vou ficar sem saber o que fazia no momento em que foi fulminado pelo enfarto. Tenho apenas a certeza de que, de hoje em diante, sua falta será acrescida a esta sensação dolorosa de menos um. Até que um dia eu mesmo seja um de menos.