30 agosto 2010

Restos de mim


Numa bancada do meu escritório dormem uma máquina de escrever e um velho sistema de som. A máquina, uma Torpedo portátil que troquei por uma parte do meu décimo terceiro salário numa agência de propaganda, muito me ajudou a pagar o leite das crianças. O amplificador Yang e o toca-discos Gradiente tocaram boa parte da trilha sonora da minha vida. À máquina falta uma mola para impulsionar o cilindro. Ao toca-discos faltam agulhas para reposição.
Alguém pode muito bem me perguntar por que guardo essas tralhas que já não servem para nada. Eu respondo que servem, sim. Elas me servem menos para lembrar quem eu fui do que para mostrar o que serei. Restos, é o que elas são. Assim como serei resto qualquer dia desses.
Tenho o maior carinho pelos meus restos. Meu escritório mais parece o baú de uma velha caduca. Só de relance vejo uma mola industrial que lembra a torre de Pizza, uma lasca da pedra do Ingá, um pote de vidro cheio de rolhas, um monte de crachás de encontros e congressos em que estive.
Aprendemos desde o curso primário que ao resultado da conta de diminuir chama-se resto, excesso ou diferença. Alguns restos, é certo, são excessivos. Por isso os
largamos pelo caminho ou fazemo-los descer pelos canos de descarga (“É o pior de ti?”, perguntaria Drummond). Outros restos são o que fazem a nossa diferença, alimentam nossa memória, essa combinação insólita de traços que nos torna únicos em nossa maneira de lembrar e de esquecer.
Não tenho vocação pra Faraó. Não quero, portanto, ser enterrado com minhas tralhas. Já serei bastante como resto. Também não as quero deixar como herança pra ninguém. Cada um que guarde seus próprios restos. Seja qual for o destino que tenham minhas coisas, serei sempre grato por restarem comigo, me lembrando quem eu sou, que caminhos percorri, me apontando o que serei.
Um dia, todas elas vão se dispersar e perder o sentido que formam enquanto próximas entre si. Cada uma no seu canto, falará apenas de um esquecimento. Mas em cada uma delas restará um pouco de mim, pela marca das minhas mãos, pelo peso indelével dos meus olhos.

24 agosto 2010

Sob os olhos do fantasma




Há algum tempo, passei um fim de semana com o fantasma de Barreto em minha cola. Fui para minha casa em Cabedelo com a intenção de fazer a revisão do seu último livro de contos, Os colecionadores. Fátima, a mulher dele, tinha pedido a mim e a Valéria Rezende para editar o livro que ele tinha deixado já com índice e ficha catalográfica prontos. Junto com Valéria, tive o privilégio de fazer a leitura crítica de seus últimos livros. Era um privilégio que me divertia muito, pois lia antegozando as brigas homéricas que teríamos na hora de devolver os originais. Cada frase, cada palavra, cada vírgula era disputada a tapa, com argumentos nem sempre racionais e um jargão pouco imaginável entre cidadãos dados às lides das letras.
Desta vez, não foi diferente. E muito pior. O fantasma não esperou que eu terminasse a revisão. Chegava a qualquer momento e ficava espiando pelas minhas costas. Sentia sua apreensão toda vez que eu pegava o lápis para fazer uma anotação. Quando era um erro simples de digitação, o fantasma relaxava. Mas quando eu punha em dúvida uma construção mais redundante ou discordava de uma concordância, era sensível a sua muda irritação.
Por outro lado, sentia a vaidade do fantasma quando eu sublinhava uma construção de mestre: “Era uma sexta-feira e ele trazia na cara todos os expedientes da semana”. Fui eu que fiz, quase o ouvia dizer. Na passagem de “o vento varrendo a poeira do abandono”, senti um leve farfalhar nas folhas de um vaso próximo à rede onde eu lia. Acho que ele fez de propósito, para dizer que ainda sabia reconhecer a minha inveja. E fez cair uma folha quando viu que eu estava na parte em que a seca vinha “matando plantas, secando o capim, bebendo todo o molhado que havia”.
Quando terminei a leitura e sorri satisfeito pelo presente que havia recebido, senti que ele foi embora. Mas antes de sair, balançou com força o sino japonês pendurado no canto do terraço. Como quem diz, eu vou, mas volto em qualquer agosto, quando o Clube do Conto se reunir para lançar meu último livro de contos. Vai ser neste fim de semana. Ele vai estar lá.

18 agosto 2010

Modo de usar



Quando criei a coluna “Modo de ser & modo de usar” para o jornal Contraponto, previa que o “modo de usar” causaria estranheza em algumas pessoas. Foi o que aconteceu. Aqui e ali, me perguntam se essa história de usar não seria melhor aplicada às coisas do que às pessoas. Mas quem acompanha a coluna percebe que a maioria dos entrevistados compreende o espírito da coisa e responde sobre a melhor maneira dos outros aproveitarem o que eles produzem.

Quase todo mundo já ouviu falar nos valores de uso e de troca que Marx atribuiu aos objetos feitos pelo homem. Quando uma coisa vira uma mercadoria levada ao mercado, ela tem um valor de troca. Mas antes disso, ela tem um valor de uso, à medida que se torna útil a alguém. Uma pedra, por exemplo, pode prender uma pilha de papéis, enfeitar uma mesa de centro, sacrificar um passarinho ou uma iraniana. Pode também, utilidade suprema, surgir de repente no meio do caminho do poeta.

Não sei por que uma pessoa não teria valor de uso. Podemos não ser mercadoria, mas somos sempre de alguma utilidade para alguém. Pode ter coisa melhor do que se deixar usar e abusar pela pessoa amada? E a mãe que entrega o peito ao uso do filho? Por que temos medo de ser coisas? Em que somos melhores do que um pão ou um martelo?

Um psicanalista, por exemplo, dá-se ao uso pela transferência. Um pintor, um jornalista, valem pela utilidade do seu trabalho. Passam também a ter valor de troca, quando estipulam seu preço no mercado.

O estatuto de coisa, aliás, seria até honorífico para muita gente sem qualquer utilidade que anda por aí. Políticos, bandidos, simples parasitas que nunca bateram um prego numa barra de sabão.

A rigor, nossa entrada no mundo se dá “no meio das coisas” (in media res). É preciso ralar muito para adquirirmos um mínimo de consciência histórica que nos leve a descobrir um modo próprio de ser. No fim de tudo, voltamos a ser coisa, matéria orgânica de muita utilidade. E alguns de nós continuarão a ser coisas úteis na memória das gerações.



Imagem obtida em http://1.bp.blogspot.com/

12 agosto 2010

Ventania




Estamos em pleno agosto, mês das ventanias. Agosto sempre me serve como uma metáfora de passagem. Estamos saindo da estação das chuvas e prevendo o sol que virá com setembro. Mas até lá, teremos que nos haver com os ventos de agosto, que tanto nos chateiam com seus alvoroços, quanto nos alegram com a dança das saias.
Os ventos de agosto levam para longe os miasmas e o mofo criados nos aguaceiros. Seus redemoinhos denunciam o sujo das ruas, carrosséis de papel e folhas secas. Suas noites friorentas propiciam a reconciliação dos casais e atiçam os solteiros em busca de uma costela onde se esquentar.
Agosto irrita, às vezes. O cinzento do céu do inverno ainda teima em nos tapar o sol. As rajadas mais fortes do vento castigam com areia as pernas dos que já se aventuram à beira-mar. Foi o mês em que morreu Getúlio, em que cai o dia das sogras, em que dizem que a bruxa anda solta. Por falar nisso, neste agosto de 2010 vamos ter uma sexta-feira 13.
Mas se não ligarmos para esta fama de mês aziago, podemos viver em paz o que nos resta deste agosto. Enfrentemos com alegria a sua ventania. Vamos pedir para que ela leve, junto com os miasmas e o mofo, as nossas tristezas pelas notícias ruins acumuladas neste ano. Que o vento forte sopre para longe a maldade encruada no coração dos homens.
Pode parecer um desejo infantil, ilógico, esse meu. Mas é o que me ocorre pedir a agosto, este mês de passagem do peso das águas para o céu limpo sobre os campos e as praias. Que o seu mar revolto nos entregue às ondas calmas. Que sua ventania nos leve à brisa leve do verão. E quando estivermos torrando sob o calor da última quadra, lembremos com carinho dos momentos de terna intimidade que agosto nos deu.
Ilustração: Ventania, Parreiras 1888, Pinacoteca do Estado de São Paulo

02 agosto 2010

Está Faltando pai



Há muito que os psicanalistas vêm falando sobre a falência da função paterna. Não vou discutir teoria, pois este espaço é pequeno para assunto tão extenso e complicado. Prefiro falar do que vejo e escuto por onde ando: está faltando pai.
A primeira constatação é a mais óbvia. É cada vez maior o número de famílias composta de uma avó, algumas filhas e vários netos. Muitas vezes são essas avós que garantem o sustento da casa, já que as mães são muito jovens e não estão capacitadas para ganhar minimamente algum dinheiro. E este não é um fenômeno exclusivo das classes menos favorecidas. Existem variações da situação nas famílias de alguma posse.
A segunda constatação é a de que, mesmo quando a figura paterna está presente, sente-se a falta da autoridade paterna. Muito mais que a obediência, os filhos não aprenderam os mais mínimos princípios do companheirismo e da reciprocidade. Tenho dois exemplos vividos por mim. No primeiro, numa fila de supermercado, uma mãe pede a seu filho de uns dez anos que a ajude a carregar as compras. Junto com o olhar de desdém, veio a pergunta insolente: e por que eu deveria fazer isto? Aí eu não agüentei e parti pra cima do garoto dizendo que aquelas compras eram para a sua casa e ele tinha a obrigação de ajudar sua mãe. O menino arregalou os olhos, segurou os pacotes que podia e saiu atrás da mãe que me agradeceu meio envergonhada. Fui tratado como herói pelas pessoas das filas.
O segundo exemplo deu-se no terraço de minha casa. Comíamos ostras e eu me dei ao trabalho de abrir algumas delas para o filho de uma amiga, também próximo dos dez anos. Quem já abriu ostras sabe o trabalho que dá e os cortes a que as mãos estão sujeitas. Passado algum tempo, ao ver que o menino ia na cozinha, pedi que ele trouxesse uma cerveja de lá. Ouvi a mesma pergunta insolente: por que eu devia fazer isto. Não precisei responder nada. Só a minha cara foi suficiente para convencê-lo a me fazer o favor.
Lembrei de mais um. Estava tomando o café da manhã na pérgola de um hotel, à borda da piscina. Na mesa ao lado, a jovem mãe tomava seu café enquanto o jovem pai pastorava o júnior. Num certo instante, o rapaz olha apavorado para a mulher, pedindo socorro porque o bebê queria entrar na piscina. Dessa vez tentei ficar calado, esperando o desfecho da situação. Mas a mãe também não decidia o que fazer e olhou pra mim pedindo ajuda. Disse apenas para o rapaz tirar o menino da beira da piscina. Ele atendeu minha brilhante sugestão e me olhou agradecido.
O próximo domingo é o dia dos pais. Talvez seja um bom dia para refletirmos sobre o papel que esta figura opaca ainda representa na família contemporânea. Mulheres e filhos com a palavra.

01 agosto 2010

Só mais um pouco





Não vamos desistir ainda. Por mais tenebrosas que sejam as notícias sobre os nossos semelhantes, vamos agüentar mais um pouco. Mesmo que um delegado de polícia diga na televisão que o ser humano está ficando cada vez pior. E ele entende do assunto, vive o dia-a-dia da violência e do desamparo.
Se me perguntarem o porquê desta recaída de esperança, eu não vou saber responder. No fundo, é mais um desejo de que já tenhamos tocado no fundo do poço e agora só nos caiba voltar à tona da onde nos espera a luz da racionalidade.
É urgente que tomemos o caminho da razão. Pois somente ele poderá nos levar à construção da solidariedade. Por uma questão muito simples: a solidariedade não é um atributo natural do ser humano. Ela precisa ser construída a partir do instrumento da racionalidade.
Diferente dos outros animais, o ser humano abandonou o cuidado com a preservação da sua espécie, prendendo-se narcisicamente aos laços com os que lhe são imediatamente iguais: a família, o território, a cor da pele, a etnia, a classe social. O que não lhe for semelhante, torna-se um estrangeiro, um outro a ser afastado ou destruído.
Narcisismo é o nome da doença do homem contemporâneo. É impressionante o esforço que se faz para não sair deste círculo ilusório de conforto e segurança. Tudo o que nos forçar abandonar este lugar será visto como ameaçador. Deve, portanto, ser destruído. Qualquer coisa que reforce a nossa permanência neste cubículo fechado de nós mesmos será recebida com prazer. Daí as drogas, daí as gangues, daí as torcidas organizadas prontas para matar o portador da camisa do time adversário.
Sei que as notícias, vindas da mídia ou das conversas na cozinha, tendem a reforçar cada vez mais a nossa descrença no ser humano. Mas vamos agüentar mais um pouco. Só mais um pouco. Aqui e ali surgem notícias de grupos de pessoas trabalhando contra a corrente narcísica. Tem gente preocupada com o destino do planeta, com o destino das pessoas. Vamos acreditar só mais um pouco que a humanidade é um processo de construção coletiva. E que ainda há tempo para ajudarmos nesta construção.

Imagem: José Luiz Landeira. Obtida em Blog Em Dia Com a Cidadania.