28 janeiro 2008

Morta



Morta, sim. Dona Mocinha sabia que aquela ali não vivia mais. Uma alma veio avisar a ela no meio de um cochilo que deu. Esperou o menino acordar e contou: dessa vez tua mãe morreu de verdade, menino. Vai acordar teu pai.

25 janeiro 2008

Morte, mangas e cajus


Kessi Jones tinha nove anos. Saiu com dois irmãos e um amigo e foram apanhar frutas num sítio ali perto de casa. Digo apanhar frutas em vez de roubar, pois é natural dos meninos tirar frutas do pé, trepando nas árvores ou jogando pedras. Eu já fiz isso com meus irmãos e amigos e nunca me chamaram de ladrão.
Acontece que o mundo em que Kessi Jones vive não tem mais quase nada do mundo em que eu vivi. O mundo de Kessi Jones é impiedoso. E foi sem nenhuma piedade que o dono do sítio atirou na nuca de Kessi Jones.
E tem mais. O menino não morreu na hora. Mas assim mesmo foi colocado num carro e transferido para um lugar que não levantasse suspeita sobre os criminosos. O dono do sítio não estava só quando atirou.
Quando o pai de Kessi Jones foi avisado do crime, correu até o local. Tudo o que encontrou foram alguns cajus, umas mangas e uma poça de sangue.

20 janeiro 2008

O olhar dos amantes

Para Ana Lia e Flávio

Somos seres saudosos. Arrastamos pelo mundo o desejo do reencontro com a outra metade do andrógino da qual fomos apartados.
Somos seres de falta. Carregamos dentro de nós um vazio que pesa pelo que não carrega. E vasculhamos o mundo ávidos de encontrar quem nos livre do peso preenchendo esse vazio.
Somos seres famintos. Sentimos fome de um outro, não qualquer outro, mas de um que ao mesmo tempo seja nós.
Terrível deus, o dos amantes, que nos larga no mundo cegos e sozinhos, condenados a buscar, na cegueira e na solidão, a parte que nos foi negada desde a origem.
Mas como todos os deuses, o deus dos amantes também é bom. Bom e travesso. Pois ele mesmo nos dá a chave para sairmos do reino da fome, da falta e da saudade. Ele nos deixa gravada na retina, mesmo que nada saibamos dela, a imagem do ser que suprirá a nossa falta. E um dia, em um lugar qualquer, a qualquer hora, alguém irá surgir à nossa frente e se amoldará à imagem que trazemos na retina. E o trabalho do deus ficará completo se o outro nos trouxer também no fundo dos seus olhos.
O encontro dos amantes é feito deste reconhecimento. E o amor se manterá durante o tempo em que o outro se confirmar como aquele que nos foi destinado pela divindade travessa.
Queira esse deus que os amantes que hoje celebramos se reconheçam a cada dia, até que o tempo dissolva suas retinas e, com elas, a imagem do ser amado.

Praia do Cabo Branco, 19 de janeiro de 2008.

11 janeiro 2008

Modo de apanhar pássaros à mão


Neste livro de contos, Valéria lança o seu olhar maduro sobre as múltiplas possibilidades do ser no mundo, num estilo também multifacetado, em que a mão firme garante a presença forte da voz que dita as palavras.
O título do conto que nomeia o livro foi tirado do Lunário Perpétuo, de Jerônimo Cortês, editado em Portugal há mais de dois séculos, com informações de utilidades várias. Uma delas versa sobre o modo de apanhar pássaros à mão, muito útil aos poetas e lunáticos em geral.
Não entendi muito bem quando soube que o livro foi premiado com o selo de Altamente Recomendável para Jovens, conferido pela Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil. Pois li os contos de Valéria com meus olhos de adulto, os mesmos que devoraram o seu romance O vôo da guará vermelha. Depois fui perceber que cada página do livro está embebida em uma porção mágica de palavras que nos deixa atordoados, prontos para sermos apanhados, como meninos ou pássaros, pelas mãos sedutoras de Valéria.

05 janeiro 2008

Mudando de casca



















Não sei de outros bichos, mas a cobra e a cigarra, numa certa altura da vida, abandonam o invólucro de seus corpos e partem para novas jornadas, como quem troca de roupa. Não sou íntimo de cobras nem de cigarras, mas desconfio que elas devem sentir um certo incômodo até se livrarem da roupa velha e um certo desconforto até se habituarem com a roupa nova.
Não sei se estou mais pra cobra ou pra cigarra, o certo é que me sinto atualmente como quem está trocando de casca. Pelo estado geral do humor, devo estar exatamente no momento intermediário em que a casca velha já se despregou, mas a nova casca ainda não atingiu a consistência protetora necessária. A carne ao vento, o nervo exposto.
Claro que metaforizo. As marcas do tempo em minha pele continuam cá, indeléveis. A casca é outra. E bem mais grossa. Foi forjada pelos dias, meses, anos, décadas em que ouvi, aprendi, falei e fiz todas as coisas que me disseram que tinha de ouvir, aprender, falar e fazer para conseguir minimamente a satisfação de minhas necessidades.
Com o passar do tempo, porém, à medida em que supria minhas necessidades, descobri que também tinha direito a realizar meus sonhos. E gastei um bom tempo da vida aperfeiçoando o malabarismo de mesclar sonhos com necessidades.
Vivendo-se num mundo como o nosso, cedo ou tarde se aprende que existe uma máquina louca criando eternamente novas necessidades. Os sonhos, não. Os sonhos são criações nossas. E cada um de nós deve se responsabilizar pela realização de seus sonhos.
Largo, pois, no chão, a velha casca das antigas necessidades e espero paciente que se encorpe a nova casca com a qual deixarei meu rastro pelo chão, como cobra, e lançarei meu canto de vidro das copas das árvores, como cigarra.

Imagem obtida em
www.cicado.com/images/cicada-sunset