28 dezembro 2010

Tempo dos ipês



Existe um tempo dos relógios e dos calendários, uma espécie de utensílio criado pelo homem para fixar e controlar essa coisa inefável que escorrer entre os dois pontos incógnitos de sua existência. Mas existe outro tempo que o homem contempla. É o tempo do mundo, do sol e da lua, do estio e da chuva, do verde e do cinza, do quente e do frio. Dentro deste tempo, o homem se encontra como coisa entre coisas. Seu poder é nulo. Resta-lhe apenas submeter-se ao círculo das repetições, até que ele mesmo um dia não retorne. Outros retornarão.
É dentro deste tempo fora dos relógios que se repete, todo fim de ano, no coração da capital da Paraíba, a floração dos ipês. Quase toda a população da cidade passa ali pela lagoa. Todos os ônibus a contornam. Quem tem carro, vez por outra passa por ali. Um belo dia, de fato, um belo dia de dezembro, a alma dos passantes se espanta com as copas douradas dos ipês.
Aí acontece uma mágica na cidade. Quem chega ao trabalho pergunta: vocês viram os ipês da lagoa? Quem volta pra casa, anuncia: os ipês da lagoa floriram. Quem arranja um namoro convida: vamos ver os ipês da lagoa? Os antigos amores revivem sob o teto dourado dos ipês da lagoa.
Depois vem o vento e derruba as flores mais velhas. Uma parte do ouro cai do céu e vem forrar o chão das margens da lagoa. Então, a mágica se completa. As pessoas se rendem por completo ao milagre do amarelo.
Mais uma vez é tempo dos ipês no coração da cidade. Mais uma vez, o ouro dos ipês se instala no coração das pessoas. Daqui a pouco, as folhas voltarão a ocupar o espaço das flores. Sabemos disto e ficamos um pouco tristes pela passagem deste tempo. Mas nos despedimos dele com uma ponta de esperança de que estaremos aqui quando voltar o tempo dos ipês.

Foto: Mano de Carvalho

22 dezembro 2010

Os bichos, a palha



Não importa se é mito, não importa se é fato. Crente ou descrente, nenhum membro da cultura ocidental pode ficar alheio à figura do Cristo. Principalmente às imagens estabelecidas como o princípio e o fim da sua vida terrena. Dispensemos, por hora, a imagem da solidão e do sofrimento do Calvário. Vamos ficar com a imagem da origem, aquela cena simples do menino deitado na palha, velado pelos bichos, sob os olhos dos pais. Não precisamos de nenhum recurso à divindade para compreender o que tal cena nos quer dizer. Ali está representado, ao mesmo tempo, todo o desamparo humano e as possibilidades da sua reparação.
A marca do humano é o desamparo. Somos lançados prematuramente no mundo, antes que tenhamos alcançado o nível de desenvolvimento suficiente para fazer o que qualquer mamífero consegue: erguer-se sobre as patas e buscar o peito da mãe. Deixado as suas próprias custas, o ser humano não vinga. Para isto estão ali o pai e a mãe do menino. Para fazer por ele o que o seu desvalimento não permite. Mas o que representam, então, a manjedoura e sua palha, os animais e seu silêncio? Cada um de nós pode tentar sua própria interpretação. Para mim, a pobreza do cenário serve para dizer que não se precisa de muito para estar no mundo. Para o frio da noite do deserto, está ali o calor da palha. Para as tentações do poder dos homens, ali está a humildade dos bichos.
O menino vai crescer, vai deixar seus pais, vai correr o mundo pregando uma mensagem até hoje incompreendida. E quanto mais longe estiver deste cenário de origem, quanto mais certeza tiver da sua divindade, mais perto estará da imagem final da solidão e do sofrimento. Por isso, a cada ano, devemos nos lembrar que para sermos solidários em nosso desamparo de humanos, precisamos guardar em nós o calor da palha, a humildade dos bichos.

15 dezembro 2010

O fantasma do Urso




Crematório de Vila Alpina, São Paulo. Um homem pede informações detalhadas sobre os serviços e os custos. Tira o talão de cheques do bolso e paga à vista. Quando a atendente pergunta onde está o cadáver, o homem responde: “O cadáver sou eu.”
Alguns meses depois, no dia 19 de dezembro de 1990, com 77 anos, morre Rubem Braga, o Urso, dono de sua morte, assim como foi dono de sua vida.
Hoje, vinte anos depois, o fantasma do Urso vem se instalar às minhas costas e quase não consigo dar cabo desta crônica. Cada palavra, cada frase é imediatamente comparada ao estilo do mestre, denunciando minha fragilidade de cronista. E sinto que o Urso me desdenha por chamá-lo de mestre. Mas é bom que me desgoste e tire os olhos do meu texto. Só assim consigo escrever sem o peso do seu fantasma, sem ter que adivinhar seu focinho de leão marinho se contorcendo a cada frase mal escrita.
Agora, livre do fantasma, posso falar sem preocupação do encantamento que tive e tenho ao ler as crônicas do velho Braga. Posso chamá-lo assim, pois sou seu íntimo. Pelo menos ele é íntimo de mim. Pois nada do que li dele me foi estranho. Ele sabia falar de mim de uma forma tão simples, tão humana, revelando minhas grandes fraquezas e pequenas virtudes como se eu as tivesse vendo pela primeira vez.
Nos meus momentos de solidão e sofrimento, não é aos grandes poetas e filósofos a quem recorro. São os livros do Rubem que folheio, na busca de uma tirada irônica ou mal humorada sobre as chateações naturais da vida. E nos bons momentos de minha vida, é ainda ao Braga que recorro, para que ele me mostre o quanto tudo é transitório, efêmero. E foi desta transitoriedade e desse efêmero que Rubem Braga fez a sua obra.
Quando leio um texto de Rubem Braga, tenho a certeza de que foi um homem que o escreveu. Um homem, sim. Do gênero masculino. Um homem aberto para a compreensão dos seus semelhantes e cuidadoso com as peculiaridades do feminino.
Me desculpem, mas eu tenho que terminar esta crônica. Já ouço uns passos atrás de mim e sei que o fantasma do Urso volta para bisbilhotar meu texto. Tenho que desligar rápido o computador, pois não quero sentir o seu focinho se entortar de reprovação a tanto desperdício de palavras. Nem muito menos que perceba o nó na garganta traindo o sentimento pela sua falta.

08 dezembro 2010

Passatempo




O médico demorava a chegar e a conversa corria solta na sala de espera. Os velhos temas de sempre. O trânsito, a violência, o rápido passar do tempo. Aí, uma senhora disse suspirando: minha gente, já é Natal novamente. Parece que foi ontem que desmontei a decoração lá de casa. Perdi de vez a concentração no romance que tentava ler e voltei meus ouvidos para a conversa. Todos foram unânimes em concordar. O ano passara voando.
Não consigo imaginar como um ano voa, mas tenho que concordar: o ano passou voando. Meu gesto inaugural de ano novo é o momento solene em que passo o primeiro cheque do ano. A caneta treme na mão, devido ao esforço para não escrever o número do ano passado. E parece que foi ontem que paguei a feira de verduras e frutas com o primeiro cheque de 2010.
Mas não foi só este ano que passou voando. Pra mim, passa voando a vida inteira. Faz um pouquinho de tempo que eu era menino. Caçava lagartixas com baleadeira, brincava só, transportando formigas no meu avião de baquelite dourado, trocava tiros de espoleta com meu irmão. Indagorinha mesmo era rapaz. Ouvia os Beatles, Caetano, Chico e Gil. Bebia com os amigos, varava madrugadas escrevendo versos ruins. Foi quase ontem que casei, tive filhos, comprei um fusca.
Ainda procuro conceber a imagem do tempo voando. Teria asas, o tempo? Viajaria de primeira classe nos aviões? Acredito que não. Ainda prefiro a velha imagem do tempo como um rio. Um rio que nos pega de manhã e nos entrega quando chega a noite. Um rio com suas corredeiras, suas cachoeiras, suas enchentes gordas de tempestades. Algumas vezes manso, de águas frescas e margens sombreadas. Mas sempre um rio que devemos aprender a respeitar e aceitar as surpresas do seu percurso. Um rio que passa à revelia do nosso enfado, estejamos quebrando pedras, escrevendo crônicas ou jogando conversa fora nas salas de espera dos consultórios.

01 dezembro 2010

Zeu e seu olimpo




Pelas musas começar, pois é próprio das musas louvar os feitos dos deuses. E como louvaram as musas midiáticas os feitos destes deuses de bermudas e pés de chinelo que reinavam no olimpo de vielas e valetas. Como foram fartos os hinos cantando o poder de vida e morte das divindades mulatas sobre seus súditos aterrorizados. A farra das musas enaltecendo os bondes, enlouquecendo ao embalo dos funks, entregando-se ao torpor das ervas, das carreiras de pó e das pedras flamejantes servidas pelos bacos de motocicletas. E os raios divinos cruzavam os céus noturnos, recados dos senhores dos becos escuros para quem ousava enfrentar o seu poder.
Mas não há deuses que resistam ao tempo. Zeus, o grande Zeus Porta-Égide, exilou-se do seu trono do Olimpo. Vieram muitos deuses depois dele. Até chegar o tempo desta leva de demônios donos das encruzilhadas michas das favelas. Deuses marionetes, animados por um poder distante e alheio a esse olimpo mal-cheiroso.
Tome-se como emblema este Zeu. Este deus mutilado e humano que traz de batismo o nome de Elizeu Felício de Souza. Foi um dos responsáveis pela morte cruel do jornalista Tim Lopes. Participou da ação que derrubou um helicóptero da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Foi um dos comandantes da invasão do Morro dos Macacos, em Vila Isabel numa guerra entre facções de traficantes.
Como tantos outros pequenos deuses da sua laia, Zeu mostrou a sua verdadeira face quando foi preso pelas forças que tomaram de assalto o seu olimpo no alto do morro do Alemão. Uma cara amedrontada, de quem sabe do seu destino. Um deus vaiado pelas pessoas de bem a quem subjugava pelo terror. Um deus de calças mijadas, exposto ao ódio do mundo pelas câmeras de televisão.
Pobre Zeu. Pobres pequenos deuses. Vão mofar na cadeia ou fugir de volta para as escadarias das vielas fedorentas. Longe deles, homens de carne, osso, poder e muito dinheiro continuarão a criar e manipular novos fantoches com ares e insígnias de divindades.

27 novembro 2010

Os ratos de Los Angeles



Um homem morava com sua filha em Los Angeles. Ele tinha problemas mentais, e sua filha, provavelmente, também, pois adotou uma ratazana grávida como bicho de estimação. Com o tempo, aconteceu o inevitável: os filhotes se reproduziram como ratos e praticamente consumiram a casa do homem e da menina.
Neste ponto, entra na história a North Star Rescue, uma ONG dedicada à proteção dos animais. Pois é. A entidade fez isto mesmo que você está pensando. Recolheram os pobres animais sem teto em um enorme galpão e foram procurar lares adotivos para cerca de mil roedores. Se você não tiver um lugar confortável para instalar um casal destes amáveis bichinhos, pode mandar doações de alimentos. A ONG sugere que você envie cereais saudáveis que serão misturados com comidas para rato, macarrão, frutas secas e soja.
Não consigo distinguir a ironia embutida na notícia. Por um lado, a ONG pode estar querendo por a nu a nossa hipocrisia patente na predileção afetiva a certos animais (gatos, cachorros e mesmo os hamsters, primos sofisticados dos gabirus) enquanto outras espécies, como ratos, sapos, cobras e morcegos, são reservados ao nojo e à violência dos humanos.
Por outro lado, todo o episódio talvez venha revelar a falta de interesse que a mídia e a piedade humana dispensam a certas situações de desamparo. A notícia, publicada pela BBC, não traz nenhuma referência à intervenção de qualquer entidade, governamental ou não- governamental, em favor do pai e da filha que perderam a casa. Se não fosse a insólita intervenção da ONG, continuariam lá, no esquecimento reservado aos loucos, aos pobres, aos desabrigados.

18 novembro 2010

O paletó de Mia Couto




Quem me conhece de perto, sabe que sou um invejoso incorrigível. Tenho inveja, principalmente, de quem escreve bem. Seria natural, portanto, que eu tivesse inveja do estilo de Mia Couto. Ou da devoção com que é tratado pelas mulheres.
Nada disso. O que mais quero ter do Mia Couto é um paletó que ele usou na sessão de autógrafos da Flip de 2006. Além do corte perfeito, era feito com um tecido leve com finas listras azuis sobre um fundo branco. Nada mais adequado para o clima quente e úmido de verão em Parati.
Saí da fila de autógrafos me roendo. Nada mais adequado para mim naquele momento do que andar cabisbaixo pelas ruas coloniais. Coisa que poderia ser natural, pois todos ali têm que andar de cabeça baixa para evitar tropeções nas pedras desalinhadas dos calçamentos centenários. Mas minha cabeça baixa tinha outro motivo: a inveja. E minha inveja tinha um objeto claro: o paletó de Mia Couto.
Desde então, minha vida virou um tormento. Vasculhei as lojas de roupa de todos os lugares por onde passei de 2006 para cá. Vasculhei a internet, pedi a ajuda de amigos... Nada. Parece que só fizeram um único exemplar do paletó, exclusivamente para o escritor de Moçambique. A intenção era clara. Eu poderia, com bastante esforço, chegar a escrever tão bem quanto o Mia Couto. Poderia até alcançar a devoção de algumas mulheres. Mas o paletó, aquele paletó, eu não o teria jamais.
Este fim de semana, Mia Couto estará em João Pessoa. Vai conversar com o seu vasto público no auditório da Estação Cabo Branco. Claro que eu vou estar lá. Mas não garanto nada do que possa acontecer com ele se estiver usando o meu paletó.

07 novembro 2010

Vazio





Já disseram antes de mim, mas é como estivesse dizendo pela primeira vez: na medida em que envelhecemos, o mundo vai ficando cada vez mais vazio. Cada morte de um amigo nos deixa uma parte do mundo em escombros, como a explosão de um obus.
Hoje, meu mundo ficou mais vazio. Mais um pedaço de sua construção ficou em ruínas.
Morreu Luís Martinho Maia.
Maia será lembrado por muitos pelo mestre que formou gerações de psicanalistas na Paraíba. Será lembrado por muitos dos que beberam de sua sabedoria nas salas de aula do Departamento de Psicologia da UFPB. Mas só os que provaram da sua amizade poderão avaliar o verdadeiro sentido da sua perda.
Cada um, certamente, se lembrará com carinho de um ou muitos momentos de intimidade com o Maia. Eu tenho muitos momentos desses gravados na memória. Um deles, porém, me volta sempre à lembrança, como a maior oferta de cuidado que se possa receber de um amigo.
Eu e Glória tínhamos perdido um filho com cinco anos de idade. Foram muitos os amigos que cuidaram de nós nesse momento de franco desespero. Mas foi o Maia que fez por nós o que a dor nos impedia de fazer. Ele estava em nossa casa e acompanhou todo o nosso esforço em acalmar e botar para dormir o nosso filho mais novo. Então, ele tomou o menino nos braços, foi com ele para a calçada e lá ficou até que o nosso filho parou de chorar e dormiu.
É esta lembrança que me enche os olhos de lágrimas agora, em que tento escrever esta homenagem ao amigo morto. É esta lembrança que torna o meu mundo menos vazio, mesmo com o desaparecimento do amigo. E será esta lembrança que me salvará todas as vezes em que eu me sentir vazio de amigos.

31 outubro 2010

Caído do céu*




Acordou com o ronco do helicóptero, mas só abriu os olhos quando o pedaço de papel colorido pousou na sua cara. Tinha dormido entupido de cola e não entendia nada do que estava acontecendo. Só o cheiro da tinta no papel conseguiu chamar sua atenção. Viu a máquina metálica desaparecer do céu para as bandas do mar.
Só então afastou o papel da cara e notou as fotos coloridas dos monumentos. Não sabia ler, mas não importava. Bastava-se com a beleza daquelas formas esquisitas, lembrando coisas que já conhecia, mas cada uma mostrando uma novidade para seus olhos de menino. Duas daquelas, ele já conhecia. Mas só de passagem, quando zanzava em volta dos muros da universidade. Nunca tinha prestado atenção àqueles montes de ferro, um lembrando o diabo, outro parecendo um cavalo de brinquedo. Levantou-se e foi ver de novo os dois monumentos, mas desta vez demorando em cada linha, em cada curva, na textura do metal, na estranha harmonia do que primeiro parecia desarrumação.
Quis conhecer as outras peças mostradas pelas fotos. Perguntou aqui e ali e foi andando a pé para os giradores e praças onde as esculturas esperavam por seus olhos.
O dia já terminava quando ele viu os quatro pássaros dançando em roda na entrada do altiplano. Cimento, Eram de cimento, suas mãos informaram. E o menino se espantou com a possibilidade de uma coisa tão leve e tão bonita ser feita com a brutalidade do cimento.
Ia em direção à praia quando se lembrou que tinha passado o dia todo sem comer, mas também sem cheirar cola. E ficou intrigado com a falta de fome e de cansaço. Sentou-se na areia e ficou olhando o mar. Barriga vazia, mas os olhos cheios de uma coisa que talvez mais tarde ele soubesse se chamar poesia.

Foto: Ivan D'Paula


* Na última semana de campanha política, um helicóptero sobrevoou os bairros de João Pessoa despejando um chuva de panfletos com imagens de monumentos instalados em lugares públicos da cidade. Cada uma das obras era identificada com uma suposta entidade dos cultos afro-brasileiros, querendo fazer crer que um dos candidatos a governador, ex-prefeito da cidade, teria contraído obrigações com tais entidades com o intuito de ganhar as eleições.

26 outubro 2010

A féria





A aula de português se arrastava pela tarde, quando o professor ofertou a palavra férias como exemplo de substantivos que só se usam no plural, os esquisitos pluralia tantum. Resgatado da sonolência pelo que considerava um absurdo, discordei do professor, afirmando que existia a palavra féria. E dizia isso com a autoridade de um inveterado leitor de gibis, onde a coisa mais comum era um magote de bandidos invadir o saloon, limpar o caixa e depois sair atirando, sob os desmaios das dançarinas de can-can. “Eles levaram toda a féria da semana”, lamentava-se depois o dono do bar ao xerife que sempre chegava atrasado.


Mas professor é professor. Como toda autoridade que se preze, está sempre com a razão. Disse que eu estava falando besteira e continuou a desfilar sua sapiência, deixando-me entregue à abundante crueldade dos colegas.

Entrei em casa furioso e fui direto ao "Pequeno dicionário da língua portuguesa" que dormitava em cima do bufê, ao lado das palavras cruzadas do meu pai. E para lavar a minha alma, estava lá: Féria. Entre muitos significados, a singularíssima palavra queria dizer: “Em casa comercial, o dinheiro das vendas realizadas no dia, na semana, etc.”

Não fosse eu quem sou desde menino, me dobraria ao saber da autoridade, aceitaria a zombaria da classe como lição de humildade e nunca mais poria as mãos num gibi, esse subvertor de sonolências catedráticas. Fui salvo pelo amor à verdade, à minha verdade, pela obstinação em defendê-la, mesmo que para isso tenha de recorrer a uma arma tão plebéia como a palavra impressa num gibi.

Desse amor à verdade, deriva o meu amor às palavras. Um dia, um poeta cubano dizia numa conferência que não existiam palavras feias. Todas as palavras eram belas, afirmava, e pedia a confirmação d platéia. Discordei, dando como prova a palavra bochecha, que é uma palavra feia, por mais rosada e diáfana que seja a coisa por ela nomeada. Não sei se tinha razão, mas não importa. Feias ou bonitas, amo as palavras pelo muito que me servem de veículo em busca da verdade.

Sou um trabalhador da palavra, vivo delas, tiro delas meu sustento. Falando, escrevendo ou escutando, é das palavras, feias ou bonitas, que faço minha féria. Essa féria, também ela, convenhamos, palavra tão feinha, mas tão generosa que me salvou da mediocridade nos tempos de ginásio. E que me salva outra vez, agora, ao permitir que, divagando em torno dela, tenha cumprido o compromisso desta crônica.

Acabou




Até que enfim, acabou. Chega ao fim a mais infame campanha política que já testemunhei em toda minha quase longa vida. Já não aguentava mais o Serra com seu Paulo Preto e a Dilma com sua Erenice, ambos enrolados em piruetas verbais para se descontaminar da proximidade insalubre dos velhos companheiros de jornada. Já não aguentava as injúrias sem fundamento lançadas pelos candidatos estaduais contra aliados de anteontem.
Basta. Acabou. Sigam, os vitoriosos, para o inferno climatizado dos gabinetes ornados de mármore e cristal. Voltem, os derrotados, para o purgatório de suas varandas, lambendo as feridas enquanto esperam alguma nesga de poder proporcional ao número de votos obtidos.
Vitoriosos ou derrotados, saiam, por favor, da minha frente. Não agüento mais a gritaria, os sorrisos forçados, os abraços ruidosos, os dentes arreganhados do lobo por trás da máscara de cordeiro.
Quero de volta a normalidade dos crimes passionais, dos ajustes de conta do tráfico, dos acidentes naturais, da corrupção cotidiana que já não causa indignação, de tão banal.
Quero as ruas sem bandeiras, sem os entulhos dos santinhos jogados fora no rastro das carreatas. Quero de volta o lixo comum entulhado nas calçadas, os cruzamentos devolvidos aos mendigos, vendedores de bugigangas e limpadores de pára-brisas.
Fica, mais uma vez, o gosto amargo de que seremos nós, os eleitores, que pagaremos a conta alta dos gastos de vencedores e vencidos. Fica, mais uma vez, a certeza de que seremos solenemente esquecidos em nossos anseios de cidadania, até que chegue a próxima temporada de iniqüidades.
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22 outubro 2010

Sacristão ou diácono?




Sempre achei que esta eleição fosse para Presidente da República e, aqui na terrinha, para Governador do Estado. Por isso, esperava que a propaganda dos candidatos priorizasse os temas ligados às políticas públicas necessárias ao bem-estar do nosso povo e à estabilidade econômica do País. Mas pelo nível e pela qualidade dos argumentos, tudo me faz parecer que estou sendo convocado para eleger o sacristão da de paróquia ou o diácono de um templo evangélico.

Nunca antes na história deste País fui tão bombardeado por mensagens do mais baixo nível fundamentalista. Nunca o demônio foi tão veementemente convocado como cabo eleitoral. Nunca vi candidatos com tanto medo de arder no fogo do inferno. Ou de perder o voto dos eleitores que se deixam enganar pelo discurso dos pseudo-fundamentalistas.

A grande vedete da discussão, a nível nacional, é a questão da legalização do aborto. Ambos os candidatos estão na maior saia justa, pois, como pessoas esclarecidas que são, em algum momento de suas vidas devem ter se declarado a favor do aborto assistido. É divertido ver as piruetas verbais que são obrigados a fazer para desmentir suas antigas posições.

Os candidatos prestariam um imenso serviço à nação se declarassem que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública. Contra o argumento farisaico da defesa da vida, basta mostrar as estatísticas das mulheres que morrem ao se submeter ao trabalho dos clássicos fazedores de anjos, bastante conhecidos e freqüentados por muitos dos fundamentalistas quando querem se livrar da aporrinhação de um filho fora do casamento.

Quanto à baixaria a nível estadual, não me espantaria se o próprio diabo saísse vitorioso no segundo turno, tanta é a gritaria em torno do seu nome. Parece que os próprios candidatos esqueceram que o Estado é laico. Da forma como seus estrategistas de campanha dão ênfase à pureza de suas convicções religiosas e atacam as supostas ligações do adversário com o capeta, parece que a eleição é para algum cargo de prestígio duvidoso na igreja da esquina.

Por mais que o Serra se pareça com Dom Helder, não confio nele para administrar o apurado das esmolas da paróquia. E Dilma não me convence que saiba o menor versículo da Bíblia de cor. Portanto, parem de nos tratar como um rebanho de idiotas e mostrem seus verdadeiros programas de governo.

14 outubro 2010

O parto da terra


Um a um, a terra devolve à superfície os trinta e três mineiros que guardou no seu ventre por sessenta e oito dias. É impossível resistir ao poder simbólico do episódio que a mídia nos serve a domicílio.
Um a um, ficamos prisioneiros da tragédia que latejava no meio do deserto chileno. Todos nós ficamos grávidos destes homens que desceram aos infernos e ficaram prisioneiros de suas entranhas. De repente, fomos tomados por um medo atávico. O medo de ser enterrado vivo.
Era preciso resgatar aqueles homens. Não suportaríamos acompanhar a sua lenta agonia. Não suportaríamos, isto sim, a encenação da nossa própria angústia diante da ameaça da morte. Daí ter sido providencial a comunicação com os soterrados. Benditos celulares que nos trouxeram as vozes e depois as imagens da vida a quase setecentos metros de profundidade. Sofríamos, sim, mas estávamos vivos.
De repente, os técnicos se deram conta de que não existia um plano de resgate pronto para a situação. Tudo teve que ser improvisado. Existia, sim, uma tecnologia disponível, mas estava dispersa em diversos dispositivos de diferentes instituições. De repente, o mundo se dá conta de que o valor da vida dos mineiros, como a de qualquer outro trabalhador em qualquer lugar do mundo, é inferior ao das riquezas produzidas por suas mãos.
Diz a mídia que o trabalho nas minas não será mais o mesmo depois do acidente chileno. Não acredito. Daqui a pouco todos nós esqueceremos o sofrimento dos mineiros do deserto de Atacama, assim que uma catástrofe nova atrair os olhos da mídia. Mas enquanto isto não acontece, permanecem em nossos olhos as cenas comoventes desses trinta e três mineiros paridos pela terra. Esses que viveram mais de dois meses de inferno e de lá nos ensinaram o poder da solidariedade e da esperança.

05 outubro 2010

Resultado das eleições




Quem saiu às ruas na segunda-feira depois das eleições viu a primeira manifestação de falta de cuidado dos políticos com o bem público: as toneladas de lixo espalhadas pelas ruas, restos inúteis do material de campanha dos candidatos vitoriosos ou derrotados.

É fácil identificar, pela cor predominante nos monturos, qual foi o átila que passou por ali nos últimos momentos da campanha. Tanto faz. Todos eles tratam nossas ruas com o mesmo desrespeito. É apenas um aviso de como nos tratarão quando forem eleitos. E não poluem apenas nossos olhos. Violam nossos tímpanos com carros de som a todo volume, com suas mentiras viçosas e seus jingles de gosto duvidoso.

Mas a poluição maior, a violação mais patente, é a falta total de escrúpulos dos partidos na escolha dos candidatos mais aptos a abocanhar um fatia de poder. E não estou falando dos palhaços, das mulheres frutas, das celebridades da hora ou dos doadores de sopa. Falo dos fichas-sujas, dos velhacos, dos filhos diminutivos das velhas raposas.
Vamos ter segundo turno de votação para os cargos executivos aos níveis federal e estadual. Vamos ter que agüentar mais de vinte dias de uma disputa que dificilmente nos trará qualquer novidade. A não ser, é claro, uma baixaria mais cabeluda que possa jogar mais um pouco de lama no adversário. Seria bom que os nossos candidatos orientassem os seus partidários a respeitar os nossos olhos e ouvidos. E eles próprios respeitassem a nossa inteligência de eleitor.
Não é com bandeiras, santinhos e adesivos que se conquista um eleitor consciente. Deixem claro quais são suas propostas de governo. E deixem nossa cidade livre da sujeira e do barulho que apenas confundem a nossa capacidade de decidir com serenidade em quem devemos votar.

04 outubro 2010

Anti-sintaxe





Piedade pelo morto
que não sabe que vai morrer.
Ou não quer saber.

Vaidade do morto antecipado
que não se deixa ver
enquanto morre.
O morto não se quer feio.
O morto não se quer morto.

O morto antecipa-se à morte.
Encena a morte
Enquanto espera a cena.

Não vai ver.
Não vai estar.
Estar é ser.
E não será.

As últimas palavras
Rondam a memória que morre.
Estáticas. Anti-sintáticas.


Ronaldo Monte
04.10.2010

03 outubro 2010

Abismos e tropas


“O País está à beira do abismo”. Estas palavras podem não fazer o menor sentido para o pessoal mais novo, mas elas foram ouvidas à exaustão pela turma da minha geração. Ao menor vislumbre de avanço social, vinha um espertalhão bradar que estávamos rolando abismo abaixo. A contrapartida era a ameaça sinistra dos generais: “vamos botar a tropa nas ruas”. Maus tempos aqueles, em que a vontade popular valia menos do que um golpe de cassetete. Péssimos tempos, em que os tanques decidiam em lugar das urnas.
Não, não estou com nenhuma síndrome de pessimismo. Não há nada no horizonte que possa ameaçar o atual processo de consolidação da nossa democracia. Toco no assunto para lembrar a algumas pessoas que implicam com o atual processo democrático, que existe uma alternativa. Mas já a conhecemos e não a queremos de volta.
Se atualmente somos obrigados a suportar uma penca de candidatos de moral duvidosa, alguns, inclusive, juridicamente declarados imorais, somos os únicos responsáveis pela mudança deste cenário que nos dá voltas ao estômago. O voto, e somente o voto, é o instrumento que temos para fazer uma faxina nesse celeiro de fichas enodoadas.
O País afastou-se da beira do abismo. Mas isto não elimina o grande abismo que divide as nossas classes sociais. E ainda nos sobra o abismo moral que separa o nosso povo dos seus supostos representantes.
Ainda temos muito que fazer para enxotar de vez a metáfora do abismo do nosso vocabulário político e social. Basta, a cada eleição, botar a tropa nas ruas. Não aquela de antigamente, uniformizada e subserviente. Mas esta tropa colorida e ruidosa que sabe o poder do voto que tem nas mãos.

28 setembro 2010

Deserto



Passei os primeiros anos da minha vida adulta proibido de votar para presidente, governador e prefeito. Tinha fome de voto. Com a reconstrução democrática, nunca deixei de votar nem uma vez. Nem sempre meus candidatos ganhavam, mas fazia bem à saúde participar da vida política em toda plenitude. Carreatas, passeatas, panfletagens, faixa no portão, muro pintado, adesivos no carro. Por fim, a procissão familiar até a zona eleitoral, as ruas atapetadas com o lixo democrático dos santinhos.
Este ano estou quase proibido de votar. Não encontro a quem confiar meu voto com o mesmo entusiasmo dos outros anos. Não precisam me lembrar que estou envelhecendo. Tenho encontrado muita gente jovem com a mesma preocupação. Estamos saturados de escândalos, conchavos, jogadas sujas para manchar a honra dos adversários, se é que ainda existe alguém de honra imaculada.
O cenário político atual é um vasto deserto ético, onde o vale-tudo é a regra para pilhar o oásis do poder. Aqui e ali, é claro, resistem as exceções que mal servem para confirmar a regra. O respeito pelo direito e pelo bem público desertou das instituições. O empate da votação do Supremo que definiria uma posição sobre a chamada lei da ficha limpa foi a mais recente e cabal prova de que a opinião pública não merece o menor respeito. A pouco mais de uma semana das eleições, e os eleitores ainda se viam ameaçados pela possibilidade de vitória dos bandidos travestidos de representantes do povo.
Grandes são os desertos, cantava Fernando Pessoa. Grande, enorme, gememos nós, é este deserto ético que teremos que atravessar até chegarmos às urnas. É bom não nos deixarmos iludir pelas miragens que costumam nos seduzir no horizonte inalcançável das promessas impossíveis.

22 setembro 2010

Morte e inferno

O deputado Luiz Couto está condenado à morte. Seu erro foi ter denunciado todos os nomes dos envolvidos com o crime organizado na Paraíba, quando presidiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito, encerrada em 2005. Foram mais de trezentos nomes apontados, entre políticos, juízes, promotores e policiais. Gente graúda que exigiu a cabeça de Luiz Couto. Sem nenhuma metáfora. Depois do assassinato do advogado Manoel Mattos, um dos depoentes na CPI, o deputado Luiz Couto foi anunciado como o próximo da lista de extermínio. Faz muito tempo que o deputado vive sob a proteção da Polícia Federal.

O padre Luiz Couto está condenado ao inferno. Seu pecado foi ter defendido o fim do celibato e o uso da camisinha, numa entrevista ao programa “Congresso em Foco”. Por isso, está proibido de celebrar missas pelo arcebispo da capital da Paraíba. O padre Luiz Couto sempre esteve ao lado dos oprimidos e injustiçados. Suas idéias sempre contrariaram o bando mais conservador da igreja católica, que tem no atual arcebispo um de seus mais ferrenhos representantes. Nada mais natural, portanto que seja condenado à excomunhão e o conseqüente fogo do inferno.

O deputado Luiz Couto e o padre Luiz Couto não são duas pessoas distintas. Quem conhece o discurso e a prática do padre, sabe o que pode esperar do parlamentar. E vice-versa. Mas não são apenas os oprimidos e injustiçados que conhecem a coragem deste homem íntegro que se chama Luiz Couto. As forças retrógradas do coronelismo, laico ou clerical, também a conhecem. Por isso o querem morto e condenado ao inferno. Mas nós, que nos sentimos representados pelo parlamentar e incitados pelo religioso, queremos Luiz Couto vivo. E nada precisamos desejar aos seus inimigos. Estes já estão condenados pela história à morte política e ao inferno moral.

12 setembro 2010

Chapola e Pedro Paulo



Chapola é “de menor”, tem dezessete anos. O que não o impede de ser conhecido como “o terror do Renascer”, bairro da periferia de João Pessoa. Chapola foi preso sob a acusação de chefiar uma gang responsável por vários assassinatos e assaltos ligados ao tráfico de drogas da Grande João Pessoa.

A prisão de Chapola teria passado desapercebida pelas páginas policiais se a polícia não tivesse encontrado em seu celular um vídeo em que ele botava um cigarro de maconha na boca de uma criança de três anos.

Pedro Paulo Dias não tem apelido. Mas atendia prontamente quando o chamavam de governador. Nada mais normal, pois foi governador do Amapá duas vezes. Pedro Paulo foi preso pela Polícia Federal por chefiar uma gang que desviava dinheiro público, principalmente do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Com ele foram presas mais treze pessoas. Dentre elas encontra-se Waldez Góes, ex-governador e candidato a senador pelo Amapá e o presidente do Tribunal de Contas do Estado, José Júlio de Miranda Coelho. Como era um negócio de família, também foram presas a namorada do governador e a mulher do ex-governador. Tudo gente fina.

Existe um elo entre as gangs de Chapola e Pedro Paulo. O dinheiro do Fundeb desviado pela turma do governador era para pagar professores e comprar merenda escolar e material de manutenção para creches e colégios do ensino médio.

Quer dizer que, se o dinheiro desviado no Amapá e em vários estados do País fosse devidamente aplicado, o Chapola certamente estaria terminando o ensino médio e a criança de três anos estaria numa creche decente, longe do assédio perversamente precoce dos traficantes.

Posso antever que, dentro de pouco tempo, Chapola vai ser encontrado morto num boteco do Renascer ou num matagal ali por perto. É possível também que a criança a quem ele apresentou o primeiro baseado se transforme no próximo “terror do Renascer”, repetindo o manjado círculo da morte.

Mas o que mais me dá raiva é saber que, daqui a poucos dias, a gang do Pedro Paulo vai voltar para suas mansões em seus carros importados e continuar com a imunda produção em escala industrial de novos chapolas.

Dói mais ainda saber que é nas comunidades Renascer plantadas na periferia das grandes cidades que moram os eleitores de criminosos como Pedro Paulo e Waldez Góes.

30 agosto 2010

Restos de mim


Numa bancada do meu escritório dormem uma máquina de escrever e um velho sistema de som. A máquina, uma Torpedo portátil que troquei por uma parte do meu décimo terceiro salário numa agência de propaganda, muito me ajudou a pagar o leite das crianças. O amplificador Yang e o toca-discos Gradiente tocaram boa parte da trilha sonora da minha vida. À máquina falta uma mola para impulsionar o cilindro. Ao toca-discos faltam agulhas para reposição.
Alguém pode muito bem me perguntar por que guardo essas tralhas que já não servem para nada. Eu respondo que servem, sim. Elas me servem menos para lembrar quem eu fui do que para mostrar o que serei. Restos, é o que elas são. Assim como serei resto qualquer dia desses.
Tenho o maior carinho pelos meus restos. Meu escritório mais parece o baú de uma velha caduca. Só de relance vejo uma mola industrial que lembra a torre de Pizza, uma lasca da pedra do Ingá, um pote de vidro cheio de rolhas, um monte de crachás de encontros e congressos em que estive.
Aprendemos desde o curso primário que ao resultado da conta de diminuir chama-se resto, excesso ou diferença. Alguns restos, é certo, são excessivos. Por isso os
largamos pelo caminho ou fazemo-los descer pelos canos de descarga (“É o pior de ti?”, perguntaria Drummond). Outros restos são o que fazem a nossa diferença, alimentam nossa memória, essa combinação insólita de traços que nos torna únicos em nossa maneira de lembrar e de esquecer.
Não tenho vocação pra Faraó. Não quero, portanto, ser enterrado com minhas tralhas. Já serei bastante como resto. Também não as quero deixar como herança pra ninguém. Cada um que guarde seus próprios restos. Seja qual for o destino que tenham minhas coisas, serei sempre grato por restarem comigo, me lembrando quem eu sou, que caminhos percorri, me apontando o que serei.
Um dia, todas elas vão se dispersar e perder o sentido que formam enquanto próximas entre si. Cada uma no seu canto, falará apenas de um esquecimento. Mas em cada uma delas restará um pouco de mim, pela marca das minhas mãos, pelo peso indelével dos meus olhos.

24 agosto 2010

Sob os olhos do fantasma




Há algum tempo, passei um fim de semana com o fantasma de Barreto em minha cola. Fui para minha casa em Cabedelo com a intenção de fazer a revisão do seu último livro de contos, Os colecionadores. Fátima, a mulher dele, tinha pedido a mim e a Valéria Rezende para editar o livro que ele tinha deixado já com índice e ficha catalográfica prontos. Junto com Valéria, tive o privilégio de fazer a leitura crítica de seus últimos livros. Era um privilégio que me divertia muito, pois lia antegozando as brigas homéricas que teríamos na hora de devolver os originais. Cada frase, cada palavra, cada vírgula era disputada a tapa, com argumentos nem sempre racionais e um jargão pouco imaginável entre cidadãos dados às lides das letras.
Desta vez, não foi diferente. E muito pior. O fantasma não esperou que eu terminasse a revisão. Chegava a qualquer momento e ficava espiando pelas minhas costas. Sentia sua apreensão toda vez que eu pegava o lápis para fazer uma anotação. Quando era um erro simples de digitação, o fantasma relaxava. Mas quando eu punha em dúvida uma construção mais redundante ou discordava de uma concordância, era sensível a sua muda irritação.
Por outro lado, sentia a vaidade do fantasma quando eu sublinhava uma construção de mestre: “Era uma sexta-feira e ele trazia na cara todos os expedientes da semana”. Fui eu que fiz, quase o ouvia dizer. Na passagem de “o vento varrendo a poeira do abandono”, senti um leve farfalhar nas folhas de um vaso próximo à rede onde eu lia. Acho que ele fez de propósito, para dizer que ainda sabia reconhecer a minha inveja. E fez cair uma folha quando viu que eu estava na parte em que a seca vinha “matando plantas, secando o capim, bebendo todo o molhado que havia”.
Quando terminei a leitura e sorri satisfeito pelo presente que havia recebido, senti que ele foi embora. Mas antes de sair, balançou com força o sino japonês pendurado no canto do terraço. Como quem diz, eu vou, mas volto em qualquer agosto, quando o Clube do Conto se reunir para lançar meu último livro de contos. Vai ser neste fim de semana. Ele vai estar lá.

18 agosto 2010

Modo de usar



Quando criei a coluna “Modo de ser & modo de usar” para o jornal Contraponto, previa que o “modo de usar” causaria estranheza em algumas pessoas. Foi o que aconteceu. Aqui e ali, me perguntam se essa história de usar não seria melhor aplicada às coisas do que às pessoas. Mas quem acompanha a coluna percebe que a maioria dos entrevistados compreende o espírito da coisa e responde sobre a melhor maneira dos outros aproveitarem o que eles produzem.

Quase todo mundo já ouviu falar nos valores de uso e de troca que Marx atribuiu aos objetos feitos pelo homem. Quando uma coisa vira uma mercadoria levada ao mercado, ela tem um valor de troca. Mas antes disso, ela tem um valor de uso, à medida que se torna útil a alguém. Uma pedra, por exemplo, pode prender uma pilha de papéis, enfeitar uma mesa de centro, sacrificar um passarinho ou uma iraniana. Pode também, utilidade suprema, surgir de repente no meio do caminho do poeta.

Não sei por que uma pessoa não teria valor de uso. Podemos não ser mercadoria, mas somos sempre de alguma utilidade para alguém. Pode ter coisa melhor do que se deixar usar e abusar pela pessoa amada? E a mãe que entrega o peito ao uso do filho? Por que temos medo de ser coisas? Em que somos melhores do que um pão ou um martelo?

Um psicanalista, por exemplo, dá-se ao uso pela transferência. Um pintor, um jornalista, valem pela utilidade do seu trabalho. Passam também a ter valor de troca, quando estipulam seu preço no mercado.

O estatuto de coisa, aliás, seria até honorífico para muita gente sem qualquer utilidade que anda por aí. Políticos, bandidos, simples parasitas que nunca bateram um prego numa barra de sabão.

A rigor, nossa entrada no mundo se dá “no meio das coisas” (in media res). É preciso ralar muito para adquirirmos um mínimo de consciência histórica que nos leve a descobrir um modo próprio de ser. No fim de tudo, voltamos a ser coisa, matéria orgânica de muita utilidade. E alguns de nós continuarão a ser coisas úteis na memória das gerações.



Imagem obtida em http://1.bp.blogspot.com/

12 agosto 2010

Ventania




Estamos em pleno agosto, mês das ventanias. Agosto sempre me serve como uma metáfora de passagem. Estamos saindo da estação das chuvas e prevendo o sol que virá com setembro. Mas até lá, teremos que nos haver com os ventos de agosto, que tanto nos chateiam com seus alvoroços, quanto nos alegram com a dança das saias.
Os ventos de agosto levam para longe os miasmas e o mofo criados nos aguaceiros. Seus redemoinhos denunciam o sujo das ruas, carrosséis de papel e folhas secas. Suas noites friorentas propiciam a reconciliação dos casais e atiçam os solteiros em busca de uma costela onde se esquentar.
Agosto irrita, às vezes. O cinzento do céu do inverno ainda teima em nos tapar o sol. As rajadas mais fortes do vento castigam com areia as pernas dos que já se aventuram à beira-mar. Foi o mês em que morreu Getúlio, em que cai o dia das sogras, em que dizem que a bruxa anda solta. Por falar nisso, neste agosto de 2010 vamos ter uma sexta-feira 13.
Mas se não ligarmos para esta fama de mês aziago, podemos viver em paz o que nos resta deste agosto. Enfrentemos com alegria a sua ventania. Vamos pedir para que ela leve, junto com os miasmas e o mofo, as nossas tristezas pelas notícias ruins acumuladas neste ano. Que o vento forte sopre para longe a maldade encruada no coração dos homens.
Pode parecer um desejo infantil, ilógico, esse meu. Mas é o que me ocorre pedir a agosto, este mês de passagem do peso das águas para o céu limpo sobre os campos e as praias. Que o seu mar revolto nos entregue às ondas calmas. Que sua ventania nos leve à brisa leve do verão. E quando estivermos torrando sob o calor da última quadra, lembremos com carinho dos momentos de terna intimidade que agosto nos deu.
Ilustração: Ventania, Parreiras 1888, Pinacoteca do Estado de São Paulo

02 agosto 2010

Está Faltando pai



Há muito que os psicanalistas vêm falando sobre a falência da função paterna. Não vou discutir teoria, pois este espaço é pequeno para assunto tão extenso e complicado. Prefiro falar do que vejo e escuto por onde ando: está faltando pai.
A primeira constatação é a mais óbvia. É cada vez maior o número de famílias composta de uma avó, algumas filhas e vários netos. Muitas vezes são essas avós que garantem o sustento da casa, já que as mães são muito jovens e não estão capacitadas para ganhar minimamente algum dinheiro. E este não é um fenômeno exclusivo das classes menos favorecidas. Existem variações da situação nas famílias de alguma posse.
A segunda constatação é a de que, mesmo quando a figura paterna está presente, sente-se a falta da autoridade paterna. Muito mais que a obediência, os filhos não aprenderam os mais mínimos princípios do companheirismo e da reciprocidade. Tenho dois exemplos vividos por mim. No primeiro, numa fila de supermercado, uma mãe pede a seu filho de uns dez anos que a ajude a carregar as compras. Junto com o olhar de desdém, veio a pergunta insolente: e por que eu deveria fazer isto? Aí eu não agüentei e parti pra cima do garoto dizendo que aquelas compras eram para a sua casa e ele tinha a obrigação de ajudar sua mãe. O menino arregalou os olhos, segurou os pacotes que podia e saiu atrás da mãe que me agradeceu meio envergonhada. Fui tratado como herói pelas pessoas das filas.
O segundo exemplo deu-se no terraço de minha casa. Comíamos ostras e eu me dei ao trabalho de abrir algumas delas para o filho de uma amiga, também próximo dos dez anos. Quem já abriu ostras sabe o trabalho que dá e os cortes a que as mãos estão sujeitas. Passado algum tempo, ao ver que o menino ia na cozinha, pedi que ele trouxesse uma cerveja de lá. Ouvi a mesma pergunta insolente: por que eu devia fazer isto. Não precisei responder nada. Só a minha cara foi suficiente para convencê-lo a me fazer o favor.
Lembrei de mais um. Estava tomando o café da manhã na pérgola de um hotel, à borda da piscina. Na mesa ao lado, a jovem mãe tomava seu café enquanto o jovem pai pastorava o júnior. Num certo instante, o rapaz olha apavorado para a mulher, pedindo socorro porque o bebê queria entrar na piscina. Dessa vez tentei ficar calado, esperando o desfecho da situação. Mas a mãe também não decidia o que fazer e olhou pra mim pedindo ajuda. Disse apenas para o rapaz tirar o menino da beira da piscina. Ele atendeu minha brilhante sugestão e me olhou agradecido.
O próximo domingo é o dia dos pais. Talvez seja um bom dia para refletirmos sobre o papel que esta figura opaca ainda representa na família contemporânea. Mulheres e filhos com a palavra.

01 agosto 2010

Só mais um pouco





Não vamos desistir ainda. Por mais tenebrosas que sejam as notícias sobre os nossos semelhantes, vamos agüentar mais um pouco. Mesmo que um delegado de polícia diga na televisão que o ser humano está ficando cada vez pior. E ele entende do assunto, vive o dia-a-dia da violência e do desamparo.
Se me perguntarem o porquê desta recaída de esperança, eu não vou saber responder. No fundo, é mais um desejo de que já tenhamos tocado no fundo do poço e agora só nos caiba voltar à tona da onde nos espera a luz da racionalidade.
É urgente que tomemos o caminho da razão. Pois somente ele poderá nos levar à construção da solidariedade. Por uma questão muito simples: a solidariedade não é um atributo natural do ser humano. Ela precisa ser construída a partir do instrumento da racionalidade.
Diferente dos outros animais, o ser humano abandonou o cuidado com a preservação da sua espécie, prendendo-se narcisicamente aos laços com os que lhe são imediatamente iguais: a família, o território, a cor da pele, a etnia, a classe social. O que não lhe for semelhante, torna-se um estrangeiro, um outro a ser afastado ou destruído.
Narcisismo é o nome da doença do homem contemporâneo. É impressionante o esforço que se faz para não sair deste círculo ilusório de conforto e segurança. Tudo o que nos forçar abandonar este lugar será visto como ameaçador. Deve, portanto, ser destruído. Qualquer coisa que reforce a nossa permanência neste cubículo fechado de nós mesmos será recebida com prazer. Daí as drogas, daí as gangues, daí as torcidas organizadas prontas para matar o portador da camisa do time adversário.
Sei que as notícias, vindas da mídia ou das conversas na cozinha, tendem a reforçar cada vez mais a nossa descrença no ser humano. Mas vamos agüentar mais um pouco. Só mais um pouco. Aqui e ali surgem notícias de grupos de pessoas trabalhando contra a corrente narcísica. Tem gente preocupada com o destino do planeta, com o destino das pessoas. Vamos acreditar só mais um pouco que a humanidade é um processo de construção coletiva. E que ainda há tempo para ajudarmos nesta construção.

Imagem: José Luiz Landeira. Obtida em Blog Em Dia Com a Cidadania.

25 julho 2010

Terroir






Para Fátima e Waldir

Conversar fiado é uma arte. Sexta-feira de noite, então, é a mais necessária e imprescindível. Principalmente se você estiver na cozinha da casa dos amigos comendo pão com café, ambos feitos na hora. E se depois houver a possibilidade de rolar um vinho italiano, aí a conversa fiada se torna uma questão de sobrevivência.

Uma boa conversa fiada é aquela que se confunde com uma sessão coletiva de livre associação. Deixa-se a prosa à deriva, seguindo para onde bem quiser, ao sabor das mínimas circunstâncias e ressonâncias.

Sexta-feira passada, por exemplo, estávamos na tal cozinha, já no momento de passar do pão com café para o vinho italiano. Numa das prateleiras do armário havia um rótulo de manteiga, resto de uma viagem à França, anunciando que o produto era de "terroir". Não importa muito quem primeiro tocou no assunto, mas a minha posição era a de que a classificação de terroir só era aplicável aos vinhos. O dono da casa, especialista em contrariar as minhas afirmações categóricas, falou qualquer coisa sobre a complexidade do termo, que ia muito além da simples demarcação geográfica de uma região agrícola. A dona da casa, por sua vez, que adora me ver derrotado em minhas opiniões, foi lá dentro e voltou com uma página impressa do Wikipedia que me dava um pouco de razão, mas puxava a brasa para a sardinha do marido. Minha mulher não disse nada, mas eu adivinhava o quanto estava saboreando a derrota iminente da minha posição.

Não me lembro bem do final da discussão. Aliás, a boa conversa fiada é aquela que não leva a conclusão nenhuma. É uma estratégia para se voltar ao assunto numa próxima reunião. O importante é que o tema seja instigante o suficiente para se passar do café ao vinho e deste ao licor ou coisa mais perigosa que nos entregue ao abandono do convívio despretensioso.

Independente de qualquer definição, havia uma compreensão comum sobre o significado da palavra terroir. O território, o rincão que nos tornava iguais em nossas diferenças era o lugar mesmo em que discutíamos. Aquela cozinha era o nosso terroir, assim como são todos os lugares em que os amigos se encontrem para jogar conversa fora e se querer bem.

14 julho 2010

A vida farta



Quando penso em Mário Assad, a primeira imagem que me vem à lembrança é o seu ar de contentamento em nos mostrar a variedade dos pratos que ele mesmo preparava para servir aos amigos. Seus aniversários e os de Margarida eram concorridíssimos, mas não somente pela mesa farta. Era outra fartura que nos levava a sua casa. Era o seu jeito bonachão, sua forma de apertar os olhos, tomando gosto na fala que ia se espremendo até ser tomada pela farta gargalhada.

No trabalho, não era diferente. Trabalhar, para Mário Assad, era trabalhar muito. E muito bem. Não vou discorrer sobre seus títulos nem me alongar sobre seus méritos. Isso já foi dito por gente mais competente do que eu. Quero só lembrar que ele foi o pioneiro na implantação da internet na Paraíba, a partir da UFPB. E, para isso, trabalhou muito. Levou muito tempo para ser compreendido. Gastou muita saliva para ser ouvido. Mas sua paciência também era farta. E o tempo se encarregou de enfeitar com fios azuis os corredores dos departamentos da Universidade.

Passada a primeira semana da sua perda, a aceitação gradativa da sua falta obriga a memória a nos suprir daquilo que a sua presença nos servia. Além da mesa farta, Mário nos supria de alegria, nos contagiava de entusiasmo, prendendo nosso interesse ao discorrer sobre as coisas mais complicadas da física ou da informática. A contrapartida era se munir de tempo para escutá-lo. Pois ele, adivinhando nossa ignorância, caprichava nos detalhes, transbordava nos exemplos. Falava muito. E apaixonadamente. Se você deixasse, falava horas sobre os temas que dominava. E era bom ouvi-lo. Não só pelo que se aprendia, mas pelo que se curtia da sua fala cortada pela gradação que ia do sorriso, progredia para o riso, passava pela risada e explodia na gargalhada.

Mário nos deixou aos 58 anos de idade. Podemos dizer que foi uma vida breve, pelo muito que ainda podia nos dar. Mas temos todos a certeza de que foi uma vida farta, pelo muito que ofertou à sua mulher, a seus filhos e a seus amigos.

03 julho 2010

No outro dia

Acordar de manhã e sentir a casa vazia. Como um viúvo. Um deixado pela mulher. Ainda ontem a sala estava cheia. Um ar denso de esperança dificultava a respiração. Como das outras vezes, a cerveja estava gelada, os petiscos davam água na boca, a cachacinha botava ordem nos nervos. Obedecendo ordens da minha mulher, já havia pedido desculpas antecipadas aos convidados menos íntimos pelos palavrões que viriam a ser emitidos nas próximas duas horas por mim e meu irmão.
As previsões de todos os entendidos garantiam uma vitória certa. Não havia com o que se preocupar. Os primeiros 45 minutos deram a certeza de que a sala explodiria de alegria dali a pouco. Bebemos e comemos, todos, com um vasto sorriso nos lábios.
Aí, veio o segundo tempo. Aí o tempo fechou. A impressão que me deu é que um bando de zumbis tomou o corpo dos nossos jogadores. Claro que não eram eles que estavam em campo. Pelo menos não eram os mesmos do primeiro tempo.
A sala já não era a mesma do primeiro tempo. Olhares aflitos, expressões de desespero, impotentes impropérios lançados sem alvo definido. Depois, o gosto amargo do almoço engolido por obrigação, grossos goles de cerveja empurrando o feijão goela abaixo. Quase intocada a enorme travessa de macarronada feita para os vencedores famintos.
Acordar de manhã e dar de cara com cenário da derrota. A sala vazia, a solidão da bandeira sobre a pequena mesa colocada em lugar estratégico de frente para a televisão de LCD comprada a prestação só para ver a copa.
Acordar de manhã e ter certeza de que uma copa não é tão importante assim. O Brasil está aí, às vésperas das eleições. O mundo está aí, às vésperas de uma nova convulsão. Todos nós estamos aí, como bons brasileiros, prontos para exercer a nossa eterna profissão: a esperança.

29 junho 2010

Os ambulantes do nada


Eles andam sem rumo, atolados na lama. Perambulam em volta e em meio ao nada. O nada em que se transformou tudo o que tinham de seu. Suas tralhas, suas casas, suas ruas, seu lugar. Alguns perderam seus filhos, seus parentes, seus bichos. Tudo em volta é perda. Uma perda úmida, lamacenta, fétida.
Treme a voz calejada de militares que viveram a miséria do Haiti. Lá, a terra tremeu. Aqui, a terra sangrou. Um sangue estranho, de cor barrenta, transbordou das veias dos rios espalhando o horror da hemorragia.
Santana do Mundaú, Muquém, Cortês, Branquinha. Nomes que antes lembravam lugares de origem de muitas vidas, transformaram-se em pontos de uma geografia pastosa e mortífera. Em Pernambuco e Alagoas, pelo menos 46 pessoas morreram. Isto sem contar os desaparecidos, cerca de 540, habitantes do limbo e da esperança.
São mais de cem mil desabrigados. Mais de cem mil ambulantes vagando entre o nada e a coisa nenhuma. Proibidos de ver o lugar, os viventes e as coisas que lhes pertenciam, os olhos retiram-se vasculhando o nada. Impedidos de pisar com segurança o chão firme em que habitavam, os pés marcham para lugar nenhum. Sem ter para onde ir nem onde ficar, as pessoas entram em suspensão. O olhar ausente denuncia a fuga do espírito daquele corpo sem rumo.
As caras são de desespero, de derrota frente à fatalidade, nem tanto imprevisível assim. Se prestarmos atenção às falas, às roupas e ao que restou nos entulhos encharcados, veremos que, em sua grande maioria, estes são os eternos flagelados de qualquer parte do mundo. Pobres, é o que eles são. Moravam nas beiradas dos rios, por não ter lugar mais seguro onde morar. É assim, na maioria dos desastres “naturais”. Cheias, secas, terremotos, maremotos, qualquer que seja o flagelo, são sempre eles, os pobres, que vemos perambular sobre os vastos campos do nada.

21 junho 2010

A permanência de um nome


“O escritor José Saramago morreu”. Foi esta a mensagem que minha nora mandou para o celular de uma das minhas filhas. Era preciso deixar bem claro qual Saramago estava morto. Para isto serviam as palavras “escritor” e “José” na mensagem. Para que não se pensasse que um outro Saramago tinha morrido. No caso, o meu cachorro, que procura honrar o nome que lhe dei, ganhando o mundo ao menor descuido com o portão.
Conto isto para mostrar o quanto o nome Saramago é íntimo da minha casa. Muitas vezes por dia é repetido, tantas vezes quantas o incorrigível vira-latas transgrida as regras da boa convivência entre as espécies.
Foi esta intimidade com o nome, reflexo da minha intimidade com os livros de Saramago, que levou algumas pessoas a ligar para mim, me consolando pela morte do escritor. Vã tentativa, pois ninguém se consola de tamanha perda.
Não temos mais o narrador insólito que nos mostrava as feridas eternas da desumanidade como se as víssemos pela primeira vez. Não temos mais quem amplifique no seu texto a voz tímida dos oprimidos de todos os tempos e lugares. Nem mais o olhar ao mesmo tempo irônico e benevolente sobre as nossas fraquezas e presunções.
Desamarra-se de vez a jangada de pedra. A rocha de consciência e compaixão deriva agora pelas águas do sem tempo. Ser pedra e flutuar. Duro e leve de uma só vez. Talvez seja esta a lição que ele quis nos transmitir. Era isto, talvez, que nos dizia o seu olhar mesclado de ironia e esperança.
“O escritor José Saramago morreu”, dizia a mensagem no celular da minha filha. Mas em minha casa, seu nome ainda será por muito tempo repetido. Toda vez que esse outro Saramago, honrando o nome que lhe dei, desafiar com ousadia as ordens e os limites que tentamos impor à sua liberdade de cão.

16 junho 2010

De copa em copa




Não são meus aniversários. São as copas do mundo que me dão a certeza de que estou ficando velho. Constato isto por conta de um fenômeno intrigante: a cada copa os jogadores vão ficando mais novos.
A primeira copa que guardo na memória foi a de 58, na Suécia. Tinha onze anos e era natural que meus olhos de menino vissem Gilmar, Nilton e Djalma Santos, Didi, Vavá e Zagalo como verdadeiros senhores de idade. Mesmo Pelé, com seus dezoito anos, era gente grande. Enorme, por sinal.
Na copa de 70, no México, eu já estava com meus 23 anos e a turma de Rivelino, Jairzinho, Gérson e Tostão já pareciam meus irmão mais velhos. Além disso, já não eram ídolos tão distantes como os de 58, que só sabíamos de seus feitos pelo rádio e nas fotos dos jornais. Agora já existia a televisão e eles jogavam praticamente dentro de nossas salas. Éramos íntimos.
Para não gastar muito o tempo do leitor, chego logo a esta copa de 2010. Olho para essa meninada cantando o hino nacional e não consigo ter confiança em nenhum deles. Uns fedelhos, mal saídos dos cueiros, não me oferecem a segurança dos velhos ídolos de 58. Aqueles, sim. Eram senhores idosos, que traziam na cara as marcas das lutas renhidas nos campeonatos estaduais. Sim, pois naquele tempo todo mundo vivia aqui mesmo, no Brasil. Você acompanhava a evolução deles toda semana no Canal 100, uma aula de transmissão esportiva que passava antes de cada filme nos cinemas dos bairros.
Elano e Maicon que me perdoem, mas eu esperava um pouco mais desta meninada. Seria bom que fizessem uma forcinha para não decepcionar a mim, que já tenho idade de ser pai de qualquer um deles. Afinal já estou na minha décima sexta copa e não sei como vou estar daqui a quatro anos.

08 junho 2010

Dia de quê?



Contam que um sexólogo, no fim de uma palestra, resolveu fazer uma rápida pesquisa entre a platéia e perguntou quem ali fazia sexo apenas uma vez por ano. Eu, eu, gritou feliz uma velhinho lá do fundo da sala. O sexólogo, intrigado, perguntou: mas como o senhor, que só faz sexo uma vez por ano, está tão feliz? Porque é hoje, respondeu o velhinho. É hoje.

Lembrei dessa história porque deu na televisão que um deputado federal, por não ter nada mais importante com que se preocupar, criou um projeto de lei propondo o dia nacional do sexo. Tal medida, acredita o genial autor da proposta, ajudaria a derrubar tabus, estimulando a discussão sobre as formas seguras e prazerosas de praticar o ato sexual. Como se um único dia do ano fosse suficiente para se derrubar toda a carga de preconceitos e ignorância que pesa sobre a mais elementar das práticas humanas.

Não sei quais as verdadeiras intenções do deputado, mas já imagino o que pode acontecer se tal data for instituída. Vai ter promoção em sex-shop, distribuição gratuita de camisinha, evangélicos furibundos anunciando o fim do mundo, campeonato de ficadas nos parques das cidades, overdoses de guaraná em pó, desabastecimento de viagra.

Aliás, eu sei quais as verdadeiras intenções do deputado. É aparecer na mídia, fazer de conta para os seus eleitores que está trabalhando, deixar patente a condição de otário de todos os cidadãos que pagamos o seu salário e todas as benesses que o cargo lhe propicia.

O que pode ser feito para coibir a ação de parlamentares que, em vez de honrarem o cargo que ocupam em nosso nome, desperdiçam tempo e dinheiro com propostas tão idiotas como a criação do dia do macarrão, da verdade, e da gratidão? Como se já não bastassem o dia do amigo, da sogra e da baiana do acarajé.

O que pode ser feito é uma mobilização nacional para se criar um projeto de lei que institua o dia da vergonha na cara. Pelo menos nesse dia, seria proibido a qualquer parlamentar tripudiar sobre a nossa cidadania. Para que o dia consagrado ao sexo possa ser curtido calmamente pelo velhinho da anedota lá de cima.

05 junho 2010

A força estranha


Em cuba, 150 jovens furaram o bloqueio dos agentes de segurança para assistir ao primeiro show do Los Aldeanos, cujos raps falam de questões sociais proibidas de ser discutidas em Cuba, como a prostituição, a desigualdade e a corrupção.

Em um templo budista de 400 anos, no centro de Tóquio, o monje Kansho Tagai mistura o rap com os sutras, versos que condensam os ensinamentos do budismo.

Se existe um ritmo universal, hoje, este ritmo é o rap. Não vou chamá-lo de música para não ferir os ouvidos mais delicados, já que o termo é a abreviatura de rhythm and poetry, ou seja, ritmo e poesia. A melodia fica por conta de cada um dos cantores que se viram para encaixar nos compassos os versos quilométricos que em sua grande maioria denunciam a violência na periferia das grandes cidades. No Brasil, ele serve para discutir os problemas das comunidades pobres e marginalizadas, dando voz e visibilidade àqueles que de outra forma estariam fadados ao esquecimento e à morte.

O rap surgiu na Jamaica, nos anos 60, de onde foi exportado para os bairros negros de Nova York. Aí juntou-se à street dance e ao grafite para formar a cultura hip-hop. Daí ganhou, literalmente, o mundo. E pelas últimas notícias que temos, a sua força encontra aliados das mais diversas ideologias.

Quem andou torcendo o nariz para o rap, vai ter que se acostumar com o este som rústico e essas letras quilométricas. Coisa de negro, como disse um deles. Coisa dos homens, acrescento eu, que procuram uma forma de expressão para essa angústia do desenraizamento. Coisa deste mundo, que só será salvo da extinção com o auxílio do ritmo, da poesia e um pouco de música, se possível.

26 maio 2010

Ração humana






Já não bastava terem transformado nossa alimentação num problema médico. Agora, ela está sendo tratada como um assunto veterinário. Sim, pois desde que me entendo de gente, ração sempre foi uma coisa a ser dada aos animais. Já deu a ração do gado?, pergunta o dono ao vaqueiro. Já botou a ração do cachorro?, pergunta a mãe para o filho.
Confesso que me assustei quando vi pela primeira vez uma referência à ração humana. A primeira imagem que me veio à cabeça foi um homem nu, de quatro, atacando sofregamente uma tigela na área de serviço de um apartamento.
Sei que muita gente não presta mais atenção ao sabor daquilo que come. Qualquer coisa serve, desde que lhes encha o bucho e os mantenha em pé até o fim do dia. Tem a galera da coxinha com refrigerante e a turma da granola com linhaça dourada. Sem contar com os vegetarianos de carteirinha e os bons e velhos macrobióticos que ainda sobrevivem por aí. Talvez essas tribos não ofereçam resistência à tal ração humana.
Felizmente, ainda tem gente, como eu, que permanece adepta de uma boa refeição. Mesmo que se pegue leve durante a semana, com uns grelhados sóbrios, modestas saladas e pouca carne vermelha, a mesa toma outras cores entre o jantar da sexta e o almoço do domingo.
Nesse intervalo vale umas massas, peixadas ao coco, filés ao molho madeira, feijoadas, favadas, siris, caranguejos e muito camarão. Sem falar nos mais diversos acompanhamentos líquidos, que devem ir do aperitivo ao digestivo sem queimar nenhuma estação.
Desde o jantar íntimo das sextas, até as ruidosas mesas dos sábados, são os pratos feitos com amor e arte que promovem a confraternização entre nós, os comensais.
É certo que a língua não perdoa e já chamou nossa comida de repasto e antepasto. Mas ainda assim, pastar é comer livremente, provando aqui e ali dos vários capins, como os bois e os carneiros. Comer ração é se alimentar insossa e apressadamente, como os cachorros neuróticos dos apartamentos.

20 maio 2010

Fim de maio. Fim de mundo


Estou cada vez mais convencido de que o mundo vai acabar. Pode nem ser em 2012, mas que vai acabar, isso vai. Já estamos quase no fim de maio e o tempo ainda não refrescou.
Maio, como todo mundo sabe, é o mês das flores, precedido pelas apressadas rosas de abril, do Caymmi. Isto quer dizer que, por esta época do ano, o tempo deveria estar fresco, caminhando para o friozinho de junho. Daí, não deveria faltar flores para os altares de Nossa Senhora e os buquês do dia das mães.

Mas andaram soltando umas bombas, queimando umas matas, liberando uns gases, fazendo umas fumaças e o tempo foi mudando aos poucos. Até que, de repente, nos apercebemos que já é fim de maio e não temos flores.

E se fosse só a falta de flores, a gente dava um jeito, mandando vir algumas toneladas delas made in china. O problema é que chove onde devia fazer sol, torra o sol onde devia estar chovendo. Morre gado de calor no Nepal, pega-se peixe com a mão nas ruas das cidades de Santa Catarina. Na Europa, morre-se aos milhares de frio no inverno e morre-se de calor, também aos milhares, no verão.

Não sou nenhum especialista em ecologia para falar com conhecimento de causa sobre as mudanças climáticas. Mas tenho o mal costume de prestar atenção nas coisas. Estive no fim de abril em São Paulo e fui preparado para enfrentar as quedas bruscas de temperatura que costumam pegar de surpresa até os mais ferrenhos paulistanos. Pois durante os dez dias que fiquei por lá, fez um calor patoense. A vantagem é que descobri que os paulistanos, principalmente as paulistanas, tem pescoços, ombros, colos, costas, pernas, como todos nós daqui.
Voltando a maio e às flores, ainda restam uns bons dez dias. Pode ser que até lá caia uma chuva boa, suba um cheiro bom de terra molhada e brote pelos cantos algumas flores. Precisamos delas, como Noé precisou do ramo de oliveira no bico do pássaro. Como um signo, uma promessa que ainda não será desta vez. Que talvez consigamos ir além de 2012. Que talvez consigamos criar juízo e cuidar deste planeta que teve o azar de acolher a espécie mais louca de todas que possam existir no universo.

16 maio 2010

Certas coisas



Cada vez mais tendo a crer que as coisas têm vida própria. Certas coisas aparecem e desaparecem de nossas vidas sem que saibamos de onde vem nem para onde vão. Não estou falando das canetas bic, pois já se sabe que estas são sondas enviadas por extra-terrestres para bisbilhotar nossas vidas. Falo de coisas esquisitas, que temos certeza de que não gastaríamos um tostão para comprá-las. De repente, elas aparecem em nossa mesa de trabalho, na mesa de cabeceira ou dentro da gaveta dos talheres.
Agora mesmo estou de frente para uma coisa esquisita, que não tenho a menor suspeita de quando a comprei ou ganhei. Ela chama-se Microtape e supostamente é fabricada pela Tipp-Ex. Tem um formato pouco anatômico e uma cor azulada meio repugnante. Intrigado pela sua presença em minha mesa, abri sua tampa de plástico fosco e me deparei com uma espécie de cabeçote do qual saíam duas fitas (o que justifica o nome Microtape), uma branca e outra transparente. Nenhuma das duas era adesiva.
Passei a me sentir na obrigação de encontrar alguma utilidade para tal buginganga. Nestes tempos de exaustão dos recursos planetários, deve-se pensar muitas vezes antes de jogar alguma coisa fora. Para alguma coisa a coisa haveria de servir.
Não consegui inventar nenhum uso para ela. Talvez, em caso de necessidade, sirva para amarrar o cabelo de uma de minhas netas. Ou estancar pequenas hemorragias. Ou, ainda, amarrar os caules das flores para que se armem em buquê. Pelo menos para uma coisa me serviu o encontro inusitado com esta coisa. Estava sem assunto para a crônica e ela piscou para mim lá do canto da mesa. Eis para que servem certas coisas.

05 maio 2010

Os poetas da lua


Toda criança nasce poeta. Para os seus olhos, tudo é espanto, novidade. Sua leitura do mundo ainda não foi domada pela sintaxe careta da linguagem usada como moeda de troca. As circunstâncias é que podem embotar esse modo novo de ver o mundo.

Felizmente, minha neta ainda não foi treinada a pensar que não se pode pegar a lua com as mãos e dar de presente à sua mãe. Mais felizmente ainda, ela não está sozinha neste modo de apreender o mundo. Algumas mães, minhas amigas, vieram me contar como o pensamente poético também habita a alma de seus filhos.

Teresa Madeira me conta que sua filha Raquel, “quando era pequenininha, na rede da varanda da casa do Bessa, fez uma canção pra Lua que dizia assim: ‘A lua é tão grande, tão barrigudinha, a lua só vive no colo da nuvem’.”

Vitória Lima diz que não esquece “ a noite em que passeava numa praça de Maceió com meu filho e ele, se dando conta da lua nova, gritou surpreso: ‘Olha mãe, a lua rasgada no céu!’ As crianças são poetas naturais que elaboram metáforas e metonímias sem terem consciência desses processos complicados dos poetas. Para eles, tudo é poesia”, arremata Vitória, que também é poeta.


Valéria Tarelho me manda um conto escrito em 2003, após seus filho Álvaro “se espantar com a lua faltando um pedaço e falar que ‘tudo bem, quando o vovô chegar ele pega a cola e conserta’."

Cada um de nós carrega ainda esse antigo poeta que fomos um dia. É preciso apenas saber despertá-lo. E um bom começo é, de vez em quando, se despojar da sintaxe careta da linguagem e deixar que o mundo nos mostre novas conexões entre as coisas. A melhor forma de deixar isto acontecer é voltar a olhar para o céu nas noites de lua. Crescente, cheia ou minguante, a lua sempre encontrará um meio de nos causar espanto. Esse espanto, acredite, é pura poesia.


Ilustração: Veruschka Guerra




29 abril 2010

O poema da lua


Existem muitos poemas dedicados à lua. Não há poeta, creio, que já não tenha cometido ao menos um verso comovente para a lua. Desconfio que até os uivos dos lobos e cachorros sejam poemas dedicados à lua cheia.

É angustiante acompanhar a espera da noite por Álvaro de Campos, (talvez o mais fértil da legião que habita Fernando Pessoa), no poema “Dois excertos de odes”. Toda a angústia, nossa e do poeta, se acaba quando “no alto céu ainda claramente azul (...) a lua começa a ser real.”

Como ao poeta, a lua cheia sempre nos pega de surpresa. Não há quem não se espante ao vê-la, de repente, começando a ser real. Foi semelhante espanto, certamente, que minha neta sentiu na última lua cheia. E foi tanto espanto, que ela o quis repartir com sua mãe. Do alto dos seus dois anos e meio, levantou as mãos para apanhar a lua. Com a lua nas mãos, voltou-se para a mãe e lhe deu a lua de presente.

Sem saber de metáforas ou metonímicas, a menina fez a lua ser mais real em suas mãos do que era real solta no céu. Ela transformou a lua em presente e a deu de presente a quem mais amava.

Naquele momento, pelas mãos da menina, foi composto o mais belo poema que a lua cheia possa merecer.


Ilustração: Veruschka Guerra