A aula de português se arrastava pela tarde, quando o professor ofertou a palavra férias como exemplo de substantivos que só se usam no plural, os esquisitos pluralia tantum. Resgatado da sonolência pelo que considerava um absurdo, discordei do professor, afirmando que existia a palavra féria. E dizia isso com a autoridade de um inveterado leitor de gibis, onde a coisa mais comum era um magote de bandidos invadir o saloon, limpar o caixa e depois sair atirando, sob os desmaios das dançarinas de can-can. “Eles levaram toda a féria da semana”, lamentava-se depois o dono do bar ao xerife que sempre chegava atrasado.
Mas professor é professor. Como toda autoridade que se preze, está sempre com a razão. Disse que eu estava falando besteira e continuou a desfilar sua sapiência, deixando-me entregue à abundante crueldade dos colegas.
Entrei em casa furioso e fui direto ao "Pequeno dicionário da língua portuguesa" que dormitava em cima do bufê, ao lado das palavras cruzadas do meu pai. E para lavar a minha alma, estava lá: Féria. Entre muitos significados, a singularíssima palavra queria dizer: “Em casa comercial, o dinheiro das vendas realizadas no dia, na semana, etc.”
Não fosse eu quem sou desde menino, me dobraria ao saber da autoridade, aceitaria a zombaria da classe como lição de humildade e nunca mais poria as mãos num gibi, esse subvertor de sonolências catedráticas. Fui salvo pelo amor à verdade, à minha verdade, pela obstinação em defendê-la, mesmo que para isso tenha de recorrer a uma arma tão plebéia como a palavra impressa num gibi.
Desse amor à verdade, deriva o meu amor às palavras. Um dia, um poeta cubano dizia numa conferência que não existiam palavras feias. Todas as palavras eram belas, afirmava, e pedia a confirmação d platéia. Discordei, dando como prova a palavra bochecha, que é uma palavra feia, por mais rosada e diáfana que seja a coisa por ela nomeada. Não sei se tinha razão, mas não importa. Feias ou bonitas, amo as palavras pelo muito que me servem de veículo em busca da verdade.
Sou um trabalhador da palavra, vivo delas, tiro delas meu sustento. Falando, escrevendo ou escutando, é das palavras, feias ou bonitas, que faço minha féria. Essa féria, também ela, convenhamos, palavra tão feinha, mas tão generosa que me salvou da mediocridade nos tempos de ginásio. E que me salva outra vez, agora, ao permitir que, divagando em torno dela, tenha cumprido o compromisso desta crônica.
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