25 julho 2010

Terroir






Para Fátima e Waldir

Conversar fiado é uma arte. Sexta-feira de noite, então, é a mais necessária e imprescindível. Principalmente se você estiver na cozinha da casa dos amigos comendo pão com café, ambos feitos na hora. E se depois houver a possibilidade de rolar um vinho italiano, aí a conversa fiada se torna uma questão de sobrevivência.

Uma boa conversa fiada é aquela que se confunde com uma sessão coletiva de livre associação. Deixa-se a prosa à deriva, seguindo para onde bem quiser, ao sabor das mínimas circunstâncias e ressonâncias.

Sexta-feira passada, por exemplo, estávamos na tal cozinha, já no momento de passar do pão com café para o vinho italiano. Numa das prateleiras do armário havia um rótulo de manteiga, resto de uma viagem à França, anunciando que o produto era de "terroir". Não importa muito quem primeiro tocou no assunto, mas a minha posição era a de que a classificação de terroir só era aplicável aos vinhos. O dono da casa, especialista em contrariar as minhas afirmações categóricas, falou qualquer coisa sobre a complexidade do termo, que ia muito além da simples demarcação geográfica de uma região agrícola. A dona da casa, por sua vez, que adora me ver derrotado em minhas opiniões, foi lá dentro e voltou com uma página impressa do Wikipedia que me dava um pouco de razão, mas puxava a brasa para a sardinha do marido. Minha mulher não disse nada, mas eu adivinhava o quanto estava saboreando a derrota iminente da minha posição.

Não me lembro bem do final da discussão. Aliás, a boa conversa fiada é aquela que não leva a conclusão nenhuma. É uma estratégia para se voltar ao assunto numa próxima reunião. O importante é que o tema seja instigante o suficiente para se passar do café ao vinho e deste ao licor ou coisa mais perigosa que nos entregue ao abandono do convívio despretensioso.

Independente de qualquer definição, havia uma compreensão comum sobre o significado da palavra terroir. O território, o rincão que nos tornava iguais em nossas diferenças era o lugar mesmo em que discutíamos. Aquela cozinha era o nosso terroir, assim como são todos os lugares em que os amigos se encontrem para jogar conversa fora e se querer bem.

14 julho 2010

A vida farta



Quando penso em Mário Assad, a primeira imagem que me vem à lembrança é o seu ar de contentamento em nos mostrar a variedade dos pratos que ele mesmo preparava para servir aos amigos. Seus aniversários e os de Margarida eram concorridíssimos, mas não somente pela mesa farta. Era outra fartura que nos levava a sua casa. Era o seu jeito bonachão, sua forma de apertar os olhos, tomando gosto na fala que ia se espremendo até ser tomada pela farta gargalhada.

No trabalho, não era diferente. Trabalhar, para Mário Assad, era trabalhar muito. E muito bem. Não vou discorrer sobre seus títulos nem me alongar sobre seus méritos. Isso já foi dito por gente mais competente do que eu. Quero só lembrar que ele foi o pioneiro na implantação da internet na Paraíba, a partir da UFPB. E, para isso, trabalhou muito. Levou muito tempo para ser compreendido. Gastou muita saliva para ser ouvido. Mas sua paciência também era farta. E o tempo se encarregou de enfeitar com fios azuis os corredores dos departamentos da Universidade.

Passada a primeira semana da sua perda, a aceitação gradativa da sua falta obriga a memória a nos suprir daquilo que a sua presença nos servia. Além da mesa farta, Mário nos supria de alegria, nos contagiava de entusiasmo, prendendo nosso interesse ao discorrer sobre as coisas mais complicadas da física ou da informática. A contrapartida era se munir de tempo para escutá-lo. Pois ele, adivinhando nossa ignorância, caprichava nos detalhes, transbordava nos exemplos. Falava muito. E apaixonadamente. Se você deixasse, falava horas sobre os temas que dominava. E era bom ouvi-lo. Não só pelo que se aprendia, mas pelo que se curtia da sua fala cortada pela gradação que ia do sorriso, progredia para o riso, passava pela risada e explodia na gargalhada.

Mário nos deixou aos 58 anos de idade. Podemos dizer que foi uma vida breve, pelo muito que ainda podia nos dar. Mas temos todos a certeza de que foi uma vida farta, pelo muito que ofertou à sua mulher, a seus filhos e a seus amigos.

03 julho 2010

No outro dia

Acordar de manhã e sentir a casa vazia. Como um viúvo. Um deixado pela mulher. Ainda ontem a sala estava cheia. Um ar denso de esperança dificultava a respiração. Como das outras vezes, a cerveja estava gelada, os petiscos davam água na boca, a cachacinha botava ordem nos nervos. Obedecendo ordens da minha mulher, já havia pedido desculpas antecipadas aos convidados menos íntimos pelos palavrões que viriam a ser emitidos nas próximas duas horas por mim e meu irmão.
As previsões de todos os entendidos garantiam uma vitória certa. Não havia com o que se preocupar. Os primeiros 45 minutos deram a certeza de que a sala explodiria de alegria dali a pouco. Bebemos e comemos, todos, com um vasto sorriso nos lábios.
Aí, veio o segundo tempo. Aí o tempo fechou. A impressão que me deu é que um bando de zumbis tomou o corpo dos nossos jogadores. Claro que não eram eles que estavam em campo. Pelo menos não eram os mesmos do primeiro tempo.
A sala já não era a mesma do primeiro tempo. Olhares aflitos, expressões de desespero, impotentes impropérios lançados sem alvo definido. Depois, o gosto amargo do almoço engolido por obrigação, grossos goles de cerveja empurrando o feijão goela abaixo. Quase intocada a enorme travessa de macarronada feita para os vencedores famintos.
Acordar de manhã e dar de cara com cenário da derrota. A sala vazia, a solidão da bandeira sobre a pequena mesa colocada em lugar estratégico de frente para a televisão de LCD comprada a prestação só para ver a copa.
Acordar de manhã e ter certeza de que uma copa não é tão importante assim. O Brasil está aí, às vésperas das eleições. O mundo está aí, às vésperas de uma nova convulsão. Todos nós estamos aí, como bons brasileiros, prontos para exercer a nossa eterna profissão: a esperança.