23 julho 2014

O verso do mundo



Nos idos de 1991-92, o professor Rubem Alves oferecia um seminário sobre “Temas avançados da filosofia da educação” na pós-graduação em Educação da Unicamp. As tardes das sextas-feiras eram sagradas para mim e Glória. Eram duas horas do mais puro encantamento, ouvindo aquele sábio versar sobre os mais vários assuntos, na companhia permanente da poesia. Cecília, Drummond, Clarisse, Pessoa, Adélia, Bandeira,Paulo Paes e muitos outros mestres da poesia e da prosa nos acompanhavam numa aventura sem rumo aparente que nos levava à reflexão e ao compartilhamento da sabedoria.
O texto que se segue foi o que entreguei a Rubem Alves como trabalho final de um dos seus seminários. Com ele, tentei condensar as passagens mais importantes das nossas reflexões. A prosa poética foi a melhor opção que encontrei para demonstrar o que aprendi com aquele professor de professores. Modéstia a parte, ele me deu o conceito “A”.

O verso do mundo


         No princípio era o verso, as entranhas do mundo a céu aberto. O pai e a mãe do homem dormiam na sombra do tempo.
         O mito. A miragem. A sedução das origens douradas. Palavra. O logos brotava da fonte divina, formando regatos na voz do poeta, pelas musas começando a cantar o início do mundo.
         Com o peso do tempo, o verso se fez carne e desceu ao mundo para habitar entre os homens, partilhar a miséria dos homens, se danar com os homens na eterna busca do tempo perdido, do mito perdido, das delícias do verso perdido.
         Espinho na carne, histericamente pedindo sentido, nunca mais o verso brotaria livre da boca dos homens. Entre o verso e a boca, milhões de represas retendo a luz, deixando escapar as sombras do não dito. Nunca mais o verso, lisa superfície da fala sem mácula. Nunca mais.
         Inverso, antiverso, a prosa do mundo impõe seu império. Proibida a busca das origens, o peso da estrutura esmaga o sonho. Soberana, a história cria os homens, inventa o mundo isento de desejos. Fetos programados sem escolhas. Máquina, projeto, mecanismo digital na bomba inteligente com olhos de ver, como os de Deus. O só sentido da morte.
         Mas a história se distrai e deixa viva num canto a outra versão. Deixa viva a fala do poeta, do profeta que anuncia o retorno do verso. O poeta, o perverso, o que segue o caminho contrário da história. O que volta ao mito, o que busca a fonte. O que se dilacera na sombra em busca da antiga luz.
         A poesia é cura. Na voz do poeta a carne se dissolve em sentido. A nova palavra no lugar do sintoma. A vertigem dos sons no lugar da doença. O que eu quero dizer é o que eu digo querer.
         Foda-se a prosa do mundo. O poeta, o perverso, busca o verso do mundo. Busca uma canção que revele o encanto do mundo. Um mundo sem deus, sem homens, sem história. Um mundo possível de todos os sonhos. Um mundo em que a fronha, suporte do sonho, possa escolher um nome mais belo que o seu nome.  
        


19 julho 2014

Ubaldo e o avião

        
Duas vezes a morte manda notícias. O escritor João Ubaldo Ribeiro morreu na manhã da sexta-feira, 18 de julho de 2014. Na véspera, morreram 298 passageiros de um avião derrubado pela insanidade da guerra ucraniana. 


        A morte de João Ubaldo me deixa triste. Como todo brasileiro minimamente informado, tenho uma admiração invejosa pela sua obra e um carinho muito grande pela sua figura humana. Lamento o vazio que ele deixa em nosso mirrado meio cultural e me conforto por ainda ter alguns dos seus livros que ainda não li. Tenho ainda muito com o que me surpreender e deleitar (por falar nisso, quem surrupiou “Viva o povo brasileiro” de minha estante, faça a gentileza de devolver). A morte de João Ubaldo é uma coisa familiar. É natural que seus parentes e amigos chorem. Assim como é natural a consternação de todos nós, seus leitores.   

        A derrubada do Boeing na Ucrânia me causa revolta. Ela é o resultado de um mecanismo perverso de interesses econômicos, políticos e armamentistas que paira muito acima da minha capacidade de entendimento. Atira-se num avião sem saber da sua procedência, matando-se pessoas sem nenhum vínculo com um conflito que em si já é difícil de compreender. Famílias inteiras, executivos apressados, turistas pacatos e mais de cem cientistas que iriam participar de um congresso sobre AIDS em Melbourne, na Austrália. E verdadeiramente me enoja a manipulação política das partes envolvidas no conflito.   
        Posso acolher a morte do escritor, pois ela faz parte daquilo que a vida nos reserva cedo ou tarde. Mas as mortes na Ucrânia batem na trave do meu acolhimento. Uma, se acomoda calmamente à minha familiaridade. As outras, me apavoram com seu excesso de brutalidade. Me custa crer que pertençam ao mesmo espectro da minha humanidade.   


Ilustração de Peu Teles.  Imagem obtida em varelanoticias.com.br