27 julho 2008

Política no diminutivo



Impressiona como tem zezinhos, joãozinhos, almeidinhas e silveirinhas candidatos a um cargo nas próximas eleições. É fácil de entender. Os josés, joões, almeidas e silveiras estão pendurando as chuteiras, mas não querem largar o osso.
O protótipo da jogada é o Diduzinho, da novela das oito. Seu pai, Romildo Rosa, é uma velha raposa que chegou onde está por conta de muita mutreta e mal-caratismo. Seu plano em continuar por cima, porém, desmoronou por conta do próprio filho. Diduzinho é alcoólatra, sem nenhuma vocação política e um ferrenho crítico dos métodos paternos.
É uma pena que Diduzinho seja um personagem de ficção. Na vida real, os diminutivos dos pais topam a jogada. E lá estão, rosados e de banho tomado, a nos sorrir desde o vidro traseiro dos carros. Em breve serão vereadores, logo mais, deputados estaduais, depois virão os plenários de Brasília e, se der, uma cadeira de governador.
A prática é uma velha conhecida nossa. É de se esperar que as velhas raposas queiram legar a seus filhotes a chave do galinheiro. O que chama a atenção é a quantidade de propostas de continuísmo para as próximas eleições. Não deve ser cansaço dos pais. Este tipo de trabalho não cansa. Fico até tentado a pensar que tem muita gente com medo de se submeter diretamente ao julgamento do eleitor. E em vez de suas caras manjadas nos oferecem o rosto angelical de seus filhinhos, tentando nos convencer de que estes nos tratarão melhor do que seus pais.
Enquanto nós, eleitores, não interrompermos este jogo de cartas marcadas, continuaremos cúmplices desta política pequena, chifrim. Política de pai para filho. Diminutiva.

Ilustração:Diduzinho, personagem de Fabrício Boliveira na novela A Favorita.
Obitada em :
http://afavorita.globo.com/Novela/Afavorita/Personagens/

20 julho 2008

Guerra santa




A borracharia já estava lá quando a igreja se instalou na casa em frente. E desde o começo dos tempos os cartazes enfeitavam as paredes encardidas com aquelas mulheres exuberantes, algumas mal cobertas no essencial, outras generosamente nuas. Perto da hora dos cultos, lá vinham os irmãos, paletó, gravata e o indefectível livro de capa preta nas mãos. Curioso é que vinham pelo lado da borracharia, só atravessando depois de um olhar furtivo para os cartazes. As irmãs, não. Ajuntavam-se na porta da igreja e ficavam dando muxoxos para o lado dos borracheiros. Deus estava vendo. Vão todos queimar no fogo do inferno. Uma pouca vergonha, confirmava um irmão. Eu vi com meus próprios olhos.
As coisas caminhavam assim, quando um fato novo quebrou a monotonia da desavença. O poster da Mulher Melancia. Era gritante demais, volumoso demais, pecaminoso demais para ser tolerado por aquelas ovelhas prontas para ruminar nos pastos divinos. Depois do culto da noite, o assunto foi discutido a portas fechadas. Na manhã seguinte, decidiu-se, o pastor iria falar com o dono da borracharia. Ele mesmo se comprometeu a avaliar o teor pecaminoso do cartaz e exigir sua retirada da parede.

Não adiantou nada. O borracheiro estava irredutível. A borracharia é minha, o poster é meu. Quem não quiser olhar, vire a cara ou feche os olhos. Acho que as irmãs sentem inveja da melancia da moça. E o senhor precisa ver o tanto de crente que deixa para atravessar a rua aqui em frente da borracharia. O senhor me desculpe, pastor, mas eu tenho mais o que fazer. Depois da Mulher Melancia, aumentou muito o movimento por aqui.
A indignação tomou conta do rebanho. Se a missão de paz não obteve resultado, o borracheiro ia ver o quanto podia a ira do Senhor manifestada em seus servos. No outro dia de manhã, toda a congregação estava presente, excitada pela voz estridente do pastor, pronta para invadir a borracharia e expulsar de lá o demônio dos fartos glúteos.
Convocados pelo celular, borracheiros de toda a vizinhança acudiram em defesa do colega ameaçado. Os ânimos se exaltaram. A ocasiões como esta não se ajusta melhor expressão. Definitivamente, os ânimos se exaltaram. Igreja, ataque a borracharia, bradou o pastor. Em resposta, ouviu-se o grito roufenho do inimigo: borracharia, enfrente a igreja.
Os irmãos não tiveram tempo de dar um passo. O borracheiro arrancou o poster da parede, mostrou fervorosamente o seu conteúdo ao valorosos companheiros e avançou com aquela bunda enorme lhe cobrindo o peito em direção ao exército inimigo. Atrás dele, tomados pelo espírito de Thor, armados com seus martelos de borracha maciça, os homens gritavam seu grito de guerra: Créu – Créu – Créu.
A massa de fiéis abriu-se como o Mar Vermelho. Créu – Créu – Créu, avançava o exército igreja adentro. Aleluia, Aleluia, gritavam os irmãos, alucinados pelas formas excessivas da mulher que ondulava ao sabor dos passos do borracheiro. Créu – Aleluia – Créu – Aleluia, gritavam as irmãs, muitas já sem as longas saias, comparando suas bundas com a da mulher do cartaz, fazendo bruscos movimentos de ir e vir com a pélvis, numa cópula frenética com o nada.
Em nome de Deus, tire este demônio daqui. Atirou-se o pastor aos pés do borracheiro. O homem enrolou cuidadosamente o pôster e ordenou a seus comandados: borracharia, abandonar a igreja. Saíram em silêncio, mas sem esconder um ar triunfante. Atrás deles, os irmãos tentavam cobrir as vergonhas de suas mulheres que acordavam do transe ainda aos estertores.
No culto seguinte, o pastor teve trabalho para botar pra dentro da igreja os homens e mulheres que vagavam em frente da borracharia.

18 julho 2008

Sejamos injustos


No final de 2005, Angélica Aparecida de Souza tinha dezenove anos e um filho de dois. Estava desempregada e seu filho tinha fome. Angélica entrou num mercadinho e escondeu um pote de 200 gramas de manteiga debaixo do boné. O dono do mercadinho, Seu Dadiel de Araújo, chamou a polícia. Azar de Angélica. Presa em flagrante, passou 128 dias no Cadeião de Pinheiros, em São Paulo. Quatro vezes o seu advogado pediu a sua liberdade provisória. Só conseguiu depois de apelar ao Superior Tribunal de Justiça. Depois de um tempo em liberdade, Angélica foi julgada e condenada a quatro anos de prisão em regime semi-aberto. Vai poder trabalhar durante o dia, só voltando à noite para a prisão. Vejam só o privilégio. Angélica, antes desempregada, agora pode sair para trabalhar. Não adianta perguntar onde. Isto não é problema da Justiça.
No dia oito de julho de 2008, a Polícia Federal botou na cadeia o banqueiro Daniel Dantas, o megainvestidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta. Todos com ficha suja na polícia, acusados de comandar uma quadrilha responsável por desvio de verbas, lavagem de dinheiro, remessa ilegal de valores para o exterior, envolvendo altas autoridades do atual Governo Federal e do anterior.
Três dias depois, todos estavam soltos por decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Preso novamente onze horas mais tarde, o banqueiro Daniel Dantas foi presenteado novamente com um habeas corpus do STF. Não adianta a suspeita de que, em liberdade, terão todo o tempo e espaço para destruir provas, intimidar testemunhas, subornar autoridades. Isto não é problema da justiça.
Eis aqui dois casos em que a justiça foi aplicada em todo o seu rigor técnico. Mas existe alguma coisa dentro de nós que denuncia, em ambos os casos, a ausência de um critério ético na aplicação das leis.A fome de Angélica e a ganância de Daniel Dantas não podem ser julgadas pelo mesmo padrão de legalidade. A discrepância entre os seus crimes exige algo mais do que uma suposta igualdade de todos perante a lei. Daniel Dantas é mais “igual” do que Angélica. Ele é igual aos criminosos de colarinho branco, aos poderosos corruptos, aos freqüentadores de paraísos fiscais. Ela é igual aos milhões de famintos desesperados que escondem o furto no boné.
Se a aplicação dos códigos da justiça resulta em tratamentos tão díspares como nos casos de Angélica e Daniel, está na hora de sermos injustos. Antes do código penal, apelemos para o código de ética.


Imagem obtida em www.eu2007.pt/.../tribunal_de_justica.htm

16 julho 2008

Vesga


Encomendado por Betomenezes

Antes disso - ela falou, interrompendo o trabalho ávido dos dedos dele no primeiro botão da blusa -, preciso lhe contar uma coisa: eu sou vesga. Ele ficou parado olhando para os olhos dela que não davam o menor sinal de desencontro.
Não é dos olhos que estou falando. Virou-se de costas e ela mesma tirou a blusa. Voltou-se girando colada ao corpo dele, entregando a boca, entretendo os olhos.
O corpo do homem exausto na cama não notou quando ela foi ao banheiro. Só a viu voltar, enrolada no roupão. Ele quis espionar pelas frestas, mas tudo o que conseguiu foi um beijo em cada olho.
Ele tomava um café forte na mesa da cozinha quando ela veio lá de dentro já pronta para sair. Curvou-se para o beijo de despedida com a mão protegendo o decote.
Ele a viu se afastar, ouviu seus passos ecoando pela sala e sentiu uma leve tristeza quando a porta bateu. Passou o resto do dia todo assim, os olhos pulando de uma coisa para outra, procurando algo que ele sabia que não estava ali.

Clube do Conto, 19.07.2008

11 julho 2008

Caros amigos



A primeira coisa que fiz hoje de manhã foi abrir a caixa de correspondência para ler os e-mails de parabéns pelo meu aniversário. Não fui frustrado em minha expectativa. Estavam lá três mensagens carinhosas: uma do meu provedor de internet, outra do Orkut e a terceira de um desses catálogos de endereços de que não lembro de ter me inscrito.
Que boa memória, a das máquinas. E quanto amor em suas palavras. Elas me desejam toda a felicidade do mundo, agradecem pela minha existência e me prometem bons serviços até a morte.
Os amigos não me mandaram emails. Alguns telefonaram, outros ficaram de dar uma passadinha para um abraço. Mas nenhum se dignou a me mandar uma mensagem pelo mais sublime dos meios de comunicação. As máquinas sabem disso. E por saberem, alçam-se acima dos homens no que tange a demonstrações de apreço e consideração.
Sigo, pois, a tendência geral das gentes pós-modernas. Vou prescindir do amor dos homens. Somente as máquinas me escrevem. Há muito amor por mim no coração das máquinas.

O presente



Era véspera do meu aniversário. Era também dia de oficina de leitura no Centro Comunitário de Mandacaru. Quando cheguei, havia uns panos coloridos no chão e, sobre eles, alguns livros meus, além de outros escritos que o grupo conhecia. Durante duas horas, ouvi de vozes amigas os poemas, crônicas e contos que escrevi ao longo da minha vida. No terraço onde nos encontramos, havia um painel com um retrato meu feito a lápis por um dos componentes. No final, todos os presentes escreveram mensagens de carinho para mim. Não podia ganhar presente melhor.
O melhor presente, porém, não era a simples devolução aos meus ouvidos das palavras que um dia de mim haviam saído. O verdadeiro presente era assistir um punhado de jovens repartir o poder e a beleza das palavras, superando todas as resistências de um meio hostil e degradante.
O melhor presente é saber que existem muitos grupos iguais ao nosso pelo País afora. O verdadeiro presente é constatar que a palavra ainda não foi destituída do seu poder em resgatar a dignidade do ser humano.
Somos seres de fala. A palavra é nossa carne. Temos sede de invenção e beleza. E a prova disto é o trabalho dos meninos e meninas de Mandacaru. Eles alimentam minha crença em um mundo mais rico, em que cada um tenha direito a dizer sua palavra e repartir sua beleza com os seus semelhantes.

07 julho 2008

Rosa

"Ladrão? se pega com tiro." - CDA




Ele era leiteiro. No tempo em que os leiteiros deixavam as garrafas de leite nas portas.
Ela era Rosa. No tempo em que as rosas casadas mal saíam às portas.
Ele amava as rosas. E colhia rosas nos jardins das casas em que deixava o leite para deixá-las nas casas de jardins sem rosas.
Ela amava as rosas. E gostava quando ele deixava uma rosa junto com o leite em sua porta.
Ele não sabia de Rosa. Rosa não sabia dele.
Mas o marido sabia que ela entrava feliz com o leite, sem mostrar-lhe a rosa.
Uma manhã, um tiro, um vidro estilhaçado.
Por debaixo da porta deslizava a cor trágica da aurora.

Clube do Conto, 05.07.2008
Ilustração obtida em: mapadonada.blogspot.com