26 julho 2012

A menina de noite



Há alguns anos, Raíja, minha filha mais velha, me deu um bonito caderno de notas, feito à mão, pedindo que eu escrevesse um poema nele. Ao longo de alguns anos, fui escrevendo pequenos versos que foram fazendo sentido por eles mesmos. Em 2007, nasceu Gabriela, minha primeira neta, filha de Raíja com Ivan. Quando saí da maternidade, encharcado de emoção, tive a idéia de compor um poema para minha neta a partir dos versos escritos no caderno que sua mão me presenteou. Depois de trabalhar com um alucinado, telefonei para a maternidade e dei ordem para não sair ninguém. Queria que todos os que apinhavam o quarto ouvissem o poema que acabara de compor: “A menina de noite”.
No fim de semana passado, recebo uma caixa com o timbre da Editora Paulus com vinte exemplares do livro mais bonito que já tive em mãos: “A menina de noite”. Uma artista plástica inspirada, Veruschka Guerra, conseguiu traduzir todo o ambiente de sonho e emoção que tentei imprimir ao poema. O resultado é um conjunto alucinante de imagens que transcende as intenções do texto, ganhando vida própria e levando o espectador para lugares desconhecidos de sua própria alma.
Passaram-se cinco anos desde a concepção até a publicação do livro. Um longo tempo de peregrinação por muitas editoras, até que Veruschka se apaixonou pelo texto e o apresentou ao Alexandre Carvalho, editor infanto-juvenil da Paulus.
Desde que chegou, o livro vem sendo motivo de muita emoção. Uma emoção bem próxima da que sentimos quando Gabriela nasceu. As pessoas em volta do livro repetem as expressões de carinho e espanto de quando se debruçaram sobre a neta recém nascida.
“A menina de noite” é o meu oitavo livro publicado. Seria apenas mais um livro na minha estante se não fossem as circunstâncias em que foi concebido. Seria apenas mais um livro infantil no mercado, se não fosse o carinho e a delicadeza com que foi ilustrado e editado. É este clima de encanto e delicadeza que pretendo estender para quem o embalar nas mãos.

Ilustração: Veruschka Guerra

18 julho 2012

O Luxo da memória



                                                                                Para Carlos Aranha


Estava ouvindo Handel no som do carro e de repente tive uma experiência rara. Me veio a lembrança das manhãs de domingo em Água Fria, o primeiro bairro em que morei no Recife. Bem cedinho, os fiéis eram chamados para a missa ao som da música mais bonita feita para o louvor de Deus. Eu não ia à missa, mas acordava feliz com a harmonia barroca que me prometia um longo dia de folga com direito a ver as moças passando para a igreja, um almoço melhorado e uma matinê com filme de caubói ou uma comédia com Jerry Lewis. Até hoje agradeço ao Cônego Jaime Diniz, pastor da paróquia de Água Fria, por me ter dado de presente esse conjunto de imagens que emerge em minha memória toda vez que ouço a música triunfante de Handel.
A memória é um espaço mágico onde passado e presente se fundem para formar um outro tempo em que descobrimos uma emoção nova, depurada, que abre uma clareira dentro de nós. Uma clareira onde não cabe saudade ou esperança. Um lugar fugidio, uma chispa que, apesar de intensa, depressa desaparece. E mesmo que o episódio relembrado permaneça no pensamento, a emoção se esvai para somente voltar quando outra chispa vier nos visitar.
Não gosto de começar uma história dizendo “no meu tempo...” Dá a impressão que o tempo presente não é meu. O que não é verdade. Todo tempo é meu. O passado, o presente e também o futuro, pois toda vez que faço planos estou vivendo um tempo que ainda virá. Mas não tenho nenhum pudor em começar uma história falando “naquele tempo”. Pois me faz bem falar das coisas que vivi e das que não vivi, mas ouvi falar. Das que não vivi, não ouvi falar, mas que inventei a partir de restos de memória dispersos que juntei para inventar alguma coisa que me falta no passado. 
A memória é um luxo. E a melhor forma de cuidar dela é respeitar os seus movimentos. Deixar que ela nos invada e pegue de surpresa o ser incauto e distraído que dorme em nós. Respeitar, principalmente, os momentos em que ela nos falta, pois é apenas um aviso de que um dia nos abandonará. Mas enquanto estiver aí, uma música no som do carro sempre poderá nos enviar para o som antigo que nos acordava desde um alto-falante no topo da torre de uma igreja de subúrbio.

Ilustração obtida em: educolorir.com

08 julho 2012

O mundo dentro de mim

Um dia eu estava assistindo a um programa sobre vinhos e me impressionei com um vinicultor grego, com ares de sacerdote pagão, afirmando que as cepas que cultivava nas encostas de um monte iam buscar os nutrientes no fundo da terra. Beber aquele vinho, portanto, era entrar em comunhão com a terra, levando para dentro do corpo o que a terra tem de mais puro, mais profundo e mais sagrado.

Desde então, toda vez que bebo vinho, tenho a consciência de que estou incorporando a terra do país em que foi produzido. O que significa que, com o tempo, meu corpo passou a carregar um pouco da terra de muitos países do mundo. França, Itália, Espanha, Portugal, África do Sul, Argentina, Uruguai, Chile... Isto sem contar os territórios gaúchos e franciscanos. Estou até pensando em perder de vez o preconceito e provar alguma marca da Califórnia.

Sei que algum amigo maldoso deve estar insinuando que a maior parte do meu corpo é ocupada pelas terras da Escócia. Outros, mais maldosos, dirão que sou ocupado por terras mais próximas, a exemplo do brejo paraibano. Lembrarão também dos territórios anônimos do malte e do lúpulo levados ao meu interior pelos copos generosos do chope e da cerveja.

Vamos deixar de lado as más línguas, pois estamos restritos ao âmbito dos vinhos. E não me tomem por um desses eruditos conhecedores das castas e processos, que conseguem identificar numa simples taça de vinho os aromas e sabores mais exóticos. Nem me confundam com esses chatos que não conseguem beber um vinho sem deitar falação sobre a qualidade da uva, o ano da safra, as excelências da marca.

Sou apenas um cara incapaz de acumular garrafas numa adega, que adora chegar em casa na sexta-feira com uma ou duas garrafas de vinho para beber com a mulher e quem mais quiser. E a cada fim de semana anexar novos territórios ao vasto mundo do meu corpo.

04 julho 2012

Chuva e melancolia


Eu me lembro das chuvas da minha infância, principalmente aquelas nos fins de tarde, quando escurecia mais cedo e o meu pai demorava mais a voltar do trabalho. Eu me lembro quando a chuva passava e eu ia olhar a água correr pelo canto do meio-fio, levando as coisas pequenas para longe da frente de minha casa. Eu me lembro das meias nos chinelos e o agasalho para as noites friorentas. E desde esse tempo a chuva me deixa nostálgico. Eu sou melancólico de nascença. E nada melhor para um melancólico do que um fim de tarde chuvoso.

Mas hoje em dia as coisas estão tão ruins, que não se pode mais ser melancólico impunemente. Hoje, quando chove, minha nostalgia é substituída por uma enorme preocupação com os grandes e pequenos desastres que perturbam a vida das pessoas. Ruas alagadas, casas inundadas, carros submersos, pessoas levadas pelas águas revoltas sem vias de escoamento.

Antigamente, depois da chuva, saíamos à rua para apanhar tanajuras e comê-las torradas com farinha. E aceitávamos complacentes a companhia das formigas de asa que rondavam as lâmpadas e eventualmente se afogavam no nosso café. Hoje, saímos para ver as pessoas perambulando desoladas, sem ter a quem cobrar a perda dos seus bens ou dos seus entes queridos.

Não quero perder tempo com os pequenos aborrecimentos das inevitáveis goteiras e infiltrações que perturbam as nossas manhãs depois dos aguaceiros. Isto é nada comparado a quem passou a noite levantando móveis e procurando uma casa de parente para dormir. Só tenho a lamentar quando sei que todo esse sofrimento poderia ser evitado se o dinheiro dos nossos impostos fosse corretamente aplicado em programas de esgotamento, urbanização e limpeza pública.

É uma pena que a suave melancolia da minha infância tenha dado lugar à raiva e à indignação. Gostaria de poder olhar a chuva através de uma janela e poder abrir um livro e tomar um chocolate quente sabendo que na minha cidade, no meu país, em todos os lugares do mundo as pessoas também pudessem olhar a chuva em paz. Apenas melancolicamente.