29 novembro 2011

Confraternizar





Ainda nem começou dezembro e minha agenda está cheia de compromissos de confraternização. E não são meros encontros de colegas entediados, doidos que o tempo passe para se livrar do incômodo. São amigos de verdade que me chamam. Gente que conviveu comigo nos mais diversos afazeres e agora quer comemorar mais um ano que passamos juntos.

Tem o pessoal da literatura que deixa para lançar todos os livros do mundo no fim de ano, de olho no décimo terceiro salário dos amigos. Tem os colegas do batente de poltrona e divã, ávidos de uma boa prosa longe da claustrofobia dos consultórios. Tem os amigos, puros e simples, que querem se desculpar da falta de atenção na correria do dia-a-dia. Tem a parentalha querendo matar as saudades dos tempos risonhos e limpos de mágoas.

Seja qual for o motivo da confraternização, é preciso que não esqueçamos o significado da palavra “confraternizar”. Fraterno, todo mundo sabe, é algo relativo a irmão. Confraternizar, portanto, é conviver fraternalmente, como irmãos. É preciso um tanto de ternura, uma boa dose de amor e um bocado de perdão para se conviver como irmãos.

É por isso que não vou a qualquer encontro que se chame confraternização. Uma boa parte deles é usada apenas como mais uma oportunidade de conhecer gente que possa alavancar nosso prestígio social ou nossa conta bancária. Outros são pura tortura, onde temos de conviver com pessoas que se odeiam mutuamente.

Sei quem são meus amigos fraternos. É com eles que me dá prazer confraternizar. Claro que isso é coisa que se pode fazer em qualquer época do ano. Mas no mês de dezembro as coisas tomam um ar mais solene, a gente fica mais sentimental, numa espécie de reflexo condicionado dos tempos da infância. Podem me chamar para as confraternizações. Mas por favor, respeitem uma única exigência: sem Amigo Secreto, pelo amor de Deus.

23 novembro 2011

Santas bugigangas




Se, por falta de tempo ou dinheiro, você não pode ir ver a mais nova exposição do Museu da Ciência de Londres, dê uma passadinha aqui em casa. Vai dar no mesmo. Aliás, em sua própria casa você pode apreciar réplicas idênticas às exibidas no célebre museu. O nome da exposição é bastante sugestivo: Hidden Heroes, quer dizer, Heróis Escondidos. E lá você vai encontrar em exposição coisas simples como o clipe, o pegador de roupa ou o filtro de papel.

Um dia, uma amiga agradecida, prometeu rezar todo dia uma ave-maria para o inventor do liquidificador. O mesmo louvor devem merecer os criadores do ferro de passar roupa, da geladeira, do desentupidor de pia. Mas estas são já invenções grandiosas, que dão na vista. O que o museu londrino quer mostrar são coisas menores, as pequenas bugigangas que passam despercebidas pelas nossas mãos a cada minuto das nossas vidas.

Mesmo contrariando a Danusa Leão, sou um entusiasta do palito de dentes. Louvo quase diariamente o inventor do mecanismo de abrir latas de cerveja. Gostaria de abraçar o gênio que colocou rodinhas nas malas de viagem. Beijaria sem constrangimento o inspirado criador do fecho éclair, que depois virou zíper para as gerações mais novas.

Mas o meu voto direto para santo é do inventor do clipe. Não existe desenho mais perfeito do que o desse objeto simples e despojado. Não há nada oculto, nenhum mecanismo obscuro. E são infinitas as suas possibilidades de uso. Serve para cutucar o ouvido, tirar o carro do prego, fazer um colar ou simplesmente ser desdobrado e jogado no lixo. Mas a sua função principal é quase divina. Um clipe liga uma coisa a outra, servindo de elo entre diferentes registros da nossa experiência cotidiana. Pode ser duas fotos, duas contas de supermercado, as folhas de um texto inacabado.

Unir e lembrar. Evitar a dispersão. Nunca pensei que uma simples bugiganga pudesse me lembrar o trabalho unificador de Eros. É nisso em que dá começar uma crônica sem um assunto claro na cabeça.



Imagem obtida em: http://www.ruadireita.com

16 novembro 2011

Arqueologia





Uma gaveta é uma espécie de sítio arqueológico. Quanto mais fundo cavamos, mais aparecem coisas antigas que ali jazem esquecidas. É por isso que é muito difícil para mim arrumar uma gaveta. Estou quase a meio caminho da tarefa quando me surpreendo com algo, papel ou coisa mais sólida, que me faz parar no tempo e no tempo mesmo regressar.

Hoje mesmo, revolvendo a primeira gaveta da cômoda em busca de qualquer coisa, dei de cara com dois objetos que custei a adivinhar a serventia. Um deles era uma espécie de moeda marcada por dois sulcos paralelos. Entre os dois sulcos, estava cunhada a palavra “local”. Acima deles, constava o número 1994. No verso, apenas um sulco dividia a moeda. No hemisfério superior estava escrito “Sistema Telebrás”. No inferior estava uma logomarca sugerindo um antigo telefone. Um pouco de paciência me lembrou a serventia do tal objeto. Era uma ficha telefônica para ser inserida nos aparelhos distribuídos em pontos estratégicos da cidade quando se queria fazer uma ligação local.

O outro objeto me exigiu mais tempo para identificá-lo. Era uma espécie de broche vermelho, em forma de estrela, vazado em branco com as letras “PT”. Fiquei um bom tempo com o pequeno objeto nas mãos, até que me veio uma vaga lembrança de um tempo de esperança em que muitas pessoas iam às ruas vestindo camisas e empunhando bandeiras com aquela cor e aquelas letras.

Devolvi os dois objetos inúteis à gaveta e ali eles ficarão até que venham os arqueólogos de um sistema solar distante vasculhar o que sobrou de nossa estúpida civilização. Se um deles achar minha gaveta, vai ter muito o que matutar sobre as coisas estranhas que dormem ali. Quando cruzar alguns dados de sua pesquisa, vai ficar querendo saber qual seria a pessoa para quem não telefonei. Vai também querer saber o destino da esperança que aquela estrela representava. Da pessoa, ele não terá resposta. Da esperança, vai voltar muito triste quando souber do seu destino.

09 novembro 2011

Felicidade





Chega a ser divertido o esforço das pessoas para definir o que seja felicidade. Antigamente, felicidade era um conceito vago, sua definição dependia das aspirações mais ou menos espirituais de cada um. Hoje a coisa ficou fácil, porque a felicidade passou a ser materializada pelos promotores de marketing. Pode ser encontrada num artigo de consumo disponível na prateleira de qualquer supermercado, nas revendas de automóveis ou no balcão das agências de viagem.
De tanto penar à procura de uma noção de felicidade que me deixasse feliz, resolvi aderir ao materialismo individualista pós-moderno e decidi: felicidade é o resultado do bom funcionamento das coisas.
Não existe coisa pior do que aqueles períodos em que todas as coisas da sua casa começam a deixar de funcionar. Começa pelas lâmpadas. Teve uma vez que cinco lâmpadas, nos mais diversos cômodos daqui de casa, deixaram de acender. Logo em seguida, inevitavelmente, quebra o liquidificador. Depois pode vir o ferro elétrico ou a televisão da sala. Daí em diante a coisa entra em progressão geométrica, podendo terminar com um vírus que corrompe todos os arquivos do seu computador, inclusive aquele que você deixou para fazer o back-up no final da tarde.
Tem uma coisa que aprendi a respeitar: o inferno astral. Isso existe, sim. E não consiste em nada de esotérico, espiritual. O inferno astral consiste exatamente nesse desmantelamento generalizado dos objetos domésticos. O que justifica a expressão: “minha casa está um inferno”.
Daí, espero ter justificado a minha definição de felicidade: É aquele estado de beatitude quando você entre em casa e as luzes se acendem uma a uma. O liquidificador prepara sua vitamina e você pode se jogar no sofá da sala para ver a mais nova besteira das oito. E depois poder ligar seu computador e ver que todos os seus arquivos estão ali, prontos para serem impressos. E a impressora está com tinta e funcionando. Pronto. Você está imerso no seu oásis particular de felicidade. Até que a próxima lâmpada deixe de acender.

02 novembro 2011

Abrir mão




Num gesto do mais autêntico autoritarismo, minha médica mandou a atendente medir a circunferência da minha barriga e tomou a decisão unilateral de me decretar obeso. Claro que protestei veementemente contra o reconhecimento científico do meu visível arredondamento. Mas no fundo eu já vinha achando que estava na hora de abrir mão de alguns prazeres para poder voltar a encarar sem medo a minha parte do guarda-roupa. Além disso, já andava chateado com a dificuldade em executar certos movimentos, fazer um mínimo de força, sustentar o peso de alguns objetos.

É um fato da vida. Vamos entrando nos anos, dobrando o Cabo das Tormentas (ou da Boa Esperança, para os mais otimistas) e nos damos conta de que nos falta força. Não apenas a força física. Aquele ímpeto que nos incita o espírito também vai esmorecendo.

É hora, então, de economia. É preciso aprender a abrir mão dos excessos. O primeiro deles é o excesso de peso. Do nosso próprio peso. Depois, comecemos a pensar nos outros excessos, verdadeiros pesos pendurados na alma, puxando-nos pra baixo, prendendo-nos ao chão. O maior desses pesos, o principal deles, é a presunção. Aquele sentimento de que valemos muito mais do que imaginam os nossos pobres semelhantes. Aquilo que nos faz roubar no peso e enganar no troco quando nos vendemos no mercado das vaidades. É dessa presunção que derivam todos os outros excessos.

Já me faltam as forças. Preciso me livrar de certos projetos inalcançáveis. Sem abrir mão dos sonhos, é claro. Mas a alma leve, num claro paradoxo, me faz sonhar mais ao rés do chão. Sonhos, digamos assim, da mão pra boca. Plantar milho em março pra colher em junho.

Vou sugerir à minha médica que, além da fita métrica normal, tenha no consultório uma fita metafísica para medir a alma da clientela. A partir de certa medida o freguês será declarado um obeso anímico, sendo então obrigado a fazer um regime para perder também os pesos invisíveis. Aqueles que mais dificultam a nossa caminhada.