30 abril 2009

O fim da noite



Ontem faltou luz de noite. Por falta absoluta do que fazer, fui esperar o sono na cama. Com a demora do sono e pela ausência de imagens internas, concentrei minha atenção na escuridão total em que estava imerso. Passei a mão na frente dos olhos e não percebi nenhum movimento. Pensei que estava tendo uma experiência próxima à da cegueira e surgiu uma ponta de angústia. Mas logo me lembrei do que me disse minha amiga Joana Belarmino, cega e vidente: o medo do escuro é um problema de vocês. Eu não conheço a escuridão.

Para dizer a verdade, tirando experiências isoladas como a da noite passada, eu também não conheço a escuridão. E muito pouca gente que mora nas cidades pode dizer-se íntima do escuro. A noite, como sinônimo da treva, é um fenômeno cada vez mais raro. A preocupação com a segurança e o controle das pessoas fez com que a escuridão fosse banida das ruas e dos edifícios das cidades.

A noite, hoje, é apenas um período de tempo muito pouco diferente do dia. Quando entramos num supermercado ou num shopping, mergulhamos num tempo contínuo, onde a iluminação artificial elimina toda diferença entre o dia e a noite. O próprio escurinho do cinema é mais uma expressão carinhosa do que real. Além de não ser um escuro absoluto, pela óbvia luz projetada na tela, ele pode ser usufruído de dia ou de noite.

Por falta de uma diferenciação clara (ou escura) com o dia, a noite perdeu sua finalidade de período próprio ao descanso e ao sono. Empurramos cada vez mais para dentro da noite as coisas que fazíamos de dia. Farmácias, supermercados, postos de gasolina e tantos outros serviços permanecem abertos ininterruptamente. Varamos a noite estudando ou trabalhando. Só vamos para a cama quando a exaustão não mais nos permite qualquer atividade. Aí, então, vem a insônia. E só então nos damos conta de que perdemos o contato com o nosso lado noturno. O lado que sonha e nos leva para os pastos reparadores que se descortinam do outro lado do sono. Os olhos secos, a alma seca, a secura da imaginação. Este é o preço que pagamos pelo fim da noite. Além do mau humor do outro dia.


Imagem obtia em: viajeaqui.abril.com

26 abril 2009

Luto



Tenho uma foto antiga de meu pai cercado com seus colegas de trabalho, todos com seus indefectíveis ternos de linho branco. O que chama a atenção é que um deles está de gravata preta e tem um pedaço de tecido preto na lapela do paletó. O pessoal mais velho sabe que o tecido preto se chama fumo e quer dizer que aquela pessoa perdeu alguém muito próximo recentemente. É uma demonstração externa de sofrimento e nos lembra que devemos ser tolerantes com aquela pessoa, respeitando o seu recolhimento, permitindo que viva até a exaustão o seu luto.
Das viúvas de antigamente, esperava-se que usassem luto fechado por um ano, o que exigia que todos os seus vestidos fossem tingidos de preto e mantivessem um comportamento sóbrio, sem nenhuma manifestação exacerbada de alegria durante doze meses. Só depois da missa de um ano é que lhes era permitido usar o luto aliviado, o que queria dizer que suas roupas podiam agora ser mescladas de preto e branco ou feitas com tecidos de cores sóbrias, como o azul marinho ou o marrom.
Era triste, sim. Mas era justamente de tristeza que se tratava. A tristeza aceita como um sentimento digno de ser exteriorizado, com regras e normas aceitas pela comunidade que partilhava e respeitava os enlutados.
Hoje, sua tristeza não interessa a ninguém. Se estiver triste, esconda-se. Você não será bem aceito nos templos maníacos da sociedade sem dor e sem memória. Sua tristeza não cabe nem mais nas igrejas ou nos cemitérios. Tudo virou festa. Aos que insistem com suas melancolias e estados depressivos, restam os livros de auto-ajuda ou os comprimidos de tarja preta. A mesma tarja que antes se via na lapela dos paletós dos viúvos.


Imagem obtida em: www.flickr.com

24 abril 2009

Bispo do Paraguai



Mais uma vez a igreja católica exibe sua potência ao mundo. Desta vez, sua potência sexual. No último dia 14, o presidente do Uruguai, Fernando Lugo, assumiu publicamente a paternidade de um menino de dois anos, fruto de uma relação mantida enquanto era bispo do Departamento de San Pedro. Menos de uma semana depois, outra paraguaia pede que o presidente assuma um filho de seis anos, também concebido enquanto era bispo e a moça tinha 16 anos. Mais recentemente, uma terceira mulher diz que também tem um filho do presidente, concebido depois da renúncia deste ao posto religioso para se candidatar à presidência do Paraguai. A relação dos dois, entretanto, vinha de antes da renúncia.
Sou incondicionalmente a favor do amor entre as pessoas, independente de qualquer circunstância. Mas não é de amor que estamos tratando. Estamos diante de um homem sem escrúpulos que escondeu do povo sua condição de pai irresponsável, posando de paladino da moralidade e dos princípios democráticos para os eleitores do seu País. E foi com esta falta de escrúpulos que ele se elegeu presidente. Pois a sua renúncia ao cargo eclesiástico não se deveu ao compromisso com nenhuma dessas mulheres ou com seus filhos. Renunciou apenas porque a constituição do Paraguai proíbe que ministros religiosos exerçam cargos púbicos.
Até que já estava caindo de moda dizer que era “do Paraguai” qualquer coisa ou pessoa falsa que tentassem nos passar como verdadeiras. Infelizmente, mais uma vez a falsidade vem se associar a esse País tão maltratado pela história, desta vez disfarçada sob os rótulos da religião e da política. O povo paraguaio merecia coisa melhor.
Todos nós, da América Latina, merecemos coisa melhor.



Imagem obtida em ocastendo.blogs.sapo.pt

15 abril 2009

O gosto da memória




Essa história de Páscoa com ovos e coelhinhos é relativamente nova em minha vida. Quando era menino, o que existia mesmo era a Semana Santa. Começava no Domingo de Ramos, com o Cristo entrando em Jerusalém aclamado pelo povo. Já na Sexta-Feira da Paixão o Filho do Homem estava crucificado. Passava-se o Sábado de Aleluia em luto pela sua morte. Na meia-noite ia-se à missa, onde o padre ficava procurando a Aleluia em um livro enorme. Se não achasse a Aleluia, era certo que o mundo ia se acabar. Por isso os sinos tocavam energicamente e todas as luzes da igreja eram acesas quando, do meio do latinório, ouvia-se a palavra salvadora: Aleluia. O fim do mundo ficava adiado até a próxima Semana Santa. No Domingo, enfim, comemorava-se a Ressurreição. Não sei muito bem como se encaixam aqui os três dias em que, segundo a antiga liturgia, o Cristo desceu aos infernos.
Este ano, mais uma vez, fui passar a Semana Santa em Maceió. É um dos meus poucos luxos com que gosto de fazer inveja aos amigos. Atitude, reconheço, bem pouco condizente com o espírito de humildade cristã que deve reger esta época do ano. Mas vaidade é vaidade. Vamos lá. Comi e bebi como um cônsul romano, entre curtos intervalos imerso numa piscina de água quase morna.
Sempre se comeu bem na casa desses meus primos, desde o tempo em que minha Tia Carminha tomava conta da cozinha. Mas é de um tempo anterior a este que me vem a lembrança da melhor refeição da minha vida. Tia Carminha morava numa casa parede-meia, na beira da linha, no bairro de Jaraguá. Casa pequena, mas com um quintal generoso, onde uma mangueira deitava fruta e sombra. Era Semana Santa e a proibição da carne era compensada com um siri de coco digno de constar da Santa Ceia. Feijão com farinha, comidos à mão em bolões molhados em um molho de pimenta malagueta feito com o caldo do próprio siri. Tudo isto acompanhado com uma manga espada estourando de amarela, chupada pelo bico, como um seio. Esta foi a comida mais gostosa de toda a minha vida. Sem vinho, sem chocolate, sem coelhos em volta. Só os olhos e as mãos milagrosas da minha tia.


Imagem obtida em www.receitastipicas.com

07 abril 2009

Derivas

Os judeus celebram a Páscoa em memória da libertação da escravidão no Egito. Os cristãos comemoram a passagem para o novo tempo que a ressurreição do cristo anuncia. Liberdade, renovação. Que sentido fazem estas palavras fora do seu contexto estritamente religioso e litúrgico?
Um olhar mais atento sobre o mundo nos mostrará que a única liberdade visível é a que se anuncia como liberalidade do mercado. E todos sabemos o quanto isto tem acentuado a desigualdade entre os países e aprofundado a distância entre as classes. Quanto à renovação, ela se dá do ponto de vista estrito das mercadorias, o que nos empurra para um processo alucinado de consumo.
A humanidade ainda não conheceu a Páscoa. Somos todos errantes. Vivemos à deriva num deserto ético em que só os sistemas religiosos parecem apontar alguma salvação. E nisto reside a nossa miséria e nossa esperança. Miséria, porque todo o nosso percurso histórico ainda não conseguiu prover a humanidade dos instrumentos tecnológicos e ideológicos necessários a uma convivência de bonança e harmonia. Esperança, porque alguns desses sistemas religiosos apontam para certas saídas éticas que contemplam uma convivência na diversidade.
Judeus ou cristãos, muçulmanos ou budistas, pagãos ou ateus, nenhum de nós conheceu ainda a liberdade ou a renovação. Vivemos todos ainda à espera de uma Páscoa que nos resgate a todos deste êxodo em que ainda não vislumbramos nenhuma terra prometida.
E enquanto esperamos a Páscoa, reconheçamo-nos humildemente como seres de incertezas e derivas. Que a humildade seja o nosso único ponto em comum. No mais, cada um que derive a seu modo. O cuidado maior, enquanto derivamos, é não dar ouvidos aos que apregoam suas crenças como caminhos exclusivos para a salvação. Todos temos o direito de escolher se e como queremos ser salvos.
Ilustração :"Le Radeau de la Méduse", de Théodore Géricault (1791-1824).