31 janeiro 2013

Nem morto


Quando assistíamos ao DVD de abertura do ano cultural dedicado a Sérgio Castro Pinto, denunciei que Hildeberto Barbosa Filho tinha arrumado suas estantes para gravar o seu depoimento. Ele engoliu a corda e afirmou veemente que sua biblioteca estava sempre impecável, como foi mostrada. Isto me veio à mente quando revi o título “A geometria da paixão”, que encabeça o sumário do livro que reúne sua poesia desde os idos de 1986, “Nem morrer é remédio”.
Manter uma biblioteca arrumada requer um esforço tão inútil quanto o de enfeixar paixões em figuras geométricas. O poeta HBF pode muito bem ser considerado um Sísifo com dupla jornada de trabalho.
Nunca estive pessoalmente na biblioteca de Hildeberto, mas sou freqüentador assíduo de sua poesia. O problema é que o poeta produz muito, produz efusivamente, o que me faz de vez em quando perder o fio da sua poesia. Mas agora o problema está resolvido. Tudo o que ele escreveu, pelo menos até uma certa parte do ano passado, está aqui, na minha frente.
O título do livro deixa o leitor em dúvida: “Nem morrer é remédio”. Remédio pra quê?, pergunta o leitor. E na falta de resposta do poeta o leitor tem que seguir sozinho em sua busca. Pra vida não pode ser, pois, para esta, a morte é, sim, um ótimo remédio. Da mesma forma que remedia a solidão, a tosse, a falta de dinheiro.
O que a morte não remedia, sugiro eu, é a busca incessante do poeta, de todos os poetas, de uma forma que dê conta de toda a sua angústia frente ao mistério do que ele apenas vislumbra na penumbra dos seus sonhos. E depois de tanto desarrumar seus livros em busca das palavras que o socorram na construção de tanques geométricos para suas paixões, o poeta morre de olhos secos e mãos vazias. Mas é aí que nem a morte é remédio.  Morto este poeta, logo outro Sísifo tomará o seu lugar.

21 janeiro 2013

O homem que lê




Vamos falar de Solha. Tudo bem, mas de qual Solha? Porque temos o Solha romancista, o poeta, o ensaísta, o cronista. Temos também o Solha ator de teatro e cinema, o letrista, o pintor... Mas tem um determinado Solha que é maior do que todos esses outros: o Solha leitor.
Um outro Solha, o conversador, me contou que, há muito tempo, uma luz acesa, numa constância sem igual, assombrava aquela gente da cidade de Pombal. Debaixo dessa lâmpada estava o bancário W. J. Solha que varava as noites devorando todos os livros que lhe caíam nas mãos. Ele estava encantado com a qualidade cultural das pessoas da pequena cidade paraibana que lhe emprestavam os clássicos nacionais e estrangeiros. Até que um dia, por conta do acúmulo de noites insones, o leitor voraz desmaiou a caminho do expediente no Banco do Brasil.
Até hoje Solha lê. E lê muito. E porque muito lê, muito escreve. E escreve também sobre o que lê. Um dia desses, eu estava no quiosque dos Correios do Bairro dos Estados, postando uns exemplares do Baú do anão, meu último livro de contos. Como acontece de vez em quando, lá estava Solha com um monte de exemplares do seu último livro (não sei se ainda é o último) para enviar a alguns privilegiados. Aproveitamos para trocar figurinhas. Dei a ele o meu Baú e ganhei um exemplar da sua coletânea “Sobre 50 livros (brasileiros/contemporâneos) que eu gostaria de ter assinado”.
Deixei o livro na cabeceira para ir mordendo aos poucos. São comentários, alguns tendendo para o ensaio, sobre obras das mais diversas categorias. Livros de poemas, contos, romances e memórias, recebem o olhar calejado de Solha, mostrando o que o leitor comum não vê.
O mais importante deste livro é que Solha não se deteve a resenhar ou comentar apenas autores consagrados que viessem corroborar o seu refinamento de leitor. Tem gente que somente uns poucos leitores paraibanos conhecem. Claro que não concordo com algumas escolhas, mas isto não tem a menor importância. Mesmo porque sou autor de um dos livros comentados, o romance “Memória do Fogo”. E para mim é um grande privilégio ter roubado algumas horas de sono deste leitor inveterado.

A voz e o tempo



Quando cheguei e vi a quantidade de jovens espremidos na areia da praia pensei que, depois da apresentação da Renata Arruda, todo mundo iria embora. Restaria apenas um mar de cabelos brancos mal conseguindo balançar suas obesidades à voz nostálgica de um setentão decrépito. Estava redondamente enganado. Quando a banda competente atacou os primeiros acordes da música “Bola de meia, bola de gude”, toda aquela gente, dos adolescentes aos velhotes, cantou ansiosa para que chegasse a voz que daria o verdadeiro tom de todo o show. Todos carregávamos um menino moleque no coração e essa entidade coletiva se manifestava ali, atendendo pelo nome de Bituca, no corpo e na voz de Milton Nascimento.

         Não sei quanto tempo durou o espetáculo. Foi o tempo necessário para  sentir passar as lembrança mais significativas da minha vida. Ali desfilava boa parte da minha trilha sonora. Cada música me lembrava o lugar, as pessoas e as circunstâncias que me rodeavam quando aquele som me surpreendeu.

         O show de Milton Nascimento em João Pessoa serviu para mostrar que nem tudo está perdido em termos de recepção estética musical. Pelo esforço infernal das emissoras de rádio e televisão em nos servir o pior do seu lixo, era de se esperar um retumbante fracasso de um artista refinado, avesso a concessões. E ali estava a prova de que vale a pena se manter íntegro, distante das imposições do famoso “mercado”. Todo mundo que estava lá sabia de cor as canções de Milton Nascimento, das mais antigas às mais recentes.

         Meu coração aos pulos, os olhos afogados em lágrimas, as lembranças afagando o corpo todo, eu me sentia um privilegiado em poder viver aquela dose concentrada de emoção. Como se aquela voz possante e límpida trouxesse todo um tempo no seu bojo. E eu vi plasmados em minha frente os versos de Chico Buarque, em que “o velho cantor subindo ao palco, apenas abre a voz, e o tempo canta”. 

         Ali estava o tempo, o cantor e a voz que nos reúne a todos, mais uma vez, no eterno Clube da Esquina.
  

16 janeiro 2013

Nada de novo





É a quarta vez que começo este texto. Apaguei as outras versões porque todas as ideias que me ocorreram foram descartadas por excesso de pessimismo. Reconheço a dificuldade em encontrar um assunto agradável sem recorrer aos pequenos fatos do cotidiano doméstico. Mal chegamos a viver os primeiros quinze dias do Ano Novo e tudo nos indica que vamos continuar no velho mundo de sempre. É isto o que nos querem fazer acreditar os senhores da economia e da política, desde o mais obtuso vereador aos mais altos mandatários das grandes potências. Desde o técnico de contabilidade da esquina, ao mais festejado economista dos grandes conglomerados financeiros.
Para falar a verdade, nada de muito grave pode nos acontecer se as coisas caminharem, de fato, de mal a pior, como dizem e querem os donos do dinheiro do mundo. Nada pode nos acontecer que já não tenhamos vivido. Se não conseguirmos pagar nossas contas, vão nos tirar o cartão de crédito, o cheque especial e mandar nosso nome para o Cerasa. Já vivemos isto nos tempos de Fernando Collor. O governo pode deixar o funcionalismo público sem reajuste por anos a fio. Fernando Henrique já fez isto. A inflação pode voltar aos píncaros dos dois dígitos. Isto já aconteceu no tempo de Zé Sarney. Não vamos nos preocupar com os apagões, pois o País está caminhando para uma recessão e não vamos precisar de energia para tocar a produção industrial, do mesmo jeito que aconteceu também nos tempos do FHC. E a roubalheira que está comendo solta na construção dos estádios para a Copa é só uma reedição do que se roubou no tempo da construção de Brasília.
         Nada, portanto, de novo. Felizmente, digo eu. Pois o bom e velho sol continua nascendo todos os dias. Tem o mar enchendo e vazando como faz desde o começo do mundo. Tem sempre um resto de verde resistindo ao descaso dos poderosos. E tem os amigos, os antigos e os novos. Tem o pessoal mais querido que ama e briga com a gente, dependendo da veneta. Tem os livros para ler e reler. Tem os filmes para assistir, tem música para ouvir e dançar.
         Estamos apenas começando mais um ano. Todo mundo sabia que logo-logo ele deixaria de ser novo. Vejo o calendário e penso na trabalheira que temos pela frente. Às vezes me dá um desânimo, mas me lembro que o cronista Antônio Maria se dizia “brasileiro, profissão: esperança”. Eu que também sou cronista e brasileiro, me sinto também condenado a esta profissão de alto grau de insalubridade.

07 janeiro 2013

Problema com passarinho




Nesse fim de ano minha mulher decidiu armar duas árvores de Natal. Uma, melhorzinha, na sala, e outra, mais mufamba, no terraço lateral, pois seria o lugar mais adequado para distribuir os presentes, por conta do calor que não tem neve de algodão que alivie.
Passou o Natal, o Ano Novo e chegou o dia de Reis, data base para o desmonte dos enfeites natalinos. Pois bem, na manhã do dia sete, descobrimos que tem um casal de passarinhos fazendo um ninho na árvore de Natal do terraço.
É impressionante como as coisas estão mesmo de cabeça pra baixo. Um passarinho não discrimina mais um amontoado de plástico de uma árvore de verdade. Aliás, esse não é o meu primeiro problema com a maternidade alada. Uma rolinha, sabidamente uma ave de arribação, fez um ninho na pitangueira em frente ao meu quarto e nunca mais arribou pra canto nenhum. Faz quase um ano que está lá, sendo disputada pelos machos da sua espécie. Já me acostumei aos seus arrulhos nas primeiras horas da manhã, mas continuo achando que ela deve seguir a rota migratória da sua laia. Mas ela não está nem aí em seu sedentarismo promíscuo. Semana passada, encontramos um ovo novo no seu ninho. Será mais uma criança sem pai neste mundo.        
A vizinhança da rolinha é mais preocupante, pois preciso fazer uma poda na pitangueira, agora que acabou a safra generosa do ano passado. Mas me vem um drama de consciência, pois temo desguarnecer o ninho que está situado no pé do galho que mais precisa ser cortado.
Definitivamente, sou um desadaptado em relação às leis naturais. Qualquer animal menos culpado teria violado o ninho da rolinha e devorado seus ovos, quem sabe até a própria inquilina.  Qualquer ser humano menos conflituado teria mandado o casal de passarinhos às favas e desmontado a árvore de Natal com ninho e tudo. Mas eu não tenho essas qualidades fundamentais à sobrevivência e fico aqui, escrevendo, ganhando tempo, até que alguém da casa tome alguma decisão por mim. É no que dá ter intimidade com passarinho.

02 janeiro 2013

O homem que ensina a ver no escuro




Faz algum tempo que escrevi uma crônica sobre a “Igreja Batista”, me referindo ao número de discípulos que gravitam em torno da sabedoria e paciência de João Batista Brito. Sempre me impressionou a capacidade do João em agregar as pessoas, deixá-las à vontade para expressar suas idéias, respeitar a diversidade de opiniões, falar com propriedade e sem empáfia sobre as coisas que lhe concernem. E dentre essas coisas, a que mais lhe concerne é o cinema.
Por isso foi grande a minha alegria em ver de novo a Igreja Batista reunida, desta vez lotando o auditório Linduarte Noronha, da Funjope, para assistir ao filme que Mirabeau Dias fez sobre o nosso JBB. De saída, o título é de fazer inveja a quem vive de escrever: “O homem que vê no escuro”. Minha filha mais velha sugeriu que eu processasse o autor, pois estava na cara que o título foi roubado de mim. Claro que concordei, lisonjeado, e certo de que não conseguiria fazer coisa melhor.
Mesmo um pouco longo para um documentário, o filme é conduzido com mão segura por Mirabeau que evitou o cansaço das entrevistas com a intercalação de trechos dos filmes citados por JBB. Foi divertido ver o tímido João, de jeans surrado e camisa quadriculada, no melhor estilo cow-boy, fazer a performance de um dos contos tirado do seu livro “Um beijo é só um beijo”. 
Sou um mau aluno de João, pois demorei muito a aprender o que diabos era diegese, conceito que ele usa em vestes caseiras, como quem toma café.  Mas o filme de Mirabeau é didático sem ser chato, exatamente como o seu objeto, conseguindo infiltrar em nós as noções mais complicadas da estética, da literatura e, obviamente, do cinema, sem nos fazer bocejar.
Minha mulher saiu da sessão dizendo que tinha assistido a um curso completo de cinema em menos de duas horas. Concordo com ela. Pelo menos uma coisa eu garanto: nunca mais vou ter dúvidas sobre o significado de diegese. E não se espantem quando me virem usar o conceito em uma de minhas crônicas. Será minha forma particular de pagar o dízimo à Igreja Batista e mostrar que não sou tão mau aluno assim.