22 dezembro 2011

Restos do tempo




Resta ainda uma fachada do que antes era casa. As baronesas do açude fingem de pasto para bois imaginários. Fantasmas banham-se nas águas que tomaram os lugares onde se comia, se conversava, se dormia depois do amor. As almas dos bois, dos carneiros e das galinhas misturam-se às alminhas dos pagãos e às almas velhas que de tanto pecar perderam o direito ao repouso eterno. A luz solar afasta qualquer possibilidade de descanso aos mortos prisioneiros de um tempo de nada. Tempo que não passa por não ter para onde passar. Ninguém guarda esses mortos na memória. Ninguém vai reerguer a casa que bóia nas águas do esquecimento.
Esquecer não é passar. O tempo sabe disso. O tempo sabe também que a memória é coisa viva, mutante. De tempos em tempos, a memória se transforma. As dores se dissipam, os males se dissolvem. A dor e o mal são apenas sinais do que não deve ser repetido. O tempo é isto. Uma estrada marcada por sinais. Ali fomos felizes. Mais adiante sofremos. Logo depois tivemos um pouco de paz. O tempo é nossa matéria e nosso herdeiro. Pois quando não pisarmos mais o chão da terra, será o tempo que dirá de nós aos que ficam. Será também o tempo que cuidará do nosso esquecimento.


Estamos um ano a menos do nosso destino de ruínas. Mais cedo ou mais tarde, as águas inundarão o campo a nossa volta. E quando alguém passar nos lugares em que um dia vivemos, verá talvez um açude coberto de baronesas onde antes pastávamos com os bichos. E caberá somente ao tempo determinar se uma mínima fachada restará como memória do corpo que nos serviu de morada.

15 dezembro 2011

Presenças




Estamos todos reunidos novamente. Sem exceção, pois mesmo os invisíveis são pressentidos em algum canto da sala. Alguns destes não puderam vir, mas estão em algum lugar do mundo a se lembrar de nós. Outros deixaram de vir porque se foram definitivamente. Mas não interessam onde estejam realmente. Estão todos aqui. Se apurarmos os ouvidos, ouviremos suas vozes em meio à algazarra dos visíveis. Aqui e ali, eles deixarão entrever a marca registrada de um gesto, uma forma de olhar.

Estamos todos reunidos novamente. Alguns deixam bem claro o prazer de conviver conosco mais esta noite. Outros manterão o olhar vago e a expressão ausente de quem não está nem aí. De corpo inteiro ou três por quatro, é bom que nos vejamos mais uma vez. Alguns são velhas companhias de nossa trajetória pelo mundo. Outros só recentemente vieram se juntar à caminhada. Mas um fio de afinidade nos une a todos. E, um pouco mais, um pouco menos, todos nos queremos bem.

Sei que alguns solitários se sentirão excluídos desta crônica. Mas lembro a estes que uma sala virtual pode reunir todos os seus ausentes. A memória tem esse poder de atravessar o tempo e acender a lembrança desses que, por um motivo ou por outro, já não nos convivem mais.

A cada ano que passa, vai sumindo o sentido do Natal como uma festa cristã. Nos filmes de minhas netas, o velho do ho-ho-ho tomou definitivamente o lugar do aniversariante. O frenesi da lista de presentes substituiu o culto do eterno renascimento da esperança. Se quisermos, portanto, resguardar o sentido desta festa, temos que celebrar com ela a esperança. Claro que os dias que se seguirão darão um jeito de nos mostrar que nossa esperança é vã. Mas é preciso teimar em mantê-la como a única força capaz de nos unir em busca de um mundo mais fraterno, onde possamos conviver em paz com a presença dos nossos vivos e a memória de nossos mortos.

Imagem obtida em: http://www.ivanjeronimo.com.br

09 dezembro 2011

Demasia




Tudo demais é demasia. Eu ouvia sempre esta sentença dos meus pais, toda vez em que me excedia em alguma coisa. Bebida, comida, até mesmo estudo em excesso, diziam eles com grande sabedoria, fazia mal à saúde. Mais uma vez sou obrigado a concordar com meus velhos quando leio a afirmação de especialistas que exercício em excesso pode danificar o coração. Segundo os pesquisadores de uma universidade de Melbourne, da Austrália, “exames de ressonância magnética de 40 atletas que se preparavam para participar de eventos esportivos extremos, como triatlos ou competições de ciclismo em montanha, revelaram que a maioria apresentava distensões no músculo cardíaco”.

Eu tinha um amigo que vivia tirando sarro com a minha tendência à inércia. Ele corria na praia, jogava vôlei, tomava sauna. Ao vê-lo suado e esfalfado, eu retrucava: vais morrer com a maior saúde. Eu disse que tinha um amigo. Pois é. O amigo morreu. E o que é pior, sem saúde. Talvez sua mãe não o tivesse advertido de que tudo demais é demasia. Bebia demais, morreu cirrótico.

Já prevendo que alguns sedentários folgados como eu iam querer tirar proveito da pesquisa, os médicos se apressaram em dizer que não se deve concluir desse estudo que os esportes extremos sejam ruins para a saúde. Nem que as pessoas devam deixar de fazer exercícios tendo como desculpa os dados de uma pesquisa não conclusiva.

Não quero ser mal conselheiro instigando os atletas de fim de semana a pularem a pelada e partir direto para a roda de cerveja. Nem tampouco contribuir para o prejuízo das academias que vivem do sentimento de culpa dos que perdem muito tempo em frente ao espelho. Não nego que, de vez em quando, eu mesmo vou com minha mulher dar umas passadas na calçada do Cabo Branco. Mas estou sempre atento a outra pérola dos mandamentos dos meus pais: “boa romaria faz quem em sua casa está em paz”.

Imagem obtida em: http://soky-tf.blogspot.com

03 dezembro 2011

Vida longa







As estatísticas não mentem. O IBGE afirma, em suas cabalísticas Tábuas Completas de Mortalidade, que a expectativa de vida dos brasileiros cresceu em três meses e 22 dias. Vejam bem que vantagem. Em 2009, eu estava jurado para morrer com 73,17 anos. Em 2010, meu prazo de validade passou para 73,48 anos.

Longa é a arte, breve é a vida, já dizia Hipócrates, citado por Jobim. Pelos números das Tábuas, minha vida ficou um pouquinho menos breve, o que poderia muito bem ser aproveitado para produzir um pouco mais de arte.

Mas o que eu poderia produzir nesses quase quatro meses de prorrogação? Vamos por eliminação. Escrever um romance seria impossível, pois com esse tempo eu não sairia da frase inicial, aquela que dá mais trabalho ao escritor. Melhor se contentar com um bom conto. Mas como um conto precisa de uma gaveta confortável para descansar e mostrar a que veio, acho que não sairia de lá antes de uns bons seis meses. Um poema, então. Tentemos um poema. Mas um poema, como eu mesmo já disse, “não é coisa que se tem todo dia”. Pode muito bem acabar o meu tempo adicional e não aparecer nada que mereça ser chamado de poema.

Então, como eu mesmo também já disse, “todo dia o que se tem é viver”. E aqui está a solução sobre o que fazer nesses 142 dias que me sobram. Viver, simplesmente. Ou melhor, deixar a vida me viver. Bestar, no melhor sentido que este verbo possa ter. Ficar como besta, pastando na relva, ruminando o tempo na companhia de outros indivíduos da minha espécie, mugindo ou berrando de vez em quando, pelo simples prazer de anunciar que ainda estou vivo.