27 setembro 2009

Lembrança




Traga uma lembrancinha pra mim, ela pediu. Qualquer coisa simples que faça você lembrar de mim, ela falou, oferecendo a boca para a despedida.
Ele entrou no ônibus sabendo o cansaço que o esperava. Ia para longe, alto sertão, mais de doze horas de viagem. Cidade perdida entre serras. Ia ser difícil encontrar alguma coisa para ela.
O ônibus rolando pela estrada reta, hipnótica. O sol da tarde batendo de frente, ofuscando através do vidro fumê. Impossível dormir. O olhar compulsório não registrava nuances. Vastas planícies de vestes rasteiras e o horizonte de serras inalcançáveis.
Saiu no começo do dia, chegou no começo da noite. Um resto de luz teimando no poente, um resto de calor que cedia à frieza. A pousada em penumbra. A noite revirada na cama. A manhã que custou a chegar.
Com a manhã, os passarinhos. De onde vinham e para onde iriam tão logo o sol esquentasse? E as pessoas, onde estariam com suas vozes arrastadas e suas poucas respostas? E os bichos pequenos que não se mostravam, chispando entre as folhas ralas dos arbustos?
Era muita luz para o pouco a ser iluminado. A palavra agreste armou-se em todo seu sentido. Luz demais sobre quase nada. E este era o desafio. Forçar os olhos a ver o que a luz escondia. Inventar sombras. Criar movimentos.
Lembrança. Que lembrança levar para ela. Nada para comprar, nem pedir, nem achar. E estes olhos viciados aos contrastes chapados dos signos urbanos eram cegos para a beleza cantada pelos versos agrestes dos poetas.
Lembrança. Era isto que tinha para dar a ela. A lembrança dela o tempo todo enfeitando a paisagem impenetrável. Ela mesma impedindo que a paisagem se abrisse aos seus olhos. Era ela, a lembrança dela que o impedia de encontrar alguma coisa que levasse de lenbrança.
Foi isso que ele deu a ela. A lembrança dela o tempo todo ofuscando a visão, saturando a memória. Foi isto o que tentou dizer ao mostrar as mãos vazias e as retinas fatigadas com a imagem dela.

Ronaldo Monte – Clube do Conto da Paraíba.

Imagem obtida em:uni-adversidade.blogspot.com

17 setembro 2009

Sala de visita



Antigamente, as casas tinham sala de visita. Nem todas, é claro. Mas uma família de classe média tinha por obrigação ostentar uma sala de visitas. Geralmente, era o primeiro cômodo da casa e ali não se podia entrar a qualquer hora. Muitas delas eram trancadas a chave.
E não era qualquer visita que era recebida na sala de visitas. Os parentes próximos e os amigos mais chegados ficavam espalhados no terraço ou iam direto para a cozinha. Na sala de visitas, apenas certas visitas. Daí um certo alvoroço quando arrumavam a dita sala. Quem vai chegar?
Gralmente eram chatas as pessoas recebidas na sala de visitas. Gente de alguma importância, parentes distantes e cerimoniosos, mulheres eretas sorvendo sem barulho as pequenas xícaras de café.
As casas de hoje não permitem mais o luxo das salas de visita. Nos exíguos apartamentos, tipo já-vi-tudo, se entrar mais de quatro pessoas, alguém vai ficar em pé. Tanto melhor, pois nos livramos dos chatos e cerimoniosos. Em nossas casas, hoje, só entra quem nos quer bem. E os pequenos espaços nos dão a medida dos laços das nossas amizades.


Imagem obtida em: sedeieqblumenau.files.wordpress.com

10 setembro 2009

fotopoema




Foto de Ana Patrícia
http://www.flickr.com/photos/anap

02 setembro 2009

Index das cantigas




A presença das netas reestabeleceu aqui em casa o hábito de ouvir cantigas de roda. Por isso, de vez em quando fico pensando na mania recente de algumas “tias” em alterar certas cantigas, temendo que o teor de suas letras estimule tendências agressivas e politicamente incorretas nas nossas inocentes criancinhas. O exemplo clássico é a campeã de audiência “Atirei o pau no gato”.
Numa tentativa de contribuir para o novo “index librorum prohibitorum”, quero dedurar algumas modinhas que, no meu fraco entender, vêm há séculos pervertendo os hábitos e pensamentos dos nossos rebentos. Em primeiro lugar, denuncio a baixaria entre o Cravo e a Rosa. É coisa digna do programa do Datena. Sabe-se lá por quais motivos, o casal de engalfinhou em público debaixo de uma sacada, tendo como desfecho um ferimento de graves consequências no Sr. Cravo e a total destruição das vestes da Dona Rosa. Não bastasse o nível da agressão, ressalte-se ainda o total descaramento do casal, pois, no outro dia, a moça foi visitar o amante no hospital, reatando o caso amoroso entre suspiros e desmaios.
Caso menos complicado, mas nem por isso desculpável, é a má sina de um certo indivíduo que responde pelo nome de Sambalelê. Boa coisa o elemento andou fazendo, pois já levou uma surra, que o deixou doente e com a cabeça quebrada. E a turma ainda acha que ele precisa de umas boas palmadas. Outro cara que deve ser seu cúmplice, um tal de Bitu, quando chamado às falas, recusa-se a comparecer com medo de apanhar.
Se formos devidamente rigorosos e excluirmos dos cancioneiros de roda, além das cantigas claramente agressivas, aquelas que fazem alusão ao sexo nos mais diversos níveis (vide Terezinha de Jesus, a Pobre viuvinha, Desanda a roda, etc.) muito pouca coisa restará para ser cantada pelas nossas crianças. Então, para o alívio das “tias” politicamente corretas, elas estarão totalmente liberadas para se entregar ao universo poético do funk e do forró eletrônico.


Imagem obtida em: brincadeirasdecrianca.com.br