27 novembro 2010

Os ratos de Los Angeles



Um homem morava com sua filha em Los Angeles. Ele tinha problemas mentais, e sua filha, provavelmente, também, pois adotou uma ratazana grávida como bicho de estimação. Com o tempo, aconteceu o inevitável: os filhotes se reproduziram como ratos e praticamente consumiram a casa do homem e da menina.
Neste ponto, entra na história a North Star Rescue, uma ONG dedicada à proteção dos animais. Pois é. A entidade fez isto mesmo que você está pensando. Recolheram os pobres animais sem teto em um enorme galpão e foram procurar lares adotivos para cerca de mil roedores. Se você não tiver um lugar confortável para instalar um casal destes amáveis bichinhos, pode mandar doações de alimentos. A ONG sugere que você envie cereais saudáveis que serão misturados com comidas para rato, macarrão, frutas secas e soja.
Não consigo distinguir a ironia embutida na notícia. Por um lado, a ONG pode estar querendo por a nu a nossa hipocrisia patente na predileção afetiva a certos animais (gatos, cachorros e mesmo os hamsters, primos sofisticados dos gabirus) enquanto outras espécies, como ratos, sapos, cobras e morcegos, são reservados ao nojo e à violência dos humanos.
Por outro lado, todo o episódio talvez venha revelar a falta de interesse que a mídia e a piedade humana dispensam a certas situações de desamparo. A notícia, publicada pela BBC, não traz nenhuma referência à intervenção de qualquer entidade, governamental ou não- governamental, em favor do pai e da filha que perderam a casa. Se não fosse a insólita intervenção da ONG, continuariam lá, no esquecimento reservado aos loucos, aos pobres, aos desabrigados.

18 novembro 2010

O paletó de Mia Couto




Quem me conhece de perto, sabe que sou um invejoso incorrigível. Tenho inveja, principalmente, de quem escreve bem. Seria natural, portanto, que eu tivesse inveja do estilo de Mia Couto. Ou da devoção com que é tratado pelas mulheres.
Nada disso. O que mais quero ter do Mia Couto é um paletó que ele usou na sessão de autógrafos da Flip de 2006. Além do corte perfeito, era feito com um tecido leve com finas listras azuis sobre um fundo branco. Nada mais adequado para o clima quente e úmido de verão em Parati.
Saí da fila de autógrafos me roendo. Nada mais adequado para mim naquele momento do que andar cabisbaixo pelas ruas coloniais. Coisa que poderia ser natural, pois todos ali têm que andar de cabeça baixa para evitar tropeções nas pedras desalinhadas dos calçamentos centenários. Mas minha cabeça baixa tinha outro motivo: a inveja. E minha inveja tinha um objeto claro: o paletó de Mia Couto.
Desde então, minha vida virou um tormento. Vasculhei as lojas de roupa de todos os lugares por onde passei de 2006 para cá. Vasculhei a internet, pedi a ajuda de amigos... Nada. Parece que só fizeram um único exemplar do paletó, exclusivamente para o escritor de Moçambique. A intenção era clara. Eu poderia, com bastante esforço, chegar a escrever tão bem quanto o Mia Couto. Poderia até alcançar a devoção de algumas mulheres. Mas o paletó, aquele paletó, eu não o teria jamais.
Este fim de semana, Mia Couto estará em João Pessoa. Vai conversar com o seu vasto público no auditório da Estação Cabo Branco. Claro que eu vou estar lá. Mas não garanto nada do que possa acontecer com ele se estiver usando o meu paletó.

07 novembro 2010

Vazio





Já disseram antes de mim, mas é como estivesse dizendo pela primeira vez: na medida em que envelhecemos, o mundo vai ficando cada vez mais vazio. Cada morte de um amigo nos deixa uma parte do mundo em escombros, como a explosão de um obus.
Hoje, meu mundo ficou mais vazio. Mais um pedaço de sua construção ficou em ruínas.
Morreu Luís Martinho Maia.
Maia será lembrado por muitos pelo mestre que formou gerações de psicanalistas na Paraíba. Será lembrado por muitos dos que beberam de sua sabedoria nas salas de aula do Departamento de Psicologia da UFPB. Mas só os que provaram da sua amizade poderão avaliar o verdadeiro sentido da sua perda.
Cada um, certamente, se lembrará com carinho de um ou muitos momentos de intimidade com o Maia. Eu tenho muitos momentos desses gravados na memória. Um deles, porém, me volta sempre à lembrança, como a maior oferta de cuidado que se possa receber de um amigo.
Eu e Glória tínhamos perdido um filho com cinco anos de idade. Foram muitos os amigos que cuidaram de nós nesse momento de franco desespero. Mas foi o Maia que fez por nós o que a dor nos impedia de fazer. Ele estava em nossa casa e acompanhou todo o nosso esforço em acalmar e botar para dormir o nosso filho mais novo. Então, ele tomou o menino nos braços, foi com ele para a calçada e lá ficou até que o nosso filho parou de chorar e dormiu.
É esta lembrança que me enche os olhos de lágrimas agora, em que tento escrever esta homenagem ao amigo morto. É esta lembrança que torna o meu mundo menos vazio, mesmo com o desaparecimento do amigo. E será esta lembrança que me salvará todas as vezes em que eu me sentir vazio de amigos.