25 fevereiro 2008

O BICHO RÓI-RÓI



Repara que nas tuas horas mortas
tu sentes se mover dentro de ti
uma coisa que até agora
não sabias o nome.

Mas hoje eu vou te revelar
o nome disto que te come:
é o bicho Rói – Rói.

Ele se alimenta dos fios da tua alma,
deixando-a rota,
em frangalhos.

Ele rói tuas lembranças, teus segredos.
E os teus mais belos sonhos
ele rói-rói-rói.

E o vazio que ele deixa é que te dói.

19.02.2008
Ilustração obtida em www.qpira.com.br

21 fevereiro 2008

Todas as cores


Na última vez que vi Balula, eu estava saindo da Funjope e ele ia chegando. Conversamos um pouco e, quando eu ia dando partida no carro, ele recomendou: bota o cinto.
Na penúltima vez que vi Balula, ele falou que era avó da minha neta, por conta de uma forte ligação afetiva com Ivan, marido da minha filha. Aí eu falei pra ele: cuidado que o lobo-mau pode comer você. Ele respondeu: Deus te ouça.
Balula era assim, cuidadoso e irreverente. Quando a gente se juntava para jogar conversa fora, a tema preferido era sobre os várias nomes que o preconceito dá aos os negros. O que a gente preferia era “cidadão de cor”.
Hoje, me dou conta que Balula é exatamente isto. Um cidadão de cor. De todas as cores. Como um arco-íris. Um pouco puxado para o lilás.
Balula foi-se embora no meio de um eclipse. A lua vestiu luto fechado pela sua morte. Mas o luto durou pouco, pois logo-logo a lua voltou com um brilho maior. Tinha recolhido um dos seus filhos mais reluzentes.
De hoje em diante, quando olharmos para a lua, vamos notar que em vez da palidez costumeira, ela mostra a cara pintada de todas as cores. As cores de Balula. Sempre um pouco puxado para o lilás.
Foto: Mano de Carvalho

17 fevereiro 2008

Máscara



Não gostava daquela pessoa que o olhava no espelho. Custava crer que fosse ele essa pessoa. Pessoa, persona, máscara. É isto que olha para ele. Uma máscara. Simulacro de si, que se diz ser ele. Um faz de conta que os outros cumprimentam pelas ruas, simulam respeito e esperam ver pelas costas para fazer mesuras, estirar a língua, acenar gestos obscenos.
Não gostava do que via, mas ao mesmo tempo temia o que poderia existir além daquela máscara. Que anjo, que monstro, que bicho espreitaria por trás daquele rosto inexpressivo e pálido?
Se arrancasse agora esta máscara, tinha certeza que os olhos restariam os mesmos. Pois eles eram estranhos ao resto do seu rosto. Seus olhos o olhavam com a estranheza de quem está no rosto errado. Eram esses olhos que davam a certeza de que aquela cara não era a sua.
Não suportava mais olhar o rosto que o olhava do espelho. Queria ver-se a si próprio. Para além da máscara. Para o detrás daquela aparência atônita e perplexa. Queria ver o verdadeiro contorno dos seus olhos. Era por amor a seus olhos que estava pronto a se desmascarar.
Pegou uma lâmina afiada e traçou uma linha funda no contorno do rosto. Enfiou os dedos por dentro da pele da testa e puxou com toda força. Sentiu sem horror a pele se despregar do seu rosto até ter toda a máscara pendente de uma das mãos.
E antes que seus olhos se cobrissem do sangue que borbulhava da testa, pôde ver a outra máscara que insinuava uma verdade ainda mais atrás.

Clube do Conto, 16 de fevereiro de 2008.


Ilustração obtida em: tantodemim.blogs.sapo.pt/arquivo/z-mascara.jpg

06 fevereiro 2008

Reicharlesson



Ele não gostava desse nome, mas nunca disse isso à sua mãe. E ela nunca lhe contava direito o motivo de chamá-lo assim. Uma vez dizia que era o nome de um cantor estrangeiro que ela gostava muito, outra vez que era um artista de cinema, mas sempre daquele jeito apressado de quem não está gostando do assunto. E somente para não aumentar a aflição dela, nunca perguntou quem era seu pai.
Quando fez dezoito anos, tomou uma decisão. Ou ela contava toda a verdade, ou ele ia embora de casa. Com tal ameaça, ela não teve outro jeito. Nunca tinha fumado na frente do filho. Mas dessa vez, não dava pra agüentar. Acendeu um cigarro, deu uma puxada profunda, soprou a fumaça em direção ao teto e ainda assim, com os olhos pregados nas telhas, deu dois pigarros curtos e contou.
Lá pelo ano de 1963, eu trabalhava em São Paulo, numa casa de família em Moema. O pessoal da casa era muito bom comigo. O marido era médico, a mulher era socióloga, mas tinha saído do emprego para cuidar das duas filhas. Os dois eram muito inteligentes e gostavam de ouvir música de toda qualidade. Era ele quem mais usava o aparelho de som. Tinha rádio, toca-discos, gravador de rolo, muitas fitas e muitos discos. Eu gostava muito quando ele passava da conta na bebida e botava uns discos antigos para tocar. Vicente Celestino, Carlos Galhardo, Orlando Silva, essa gente. E quando ele bebia um pouco mais, aí é que a coisa ficava boa. Mesmo que a mulher não gostasse, ele se juntava com um amigo da Paraíba para ouvir Jackson do Pandeiro bem alto. Mas quando estava bom, o doutor gostava mesmo era de musica fina.
Não estou enrolando você não. Isso faz parte da história do seu nome. Foi porque os dois gostavam de boa música que eles fizeram o possível e o impossível para arranjar ingresso para a única apresentação de um cantor americano numa televisão de São Paulo. E o nome desse cantor era Rei Charles. Quando eu fiquei sabendo o dia e a hora do show, combinei com o meu namorado para ir lá pra casa. Ele foi. Aí, para saber a hora em que ele devia ir embora, liguei a televisão onde o tal show estava passando. E foi ali, no sofá da sala, as meninas dormindo no primeiro andar, que a gente fez você, ouvindo aquele cego cantar de um jeito que dava vontade de chorar.
Quando eu já não podia mais esconder a barriga, contei tudo à minha patroa e voltei para ter você aqui. Quem botou esse nome em você foi o amigo do meu patrão, num domingo em que eles estavam bebendo. Eu não entendi porque eles ficaram achando graça do seu nome, pois eu gostei muito. Me lembrava um momento muito bom da minha vida.
Reicharlesson sentiu que sua mãe ia chorar. Por isso não perguntou mais nada, mesmo sabendo que aquele era o melhor momento para perguntar quem era seu pai. Levantou da cadeira com cuidado, caminhou devagar para o quarto e se deitou na cama, ouvindo a voz tristonha da mãe que cantava na sala: “Ai quenstop loviniu”. Reichalesson pegou no sono soluçando.

Clube do Conto, 06.02.2008