27 março 2012

Eu, o quase assassino




Ela tem algo de perverso que a leva sempre a repetir os mesmos erros. Ela não respeita os meus espaços, os meus objetos, os meus estados de humor. Ela está sempre onde não deve, fazendo tudo errado, criando problemas com os vizinhos, exasperando os habitantes da casa. Ela é, literalmente, uma cachorra. Tem seis meses de idade e atende pelo nome de Choquita. Já estava aqui em casa, quando vim morar em Cabedelo. Pertence à minha neta e eu não tenho nada a ver com isso.

Na verdade, não tinha nada a ver, pois agora metade do meu tempo é gasta em assistir aos seus malfeitos. A outra metade é gasta para repará-los.

Por conta de uma reforminha que andei fazendo (a última, juro), uma escada externa ficou temporariamente desprovida da proteção lateral. Uma noite, sozinho no terraço, ouço ruídos no telhado. Fiquei com medo de algum ladrão à moda antiga, desses que ainda pulam muro para roubar galinhas. Fui ver, era a dita Choquita que passeava alegremente pelas telhas. Não satisfeita, pulou para cima da casa ao lado, o que me fez, pela manhã, ir pedir desculpas aos vizinhos assustados.

Atualmente, nossas relações estão seriamente abaladas. Gastei tempo, dinheiro e muito esforço para limpar, pintar e cultivar uma pequena jardineira que instalei embaixo da janela do quarto. Cansado do esforço, fui descansar, orgulhoso do trabalho bem feito. A tarde já caía quando saí do quarto para contemplar a obra. O leitor já deve ter adivinhado o que aconteceu: a cachorra, a grandessíssima filha de uma cachorra, havia cavado a terra da jardineira e arrancado as mudas que eu plantara. Claro que eu perdi os meus parcos vernizes pacifistas e parti com toda a ignorância para cima da malfeitora.

Dois dias depois, passada a raiva, reconduzido à minha serenidade civilizada, estou mais uma vez no quarto quando escuto minha mulher dar uma bronca homérica na tal Choquita. Adivinhei o que tinha acontecido e não me atrevi a sair do quarto. A razão dessa vez falou mais alto e impediu que me transformasse num assassino.

Imagem obtida em: http://minhaaruanda.blogspot.com.br

20 março 2012

Falta e presença de Rosa Godoy


Conheci a Professora Rosa Godoy nos tempos de luta do movimento docente da UFPB contra o arbítrio da ditadura militar. Eram muitas as vozes que se faziam ouvir em defesa da autonomia universitária e do restabelecimento do estado de direito. Mas quando chegava a vez da reflexão histórica no contexto das análises de conjuntura, era a voz da Professora Rosa Godoy que se impunha.
Estivemos juntos mais uma vez como membros da equipe do Professor Neroaldo Pontes na Reitoria da UFPB. Ela foi pró-reitora de pós-graduação e soube dar a dimensão exata dos nossos objetivos quanto à pesquisa e à formação do quadro docente.
Cidadã em tempo integral, mesmo nos momentos da boa camaradagem entre os mais íntimos, seu pensamento não perdia o prumo do argumento certeiro e demolidor. Nas reuniões de trabalho, todos esperávamos o momento em que ela tiraria a bic do canto da boca para disparar sua opinião justa e apropriada.     
Agora, a Professora Rosa Godoy deixa a cidade de João Pessoa, de volta a São Paulo, seu estado de origem. Vai retomar de uma vez os “erres” caipiras que as décadas paraibanas não conseguiram eliminar. Não sei os motivos que a levam embora. Mas tenho a certeza de que é uma decisão pensada com cuidado, como todas as outras que ela tomou em sua vida.
Vamos sentir sua falta, Professora. Mas com o mesmo peso, continuaremos a sentir sua presença. Aqui ficam os muitos discípulos que você forjou com o rigor do seu pensamento. Ficam também os muitos amigos que você cultivou com a sua generosidade. Sobretudo, fica para sempre na UFPB e em toda a cidade de João Pessoa a marca da sua palavra exata contra os desmandos e desvarios dos eternos inimigos da cidadania e do bem-estar coletivo.  

11 março 2012

Pessimismo



Algumas pessoas reclamaram do meu pessimismo quanto ao futuro do meu neto João. Acontece que meu pessimismo é congênito. Nasci assim. Mas exatamente por ser assim é que cultivo a esperança, como quem cuida de uma flor rara numa estufa. Vivo procurando motivos para manter uma mínima crença de que o ser humano algum dia venha a mudar sua índole fundada na maldade.
Não é por acaso que as notícias sobre o mal são facilmente aceitas, mesmo procuradas pela grande maioria das pessoas. O feio, o mórbido, o violento recebem tratamento diferenciado nos meios de comunicação, resultando numa via de mão dupla de alimentação: mais notícias ruins, maior audiência. Maior audiência, mais notícias ruins. E se não fizermos um esforço de reação, acabaremos, mesmo os mais lúcidos, envolvidos nesta gosma midiática de pornografia e violência.
De minha parte, este esforço se traduz em resistir à naturalidade do mal com a construção de certos artifícios racionais como a solidariedade, a compaixão e a esperança. Falo de artifícios, pois esses atributos não são congênitos. Eles têm de ser construídos no cotidiano de nossas relações. Todos sabemos o quanto é difícil manter a boa vontade em um meio competitivo e desagregador. Daí que, em boa parte as vezes, somos vencidos pela corrente majoritária do mal. Mas é preciso perseverar.
Não estou propondo que saiamos polianamente tirando lições de otimismo das adversidades. Como o menino de quem ninguém gostava que, ao ganhar uma caixa cheia de excrementos como presente de aniversário, gritou exultante: ganhei um cavalo...
Não é este o tipo de otimismo que desejo para o meu neto João, nem para ninguém. No pouco tempo em que convivermos neste planeta, gostaria que ele aprendesse um pouco dessa teimosia em cultivar numa estufa precária essa flor improvável da esperança. 

06 março 2012

Outras vidas



Certo dia, num encontro festivo, me pediram para falar sobre os amigos e eu disse que os amigos serviam para que a gente pudesse viver simultaneamente outras vidas. E o que eu disse sobre os amigos, repito agora em relação aos livros. Penso nisto porque acabei de ler um dos livros mais belos que já me caíram nas mãos. Chama-se “A trégua”, escrito pelo uruguaio Mario Benedetti.

Fazia tempo que um livro não me puxava para dentro dele e me arrastava sofregamente da primeira à última pagina. Uma história aparentemente simples de um viúvo prestes a se aposentar que se apaixona por uma colega de trabalho com idade de ser sua filha. Acontece que esta história banal é escrita por um dos maiores escritores latino-americanos. E a cada linha do texto somos levados a experimentar certos sentimentos que aparentemente não são nossos, a sentir certas saudades, conviver com um mal-estar que não desconfiávamos existir dentro de nós.

Não concordo com certos escritores quando afirmam que a literatura não serve pra nada. Ela pode não ter valor quando se propõe como mercadoria ou instrumento de persuasão ideológica. Mas a boa literatura tem o poder de nos fazer viver outras vidas, habitar outros mundos, existir em outras eras.

Quando olho de frente para as estantes de uma biblioteca, entro numa espécie de transe, pois me sinto tentado a experimentar de uma só vez todas as possibilidades de existência que cada um daqueles livros me propõe. Os que já conheço, me convidam para uma visitinha para rever alguma cena, ouvir de novo as antigas conversas. Os que não conheço, exigem que os tome nas mãos e os folheie. Querem se exibir, mostrar suas paisagens, me impor novas palavras, me sujeitar a novos sentimentos.

A única solidão saudável é aquela que vivemos num canto com um livro. E a melhor coisa a fazer em seguida é procurar os amigos para falar de mais essa vida que acabamos de viver.