30 setembro 2007

Acoisa pior



Você não podia ter dito coisa pior comigo. Até aqui eu suportei tudo o que você fez e disse a mim e de mim.
Nunca esqueci o dia em que você copiou a minha prova e disse à professora que eu tinha colado de você. A professora acreditou. Levei zero.
Pediu meu canivete emprestado e não devolveu. Me deu um golpe no treino de luta livre sem avisar para eu ficar em guarda. Aproveitou que eu estava no gol, deu um nó na minha camisa e mijou em cima. Fez não sei quantas camas-de-gato quando eu estava distraído, conversando com a turma.
Depois você disse a seu pai que eu tinha emprestado a revista que você levou para o banheiro. Ele me proibiu de ir na sua casa e ainda contou pro meu pai. Não apanhei, mas fiquei de castigo.
Mais tarde você foi dizer à minha primeira namorada que eu tinha contado tudo que tinha feito com ela no cinema. Ela nem falou comigo. Acabou o namoro com um recado.
Há pouco tempo, pediu para eu fazer um empréstimo e não me pagou, sujando meu nome no Serasa. Depois eu vi você pagando uma rodada de cerveja para um bando de vagabundos.
Cantou minha mulher, vomitou no meu sofá bateu com o meu carro. De tudo isso eu desculpei você. Mas você não podia ter dito ou feito coisa pior comigo. Me chamar de irmão é um insulto que eu não agüento.

Ronaldo Monte. Clube do Conto, 27.09.07


Ilustração obtida em portal.educ.ar

27 setembro 2007

O melhor dos mil dias


O governo da Cidade das Acácias, a capital da Paraíba, está comemorando mil dias de trabalho. Já fui redator de propagada e sei o quanto uma boa campanha publicitária pode fazer pela imagem de um governo. Por isso, não vou fazer referência a nenhuma obra física da atual administração municipal. Porque de tudo o que foi feito, o que mais me encanta é o respeito que os motoristas passaram a ter com os pedestres que atravessam as faixas. Bastou uma campanha de alguns dias. O resultado foi imediato.
Antes que algum apressado venha perguntar como um comportamento social pode ser classificado como uma obra governamental, explico que a conduta das pessoas, individual ou em grupo, refletem a relação dessas pessoas com o poder público. O respeito dos motoristas reflete o respeito com que vêem ser tratado o bem público desta cidade. E a confiança dos pedestres de que os veículos respeitarão a sua presença na faixa, reflete a confiança no estímulo à cidadania dos que governam a cidade.
Aos que não concordam com este raciocínio, peço que analisem os exemplos negativos nas relações dos cidadãos com outras esferas do poder.
E para quem ainda acha que estou falando bobagem, sugiro que experimente a cumplicidade cordial na troca de olhares entre o pedestre e o motorista no breve tempo do atravessar da rua. Eu já experimentei os dois lados da cena. Nos dois lados me senti gratificado como cidadão.

22 setembro 2007

Massapê

O oleiro achou engraçada aquela figura que andava por cima da ribanceira do rio com uma das mãos estendida levando alguma coisa que não sabia ainda o que era. Parou a roda do torno com o pé, e ficou esperando. A figura veio vindo, veio vindo e se mostrou um menino já meio taludo, as calças curtas molhadas, com um montinho de massapê na mão estendida, como quem pede esmola.
O menino ficou assim por um bom tempo, até que os seus olhos chegados da luz se acostumassem às sombras daquele lugar. Um teto de telhas escuras vai se abaixando até ficar quase da altura de um homem. No meio do calor do meio-dia, ali fazia uma friagem gostosa que vinha do monte de barro molhado descansando no chão. Montadas nas prateleiras, arrumadas nos cantos das paredes, muitas, muitas peças ainda cruas, curando, perdendo a água que ainda lhes resta, esperando a vez da sua fornada. Dependendo de onde vinha, o cheiro era diferente. Do monte de barro molhado vinha um cheiro parecido com o que ele sentiu lá na beira do rio. Do lado da parede onde descansavam as peças o cheiro era seco, lembrando alumínio. Juntando tudo, o cheiro do lugar lembrava o da cozinha da sua casa. Faltava o cheiro da comida. Mas o cheiro das cinzas por debaixo das panelas de barro em cima do fogão da sua casa estava ali. O menino só não sabia onde. E ficou meio perdido nesse cheiro, nessa quase catinga que morava no fundo da sua memória e se mudava para ali.

Tu qué o quê, Massapê?
O senhor deixa eu cozinhar esse peito no seu forno? Que história de peito é essa, Massapé? Isso é somente um pedaço de barro. Não é não, o senhor vai ver. Botou a porção de barro na roda de cima do torno, sentou afobado no banco alto de madeira e tentou alcançar com o pé direito a roda de baixo. Mas a perna era curta, ficou remando no ar. O oleiro teve vontade de rir, mas não riu. Trabalhe só com as mãos, pode ser que saia alguma coisa que preste. E se afastou em direção à sua casa ali perto, como se procurasse não se sabe o quê.
O menino olhou para a massa, agoniado. Não sabia o que poderia fazer com o peito de barro da sua mãe. Deixou então que suas mãos trabalhassem sozinhas, que batessem e amassassem o barro para que o ar saísse das bolhas, até que ele ficasse macio; que catassem na massa os grãos de areia, os restos de mato ou qualquer outra sujeira; que fossem apertando o barro entre os dedos e as palmas, beliscando a massa, arredondando com cuidado suas bordas, passando água por dentro e por fora para ficar lisinho, até que tinha entre as mãos uma tigela em forma de peito.
O oleiro voltou quando sentiu que o menino tinha acabado sua obra. O que é isso agora, perguntou. É o mesmo peito de minha mãe, só que agora eu vou poder mamar nele. Tudo que eu beber daqui em diante vai ser nessa tigela que eu mesmo fiz com o peito que eu trouxe de dentro da terra, de um lugar em que minha mãe sofria de agonia e eu saí de lá deixando ela morrer em paz. Aí ela me deu esse peito, para que eu sempre me lembre dela, para que eu carregue pro resto da vida essa parte do corpo que ela nunca me deu.
E nele eu vou beber o leite que minha mãe me negou, que meu pai enterrou, que a terra engoliu, que o barro me devolveu. E foi com essas minhas mãos que eu botei de novo no mundo o peito que o mundo me levou.
Do romance Memória do fogo. Editora Objetiva, 2006.

18 setembro 2007

Virar Moça




Uma vez, uma mulher do riacho perguntou meio debochada: tu já virou moça, menina? Não sabia o que era virar moça. Sabia naquela hora que não podia ser uma coisa boa, pois todas as mulheres pararam de areiar as panelas para rir de minha cara encabulada.
Virar moça, virar moça... Minha mãe devia saber o que era, pois me contava histórias de homem que vira lobisomem, de mulher de padre que vira mula-sem-cabeça, de mulher corcunda que vira serpente quando fica velha. Quando cheguei em casa, fui direto pra cozinha e disse: mãe, uma moça do riacho perguntou se eu já tinha virado moça. Eu já virei? Ainda não, respondeu ela. Quando virar, você mesma vai saber. Agora vai cuidar de tuas coisas que eu tenho mais o que fazer.
Virar moça... O nome da minha vó é Dona Mocinha. Mas não acho que a mulher do riacho perguntou quando é que eu vou ficar velha. Ela perguntou se eu já tinha virado moça. Moça, que eu saiba, é uma mulher nova que ainda não chega a ser mulher. As moças que eu conheço têm mais corpo do que eu, têm as pernas mais grossas, a cintura mais fina e têm os peitos grandes. Os meus ainda não nasceram. A não ser que eu chame de peito esses carocinhos que estão aparecendo. Um dia eu vinha do riacho com o vestido molhado colado no corpo e um homem safado que bebia cachaça no balcão da venda gritou: olha as pitombinhas dela. Daqui a pouco ela vira mulher. Aí é que eu fiquei embaraçada. A mulher do riacho diz que vou virar moça. O homem da venda diz que vou virar mulher. Alguma coisa, na certa, estou virando. Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim.
Ai esse corpo que não se aquieta. Esse formigamento nas pernas, essa agonia nas juntas, essa vontade de chorar não sei por que. Ai essa vontade de gritar, de cantar, de ficar muda pelos cantos. Ai esse calor que não passa, esse suor leitoso nessa cama que ficou pequena pra meu corpo. Ai essa coisa molhada e peguenta entre minhas pernas. Meu Deus, eu me cortei? Alguma coisa se rasgou dentro de mim? Que sangue é esse que sai do meio de minhas coxas? Mãe, me acuda, me acuda minha mãe, que eu estou sangrando.
A mãe chegou, me entregou uma toalhinha e disse sem olhar na minha cara: bota isso entre as pernas. Não tome banho frio, não faça trabalho pesado, não fique muito no sol, não passe nem perto de um pé de limão. Agora você virou mulher, já pode ter filho.
Então, o homem da venda ganhou. Minha mãe disse que eu virei mulher. Mas eu queria ter virado moça. Queria ter peito grande, duro. Queria ter coxa grossa, cintura fina. Queria ir no cinema, namorar, dançar bolero. Mulher, eu não queria ser não. Mulher é feia, tem peito mole de tanto dar de mamar aos filhos.Não tem cintura de tanto que pariu. Mulher não sai da cozinha, não se penteia, não dá passeio. Mulher é uma coisa triste. Eu não. Eu quero ser moça.
Do romance Memória do Fogo. Editora Objetiva, 2006.

11 setembro 2007

Marcela, a morta viva


Marcela já era bonita.Mas queria ser mais. Daí que vendeu o carro, tirou empréstimo, torrou o cartão de crédito e fez uma reforma geral. Fez lipo, fez peeling, mexeu no nariz, botou um tantinho de silicone, salpicou aqui e ali um pouco de botox e pronto: Marcela ficou belíssima. O resto era com seu personal training e o regime draconalfaciano.
Aí começou a acontecer uma coisa esquisita com Marcela. Passou a ter a impressão de que ninguém mais a via. Sua empregada servia o café da manhã com o olhar perdido para além das paredes da copa. Decidiu almoçar em self-service depois que os garçons do seu restaurante favorito começaram a passar por ela sem atendê-la. Os seguranças do condomínio abriam os portões sem ao menos olhar para dentro do seu carro. As amigas,embora a tratassem bem ao telefone, deixaram de convidá-la para as festas. E os homens, meu Deus. Os olhos dos homens, para quem tinha feito todo este sacrifício, atravessavam seu corpo como se ela fosse um fantasma.
Um fantasma, é isto. Acho que morri. Por isso as pessoas não me vêem, não me notam. É isto, morri e ainda não me dei conta. Já tinha lido alguma coisa assim numa revista esotérica.
Era uma hipótese viável, mas algumas evidências mostravam que ainda estava viva. Mesmo sem olhar para ela, a moça da butique ainda tinha paciência suficiente para tirar e repor nas araras todos os vestidos que ela pedisse. Seu dentista, mesmo com o olhar alheio, não deixava de roçar-se no seu braço direito enquanto a imobilizava na cadeira. A fatura do cartão de crédito era uma testemunha irrecusável de sua presença encarnada neste mundo.
Tinha que procurar ajuda, mas de quem? Estava devendo ao analista, não queria aumentar mais a conta. Claro que não era louca de entregar um prato feito destes a nenhuma amiga. Tinha que ser um homem. Um amigo de confiança que possuísse uma virtude rara entre os homens: a de entender uma mulher. André. Só podia ser André. Pela coleção de namoradas que exibe com modéstia, ele deve entender muito de mulher. Além de tudo é poeta de poesia sutil, de quem cultiva uma certa alma feminina. Só pode ser André. Foi procurar André.
Escuta, Marcelinha, falou André, montado em sua estatura de poeta, o olhar lançado por cima da morta viva. Escuta, meu amor: você já deve ter ouvido falar de que certas pessoas, por conta das funções subalternas que exercem, se tornam invisíveis aos olhos das pessoas das classes sociais superiores às delas. Isto acontece com os faxineiros, os porteiros, os entregadores de pizza...
Mas eu não sou porteira, nem faxineira. E nunca entreguei pizza. Eu nem gosto de pizza. Irritou-se Marcela. E não me consta que divorciada seja uma profissão subalterna. Minha pensão não é de se jogar fora. Eu toda não sou de se jogar fora.
O problema é exatamente este, meu anjo, retomou André, ainda olhando para um certo ponto no horizonte. Você é bonita demais. E arrematou com o que Marcela não gostaria de ter ouvido: você não existe.

03 setembro 2007

Estação


Ali, na estação, a vida parecia uma mágica. A plataforma amanhecia vazia de gente e de coisas. O chefe da estação, com sua farda de mescla azul e o boné bem assentado na cabeça, abria o armazém, dava ordens para o encarregado e ia sentar perto da janelinha de onde vendia os bilhetes de papelão, parecidos com pedras de dominó. Ida, só uma cor. Ida e volta, duas cores, metade verde, metade na cor natural do cartão. O toc-toc curioso do telégrafo, com aquela fita de papel cheia de furos. A cabeça meio inclinada do telegrafista, seu olhar distante como se visse a outra pessoa que mandava a mensagem. Aquele toc-toc era a voz das letras que se somavam em palavras. Aquilo sim, era um dos grandes mistérios da vida. As palavras vinham pelo fio, cortadas em pedaços que um homem juntava de novo na penumbra do escritório da estação.
Aos poucos, iam chegando os vendedores. Tabuleiros com laranjas descascadas, cocadas brancas e queimadas, pirulitos enfiados nos buraquinhos da tábua, difíceis de desgrudar do papel. Água fria nas quartinhas, pão doce, pão sovado, bolo de goma. Encostados na parede ou sentados no chão, ficavam por ali, meio calados, na espera. Lá pelas oito e meia iam chegando os viajantes. Famílias inteiras em roupa de passeio, caixeiros em ternos amassados, soldados da polícia, casais de olhares tristes, velhotes engomados, senhoras empoadas. Com o passar dos minutos um certo nervosismo vai aos poucos tomando conta da plataforma. As conversas se apressam e as vozes se alteiam, os casais andam pra lá e pra cá, os velhotes tossem, as senhoras suspiram, os caixeiros passam lenços amassados nos rostos suados, soldados olham para os lados em espreita. Os vendedores se impacientam. Os em pé trocam as pernas que se apóiam na parede. Os sentados arrastam os calcanhares no chão, subindo e descendo os joelhos. É o trem que vem vindo. Ninguém ainda vê, nem se ouve o apito. Mas é a hora que chega. Antes do trem vem o tempo que antecipa os adeuses, os cuidados, os recados, os mandares de lembranças. Antes do trem vem a angústia de quem vai ou fica. Lá vem, alguém grita, e estoura o alvoroço. Os vendedores entram em prontidão e começam a gritar os seus refrões muito antes do trem chegar na estação. Ninguém sabe muito bem o que fazer, mas todo mundo quer fazer alguma coisa. Gestos descabidos, palavras desconexas, olhares fugidios, toda uma série de atos sem sentido, que só vão querer dizer alguma coisa quando o trem partir as correntes que amarram os que vão e os que ficam.
(...) Maletas e pacotes não se despedem, não juram amor, nem mandam recados. As caixas e sacos, arrumados no vagão de cargas, deixam menos saudades ainda. Daqui a pouco, quando o trem virar a primeira curva, o silêncio varrerá os sentimentos da plataforma. O toc-toc do telégrafo será a única presença do mistério das palavras.
Do romance Memória do fogo. Editora Objetiva, 2006
Ilustração recolhida em http://www.sergiosakoll.com.br/