Marcela já era bonita.Mas queria ser mais. Daí que vendeu o carro, tirou empréstimo, torrou o cartão de crédito e fez uma reforma geral. Fez lipo, fez peeling, mexeu no nariz, botou um tantinho de silicone, salpicou aqui e ali um pouco de botox e pronto: Marcela ficou belíssima. O resto era com seu personal training e o regime draconalfaciano.
Aí começou a acontecer uma coisa esquisita com Marcela. Passou a ter a impressão de que ninguém mais a via. Sua empregada servia o café da manhã com o olhar perdido para além das paredes da copa. Decidiu almoçar em self-service depois que os garçons do seu restaurante favorito começaram a passar por ela sem atendê-la. Os seguranças do condomínio abriam os portões sem ao menos olhar para dentro do seu carro. As amigas,embora a tratassem bem ao telefone, deixaram de convidá-la para as festas. E os homens, meu Deus. Os olhos dos homens, para quem tinha feito todo este sacrifício, atravessavam seu corpo como se ela fosse um fantasma.
Um fantasma, é isto. Acho que morri. Por isso as pessoas não me vêem, não me notam. É isto, morri e ainda não me dei conta. Já tinha lido alguma coisa assim numa revista esotérica.
Era uma hipótese viável, mas algumas evidências mostravam que ainda estava viva. Mesmo sem olhar para ela, a moça da butique ainda tinha paciência suficiente para tirar e repor nas araras todos os vestidos que ela pedisse. Seu dentista, mesmo com o olhar alheio, não deixava de roçar-se no seu braço direito enquanto a imobilizava na cadeira. A fatura do cartão de crédito era uma testemunha irrecusável de sua presença encarnada neste mundo.
Tinha que procurar ajuda, mas de quem? Estava devendo ao analista, não queria aumentar mais a conta. Claro que não era louca de entregar um prato feito destes a nenhuma amiga. Tinha que ser um homem. Um amigo de confiança que possuísse uma virtude rara entre os homens: a de entender uma mulher. André. Só podia ser André. Pela coleção de namoradas que exibe com modéstia, ele deve entender muito de mulher. Além de tudo é poeta de poesia sutil, de quem cultiva uma certa alma feminina. Só pode ser André. Foi procurar André.
Escuta, Marcelinha, falou André, montado em sua estatura de poeta, o olhar lançado por cima da morta viva. Escuta, meu amor: você já deve ter ouvido falar de que certas pessoas, por conta das funções subalternas que exercem, se tornam invisíveis aos olhos das pessoas das classes sociais superiores às delas. Isto acontece com os faxineiros, os porteiros, os entregadores de pizza...
Mas eu não sou porteira, nem faxineira. E nunca entreguei pizza. Eu nem gosto de pizza. Irritou-se Marcela. E não me consta que divorciada seja uma profissão subalterna. Minha pensão não é de se jogar fora. Eu toda não sou de se jogar fora.
O problema é exatamente este, meu anjo, retomou André, ainda olhando para um certo ponto no horizonte. Você é bonita demais. E arrematou com o que Marcela não gostaria de ter ouvido: você não existe.
Aí começou a acontecer uma coisa esquisita com Marcela. Passou a ter a impressão de que ninguém mais a via. Sua empregada servia o café da manhã com o olhar perdido para além das paredes da copa. Decidiu almoçar em self-service depois que os garçons do seu restaurante favorito começaram a passar por ela sem atendê-la. Os seguranças do condomínio abriam os portões sem ao menos olhar para dentro do seu carro. As amigas,embora a tratassem bem ao telefone, deixaram de convidá-la para as festas. E os homens, meu Deus. Os olhos dos homens, para quem tinha feito todo este sacrifício, atravessavam seu corpo como se ela fosse um fantasma.
Um fantasma, é isto. Acho que morri. Por isso as pessoas não me vêem, não me notam. É isto, morri e ainda não me dei conta. Já tinha lido alguma coisa assim numa revista esotérica.
Era uma hipótese viável, mas algumas evidências mostravam que ainda estava viva. Mesmo sem olhar para ela, a moça da butique ainda tinha paciência suficiente para tirar e repor nas araras todos os vestidos que ela pedisse. Seu dentista, mesmo com o olhar alheio, não deixava de roçar-se no seu braço direito enquanto a imobilizava na cadeira. A fatura do cartão de crédito era uma testemunha irrecusável de sua presença encarnada neste mundo.
Tinha que procurar ajuda, mas de quem? Estava devendo ao analista, não queria aumentar mais a conta. Claro que não era louca de entregar um prato feito destes a nenhuma amiga. Tinha que ser um homem. Um amigo de confiança que possuísse uma virtude rara entre os homens: a de entender uma mulher. André. Só podia ser André. Pela coleção de namoradas que exibe com modéstia, ele deve entender muito de mulher. Além de tudo é poeta de poesia sutil, de quem cultiva uma certa alma feminina. Só pode ser André. Foi procurar André.
Escuta, Marcelinha, falou André, montado em sua estatura de poeta, o olhar lançado por cima da morta viva. Escuta, meu amor: você já deve ter ouvido falar de que certas pessoas, por conta das funções subalternas que exercem, se tornam invisíveis aos olhos das pessoas das classes sociais superiores às delas. Isto acontece com os faxineiros, os porteiros, os entregadores de pizza...
Mas eu não sou porteira, nem faxineira. E nunca entreguei pizza. Eu nem gosto de pizza. Irritou-se Marcela. E não me consta que divorciada seja uma profissão subalterna. Minha pensão não é de se jogar fora. Eu toda não sou de se jogar fora.
O problema é exatamente este, meu anjo, retomou André, ainda olhando para um certo ponto no horizonte. Você é bonita demais. E arrematou com o que Marcela não gostaria de ter ouvido: você não existe.
Um comentário:
Final surpreendente.
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