26 outubro 2007

opaco




O estranho objeto se anuncia por uma vaga inquietação que me acompanha horas. Ainda não é uma presença, mas emite leves sinais de um lugar além de mim.
O estranho objeto se insinua nos diversos momentos do meu dia. Volto a cabeça e quase o surpreendo em alguma dobra do tempo que me cerca.
A coisa estranha insiste em não estar. Resiste em ser presença, bastando-se promessa. Ausência que me espreita, tocaia prestes a ser escaramuça.
Submisso ao que não é, cativo de uma espera, espreito a coisa opaca retida na fronteira. E na espera torno-me objeto do objeto. Coisa da coisa. Outro de mim e do outro.
E assim, opacos, eu estranho e a coisa estranha, ensaiamos uma possibilidade de presença no esboço de sombra que lança no chão a luz da lua.
Ilustração obtida em www.cosmobrain.com.br

21 outubro 2007

As fronteiras do sonho


Você sabe que eu sou um pesquisador. Um psiquiatra respeitado que não confunde as coisas da ciência com as da imaginação. E por dever de ofício, dou o nome certo aos fenômenos psíquicos. Mais ainda, como todo cientista correto, tenho absoluta certeza de que um dia todos os fenômenos ditos psíquicos serão explicados através de mecanismo puramente orgânicos. Chamar qualquer coisa de psíquica é apenas revelar ignorância quanto a sua origem. Qualquer asno sabe que psiquê significa alma no velho idioma grego. E alma pode ser tudo, menos um conceito científico.
Faço este preâmbulo para você não duvidar de que mantenho meu espírito científico em vigília, para que não ponha em dúvida minha lucidez enquanto relato o fato a seguir.
Não sei se você sabe o que significa a palavra hipnagógico. Em poucas palavras, para um leigo como você basta dizer que se trata de um estado associado ao entorpecimento que precede o sono. Aquele momento em que as coisas da realidade se confundem com as produções do seu cérebro já cansado e confuso. Uma espécie de fronteira entre a vigília e o sono. Por exemplo: você está lendo um livro e, de repente, uma frase inteira vem se imiscuir no texto impresso, desvirtuando o seu sentido.
Pois bem. Estava eu lendo um artigo científico sobre as novas formas de tratamento cirúrgico para a eliminação dos impulsos homossexuais quando, entre as últimas linhas da página, apareceu uma frase esquisita dizendo “você ainda não percebeu que estou no seu quarto”. Tomei um susto e a frase desapareceu. Logo depois, entre as primeiras linhas da página seguinte, leio com clareza: “se você olhar para o espelho vai me ver.” Sem querer, foi sem querer, juro, olhei para o espelho da penteadeira e vi, juro como vi, o rosto mais bonito que jamais vira em toda minha vida. E naquele momento nada mais me interessava a não ser ter para mim não apenas o rosto, mas todo o corpo que lhe sustentava com graça e beleza. O estranho é que, para meu desespero, era o rosto de um homem. Um efebo, imberbe, quase um menino, mas um homem.
Sou um cientista, não esqueça. Nenhuma experiência, por mais estranha que seja, me intimida. Antes, me incita a elucidar os seus enigmas. Foi por isso que mergulhei no espelho, passando para um território de ar espesso e chão movediço por onde me movia com o peso de um escafandrista. Em nenhum momento avistava o vulto que me atraía, mas sabia a direção do lugar onde por certo me esperava. Tinha a certeza disto por um aceno afirmativo que me faziam as pedras. Nuvens escuras corriam em minha direção, quase à altura da cabeça, dando-me conta do passar do tempo. Um tempo de angústia pela busca infrutífera do objeto do meu desejo. Guiado pelo vôo das aranhas, cheguei às margens de um lago de águas límpidas, mas que não deixavam ver o seu leito. Não tinha mais a fazer do que mergulhar e descer ao fundo das águas que por fim me ejetaram ofegante para fora do espelho da penteadeira do meu quarto.
Não esqueça que eu sou um cientista. Por isso sei muito bem o que significa o termo hipnopômpico. Para seu governo, é aquele estado semiconsciente que antecede o despertar. Foi nesse estado que eu ainda vi, com grande tristeza, o rosto belo e terno me acenar um adeus do outro lado do espelho.
Imagem obtida em www.cexantequera.com

18 outubro 2007

memória das águas








Para um quadro de Veruschka Guerra


Das águas me ergo menina
saudosa de leitos antigos.


Das águas me assusto já moça
saudosa de leitos futuros.


Das águas levanto esta dona
de leitos, de rios, de mares.


Ronaldo Monte
18.10.2007

A idade do poeta






Ao poeta Sérgio Castro Pinto

O poeta faz sessenta anos.
Bons vinte e um mil e novecentos dias
viveu o poeta.

O poeta faz quarenta anos de poesia.
Catorze mil e seiscentos dias
escreveu o poeta.

Somam-se cem anos de vida e poesia.
Trinta e seis mil e quinhentos dias
desabam sobre o poeta.

O poeta sobrevive.

Pois um poeta não se mede em dias.
O sonho é a medida do poeta.


Ronaldo Monte
18.10.2007

Redução de danos


A idéia de redução de danos é relativamente nova e encontra muita resistência na opinião pública em geral e em muitos dos agentes diretamente envolvidos em programas de saúde pública.
Eu mesmo confesso que fiquei espantado quando ouvi falar pela primeira vez que as agências governamentais de muitos países gastam dinheiro para oferecer mais segurança aos usuários em suas relações com as drogas.
Mas quando se sabe que ao fumar uma pedra de crak num cachimbo de pvc achado no lixo o viciado pode ser vítima da leptospirose, vê-se que é uma ação de saúde pública fornecer um cachimbo adequado, acompanhado de um batom para evitar que os lábios desidratados rachem, deixando a vítima a mercê do vírus da aids ou da hepatite.
Muitas doenças transmissíveis podem ser evitadas com a distribuição de seringas de uso pessoal entre os usuários de drogas injetáveis. Muitas intoxicações podem ser evitadas se os viciados em maconha usarem o papel de seda para enrolar seus cigarros, em vez de papel sujo ou pedaços de jornal.
É aí que reside a lógica do programa: a recuperação de um viciado em drogas é lenta, dolorosa e muitas vezes impossível. Enquanto não se alcança tal objetivo, resta-nos evitar que os indivíduos se exponham a situações adicionais de risco.
À medida em que nos acostumarmos à idéia da redução de danos, perceberemos que todos nós, humanos, precisamos de ajuda adicional para sobreviver neste ambiente hostil a que foi reduzido o universo das nossas relações. Precisamos inventar novas ações que nos protejam dos danos que causamos uns aos outros.
Foto recolhida em www.arpnet.it