30 dezembro 2014

07 - Almeidinha - o herói de paletó

 Um folhetim burocrático


07 - O perfume da discórdia

       
             O Dr. Pacheco, como sempre, estava com a razão. Foi melhor mesmo que a Dona Jackeline voltasse para a repartição dela. Eu voltei a ser o datilógrafo impecável que todos invejavam, não gaguejava mais quando o Chefe tocava o interfone, não perdia meu tempo esperando que desse dez horas para a novata chegar com seus óculos de mosca e aquele perfume que até me dava um pouco de dor de cabeça.
       

Um pouco de dor de cabeça, apenas na repartição. Lá em casa, esse perfume me deu uma dor de cabeça enorme. A cada vez que passava por trás de minha cadeira, Dona Jackeline se demorava mais com a barriga colada em minhas costas. Teve até uma vez que ela se curvou um pouco, dizendo que queria ver o que eu estava escrevendo, e roçou um dos seios na minha cabeça. Foi nesse dia que a minha Senhora sentiu um cheiro diferente quando eu entrei em casa.
                   Que cheiro é esse? Perguntou a minha Senhora, já com um cabo de vassoura pronto para me acertar a cabeça. Disse que não sabia de que cheiro ela estava falando, que eu não tinha pegado ou me encostado em nada que cheirasse mal.
                   Não se faça de besta, berrou a minha Senhora, com o cabo de vassoura já amassando meu nariz. Não estou falando de catinga. Franziu a cara puxando o ar com força pelo nariz. O que estou sentindo é cheiro de mulher. E acrescentou meio zombeteira: quero saber que tipo de mulher é capaz de se esfregar em um homem como você.
                   Foi aí que me lembrei da barriga macia de Dona Jackeline amassando minhas costas. E me veio mais aguda a lembrança do seu seio tocando minha cabeça. Para falar a verdade, ainda sentia uma leve pressão sobre a parte de trás do cabelo.
                   Acho que passei tempo demais entretido com essa lembrança. Devo até ter ficado meio ausente, indiferente às ameaças do cabo de vassoura que ia e vinha na frente do meu nariz.   Almeida, eu estou falando com você. Me responda, de quem é esse perfume? Eu nunca menti para minha Senhora. Sou católico e desde menino minha mãe me ensinou que mentir é pecado. Não era nessa hora que ia começar a traçar meu caminho para o inferno. É de Dona Jackeline, respondi. E quem é essa Jackeline, berrou com o cabo de vassoura pronto para me rachar a cabeça. Uma colega novata lá da repartição, respondi já com os olhos fechados e a cara contraída esperando a vassourada.
                   Eu não acredito no que estou ouvindo, falou com desdém. Quando abri os olhos, ela estava com as mãos cruzadas sobre a ponta do cabo da vassoura, olhando para mim com os olhos arregalados. Almeida, falou num tom baixo e incrédulo, você está me traindo com uma colega da repartição? Meu Deus, essa mulher deve ser cega para se enxerir para um traste da sua espécie.
                   Baixei a cabeça, passei por ela sem olhar, deixei o saco de pão em cima da mesa e caminhei feito um sonâmbulo para o banheiro. Não tive ânimo para tomar banho. Já vestido com o pijama, apanhei o paletó para guardar no quarto e senti aquele resto de perfume que me invadiu as narinas como invadia todo o escritório às dez da manhã. Passei a mão na parte de trás da cabeça, sem saber muito bem por que.
           porta do quarto estava trancada, a luz apagada. Olhei automaticamente para o sofá e lá estava o lençol de solteiro. Me deitei abraçado com o paletó e demorei a dormir com aquele cheiro me lembrando o tempo todo o perigo que passei com o cabo de vassoura pronto para me rachar a cabeça.

           Não me lembro de ter sonhado com nada, mas acordei com a impressão de que não tinha dormido só. O paletó, todo amassado, tinha escorrido para o chão. Vou chegar mal apresentado no trabalho. Mas antes vou pedir ao Padre Guido que me ouça em confissão.

23 dezembro 2014

Uma prece pagã



Estou em pleno retiro de fim de ano. A copa, as eleições, o mensalão, a lava-jato e  tudo o mais que tumultuou minha vida durante o ano vai ficar do lado de fora da minha casa.  Me dei de presente a esperança do fim do bloqueio a Cuba e me ausentei do noticiário. Ao menos por um mês, só me interessam, exclusivamente, as coisas boas que possa repartir com as pessoas a quem amo. Por isso, quero repartir com você a prece pagã que encontrei numa loja de presentes na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais. É o que eu quero para a minha casa e para as casas de todas as pessoas de boa vontade.    




22 dezembro 2014

"A paixão insone" na Coleção Latitudes




Coleção Latitudes: Literatura em horizonte expandido

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Organizada pela escritora Maria Valéria Rezende, a série literária digital tem o objetivo de dar visibilidade a escritores com talento reconhecido em apenas alguns nichos regionais.

mosaico coleção latitudes
Mostra a História que grandes ideias e parcerias nasceram de conversas informais ao redor de uma mesa. Os compositores Tom Jobim e Vinícius de Moraes, por exemplo, conheceram-se numa mesa do bar Villarino, no Centro do Rio. Foi também numa mesa de restaurante que o arquiteto Oscar Niemeyer fez, nas costas frágeis de um guardanapo, o esboço do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, uma das mais celebradas obras de sua carreira. No começo do ano, estavam sentadas à mesa de um café, em São Paulo, a escritora Maria Valéria Rezende e a diretora executiva da Revista Pessoa, Mirna Queiroz, quando veio à baila o problema da difusão da nova literatura no Brasil; a dificuldade para se distribuir e divulgar, com lealdade e alcance devido, a rica produção literária escrita e publicada em todas as regiões do país.
Maria Valeria por Daniel Mordzinski
A organizadora da coleção Latitudes, Maria Valéria Rezende. Crédito: Daniel Mordzinski
“A distribuição de livros físicos tem sido uma via de mão única e monopolizada por empresas sediadas no centro-sul. Há anos que eu, paulista aparaibanada, levanto sempre essa questão, não porque tenha pena dos autores, mas porque me parece que é a comunidade leitora do país que perde a oportunidade de enriquecer-se com diferentes pontos de vista, estilos, linguagens”, observa Maria Valéria Rezende.
Dessa incômoda constatação, ficou a proposta de se criar uma maneira de dar mais visibilidade a escritores com talento reconhecido em apenas alguns nichos. Porém, como superar a barreira geográfica? A resposta acaba de ser dada com a coleção Latitudes, inteiramente lançada no formato digital pelo selo Mombak, em parceria com a e-galáxia. A primeira leva conta com cinco títulos, já disponíveis para compra nas principais lojas virtuais do ramo.
“Um dos grandes motivos por trás da pouca divulgação desses escritores é a dificuldade de distribuição num país de dimensão continental como o nosso. O digital elimina essa barreira. Eu vejo essa plataforma com muito otimismo. Facilita o acesso à produção, realmente é mais barato, e encurta o caminho até o leitor. Mesmo quem não tem e-reader pode baixar um aplicativo no computador e ler os e-books. E isso é o que realmente importa: oferecer boa literatura ao alcance do leitor, onde quer que ele esteja”, aponta Mirna Queiroz, que faz o papel de editora.
A organização coube a Maria Valéria Rezende, cuja garimpagem inicial partiu de sua própria biblioteca, dos livros de pequenas editoras regionais que vai coletando no curso de suas viagens. Nessa seleção, figuram os títulos A paixão insone, de Ronaldo Monte; Aqui as noites são mais longas, de Geraldo Maciel; O beijo de Deus, de Dôra Limeira; Palavras que devoram lágrimas, de Roberto Menezes; e Já não há golfinho no Tejo, de Joana Belarmino. De acordo com a organizadora, a escolha final resultou da vontade de apresentar, de cara, uma variedade que incluísse romances, contos e minicontos, de mulheres e de homens de faixas etárias distintas, sendo três obras inteiramente inéditas e duas que haviam tido apenas edições locais já esgotadas.
“Há excelente literatura que só é bem conhecida na região em que o escritor vive e publica, de modo que o que se considera, divulga e analisa como sendo a literatura brasileira não é mais do que uma pequena parte dela, favorecida, com notáveis exceções, pela localização geográfica dos autores”, salienta.

O escritor Ronaldo Monte, autor de A paixão insone. Crédito: Mano de Carvalho
O escritor alagoano Ronaldo Monte, cujo livro explora a solidão e a busca pela ternura na conturbada relação com a violência urbana, atesta a necessidade de se desmistificar a noção de grandes centros literários. Segundo ele, o que existe, de fato, são complexos mercadológicos focados na publicação e na divulgação de alguns grupos de autores ligados a determinadas editoras sediadas, estas sim, em grandes centros comerciais.
Um centro literário, a meu ver, é um lugar que concentra uma produção literária significativa. E neste sentido, a noção de centro está sendo substituída por uma nova tópica em rede com seus pontos distribuídos por todo um campo territorial, virtualmente ligados entre si”, considera o autor.
Natural da Paraíba, o professor Roberto Menezes, que traz, emPalavras que devoram lágrimas, vencedor do Prêmio José Lins do Rego, o fluxo de consciência de uma mulher embalado por camadas de lembranças e desgostos acumulados durante sete anos de um casamento acabado, defende o estado como um centro literário, por concentrar, no cenário atual, excelentes autores que vivem um grande momento na prosa e na poesia.
A definição de grande centro literário é um pouco distorcida, muitos confundem com regiões onde se situam grandes editoras e distribuidores. O formato digital serve para esses autores quebrarem as fronteiras e levar sua literatura a lugares aos quais, muitas vezes, só editoras e distribuidoras dos maiores centros econômicos podem levar o livro físico”, atenta Menezes.
Com entusiasmo, a escritora Joana Belarmino, cujos contos da antologia Já não há golfinho no Tejo primam por um verniz poético, percebe os livros digitais como uma das invenções mais democráticas do nosso tempo.

A escritora Joana Belarmino assina a antologiaJá não há golfinho no Tejo
“Pensava no que seria do meu livro, encapsulado embits e bits, trafegando pela cibervia. Não sei se fui a primeira a comprar. Fui lá e fiz clique, e zaz! Feito pequenas libélulas, transportei para o smartphone os livros de toda a coleção. Abri meu e era como se os contos tivessem ganhado um sabor novo”, conta.
Para 2015, a intenção é lançar mais cinco títulos. Porém, de acordo com Mirna Queiroz, um trabalho sem pressa e cuidadoso, tratando o selo como uma butique literária, que aposta na qualidade e na bibliodiversidade.
Se a coleção responder aos nossos sonhos, daremos várias voltas pelo país. Já temos muitas obras de outras regiões engatilhadas, e passaremos outra vez, mais adiante, pela Paraíba”, complementa Maria Valéria Rezende.
Serviço
Matéria disponível em
http://homoliteratus.com/colecao-latitudes-literatura-em-horizonte-expandido/

21 dezembro 2014

Almeidinha - O herói de paletó - 06

Um folhetim burocrático

06 - Almeidinha e a novata  

                  
                   O Dr. Pacheco tem muita consideração por mim. Um dia ele me chamou em sua sala, me mandou sentar e disse que precisava muito da minha compreensão. Era coisa simples: uma parenta sua estava com um probleminha na repartição em que trabalhava. Ela era auxiliar de tesouraria e andaram levantando uns falsos sobre a idoneidade dela. Por isso, ela precisava passar um tempinho longe das fofocas dos colegas e, para ajudá-la, Dr. Pacheco sugeriu que pedisse uma transferência provisória para a nossa repartição. Isso, claro, ia ficar só entre a gente. O resto do pessoal não precisava ficar sabendo de nada. Era só eu desconversar se alguém quisesse entrar em detalhes sobre a presença da nova funcionária. Ele mesmo se encarregaria de dar uma informação geral sobre a rápida permanência da moça entre nós. Só mais uma coisinha, falou Dr. Pacheco. Queria que o senhor cedesse o seu birô para ela guardar suas coisas. O senhor sabe, mulher traz muita tralha para o trabalho. Como é por pouco tempo, o senhor pode muito bem ocupar somente a mesinha de apoio da sua máquina de datilografia. Faça isso por mim, Seu Almeidinha. Como já disse, vai ser por pouco tempo. É só a poeira baixar lá na repartição dela.

                   No outro dia, lá pela metade do primeiro expediente, a repartição é invadida por uma mulher de idade meio indefinida, equilibrada em duas longas agulhas parecidas com sapatos, uma faixa estreita de tecido listrado de preto e branco sugerindo uma saia e uma blusa de oncinha tentando cobrir uma fartura de seios ameaçando para já um desabamento. Nos cabelos forçosamente louros se enfiavam as hastes de uns óculos escuros enormes que a deixavam parecida com uma mosca. Não sei não, mas tudo aquilo me pareceu um ato de incontinência pública e escandalosa, digna de punição pelo que eu conheço do direito administrativo. E esta impressão aumentou quando ela fez ecoar, ainda da porta, por toda a repartição: Alôôô. Eu sou Jackeline, a nova coleguinha de vocês. Mas podem me chamar de Jackie. Por favor, onde posso encontrar o Dr. Pacheco?
                   O Ciço, que é o contador, logo, a maior autoridade depois do Dr. Pacheco, levantou-se para dar as boas vindas à nova colega e se ofereceu a acompanhá-la até a sala do chefe. Atrás dela, ia apresentando os colegas enquanto fazia uma primeira avaliação do conjunto da obra. Precisava ver a cara de Dona Marli apertando a mão da recém chegada. Mal abriu a porta para ela entrar na sala do Dr. Pacheco.
                   Os primeiros dias se passavam mais ou menos assim: Dona Jackeline chegava por volta das dez da manhã, passava sem falar por Dona Marli e entrava na sala do Dr. Pacheco. Saía de lá uma meia hora depois, com umas mechas de cabelo fora do lugar e o sutiã meio desequilibrado. Como minha mesinha de datilografia ficava do lado do corredor, junto do meu antigo birô, ela tinha de passar por trás de mim, se apertando entre minha cadeira e a parede dos fundos da sala para descansar um pouco antes do fim do expediente.
                   Mesmo me vendo abarrotado de serviço, Dona Jackeline vivia puxando conversa. Queria saber sobre minha vida, se eu era bem casado, se minha mulher trabalhava, que esse negócio de mulher viver em casa era coisa do século passado. Tive de dizer a ela que minha senhora não era nenhuma desocupada. Era promotora de vendas de uma marca famosa de bijuteria, uma dessas que fazem propaganda na televisão. Por isso ela não tinha muito tempo para cuidar de mim como gostaria. Ela escutava com um sorrisinho de quem não está acreditando muito no que ouvia. Chegou até a dizer: puxa, Almeidinha, você precisa de uma mulher que cuide melhor de você. E pousou uma mão caridosa sobre a minha. Com o tempo, ela passou a se levantar com mais freqüência e amassar minhas costas com aquela barriguinha macia, deixando meu paletó com um cheiro leve de perfume francês.

                   Não sei o que estava acontecendo comigo. Chegava na repartição e ficava impaciente esperando que desse dez horas da manhã. Errava mais na datilografia, gaguejava ao atender as chamadas de interfone do Dr. Pacheco.  Cheguei até a sentir uma ponta de tristeza quando o chefe me chamou e disse que eu já podia retomar o meu birô. As coisas tinham esfriado lá na repartição de Dona Jackeline e ela não precisava mais ficar com a gente. Melhor para o senhor, não é, Almeidinha?  Melhor para o senhor.

14 dezembro 2014

Almeidinha - o herói de paletó


Um folhetim burocrático


05 - A sogra do Almeidinha

                   Nos domingos em que não faz sol, minha senhora me convida para visitar a mãe dela. Não é bem um convite, é mais uma ordem. Na verdade, nem é uma ordem. É uma espécie de fatalidade que eu vou adivinhando desde a véspera, quando ela começa com certos preparativos. Faz uma torta de abacaxi - que a mãe dela adora-, e deixa pronta na geladeira. Já deixa estendido no espaldar de uma cadeira da sala um robezinho leve, daqueles sem mangas, feitos no Ceará, para trocar quando chegar lá. Diz que é o único lugar onde se sente realmente em casa. Compra também de véspera uma garrafa de Martini branco doce, única bebida que sua mãe tolera. Faz tempo que deixou de tomar bebidas fortes. É natural também que leve um pote de azeitonas verdes e uma lata de salsichas daquelas pequenas, próprias para tira-gosto.
                   Quando eu volto da missa, já encontro ela impaciente, de pé, com uma sacola enorme na mão. Aponta com o queixo para a torta, ainda na forma, embrulhada com um pano de prato com dois nós na parte de cima. Ajeito a torta em um dos braços e com o outro pego o guarda-chuva. Nunca se sabe quando vai chover nesses domingos cinzentos. Trabalho mesmo é conseguir fechar a porta da casa com as duas mãos ocupadas. Minha senhora já vai quase dobrando a esquina, em direção ao ponto do ônibus.
                   Não gosto muito de contar vantagem, mas acho que ninguém carrega uma torta com mais competência do que eu. Não somente competência, mas também uma certa elegância. Eu mesmo gostaria de me ver de longe, com o guarda-chuva pendurado no meio do antebraço esquerdo, as duas mãos um pouco avançadas do corpo segurando a torta como um vassalo conduz uma almofada com a coroa real.
                   Chegamos, enfim, ao prédio da minha sogra. Só mais dois andares acima e logo seremos recebidos por aquela senhora indefinidamente situada entre os sessenta e os setenta, um short branco mal cobrindo a flacidez das coxas e uma blusa esvoaçante de seda oncinha, com um decote em nada devedor ao da filha. Beijam-se e abraçam-se como se tivessem chegado da guerra e mal abrem espaço para que eu passe e deposite a torta na pequena mesa da ínfima sala.
                   Enquanto eu caminho entre os poucos móveis para descansar os braços, elas duas se instalam na minúscula varanda que dá para a parede dos fundos do prédio vizinho. Eu já sei o que devo fazer: tirar o gelo, abrir o Martini, levar os cálices e servir as azeitonas e as salsichas.
                   E esse aí, continua na mesma? É o jeito dela se interessar por mim. Nunca fala diretamente comigo, nem fala meu nome pra minha senhora. É sempre “esse aí” ou, quando o Martini já está fazendo efeito, “esse que se diz teu marido”.
                   Eu até gosto de ficar de fora da conversa delas. Levo sempre meu livrinho de palavras cruzadas e fico ali, em paz, sabendo de cor e salteado que o rio da Itália com duas letras é Pó e que o símbolo do chumbo é Pb. Só sinto falta do meu Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa para conferir as respostas mais difíceis. Detesto ter que rasurar um jogo de palavras cruzadas.
                   Pergunta a ele se já posso botar o almoço. Pode sim, ele pode muito bem deixar esse vício para mais tarde. É assim que as duas decidem sair cambaleando em direção à cozinha, enquanto eu boto a mesa para quatro. Quatro sim, pois quando ouve o barulho dos talheres, um simpático pequinês, com um lacinho de fita pregado na cabeça, sai do quarto e vem se aboletar numa das cadeiras, rosnando pra mim. Terminado o almoço, a infalível galinha à cabidela com farofa e macarrão, regada a duas ou três latinhas de cerveja, elas se recolhem no quarto e eu fico ali pela sala, esperando a hora do Faustão.

                   Já é de noitinha quando volto a ouvir o falatório no quarto. Sei que minha senhora está trocando o robezinho pela roupa de domingo. Logo-logo ela vai sair dizendo que está atrasada, já quase perdendo a hora do Fantástico. Minha sogra, ainda sonolenta, pede pra filha me dizer que, se não fosse a pressa dela, até passava um cafezinho pra mim. Eu não digo nada, mas sorrio agradecido. É nessas horas que sinto que ela é quase uma mãe pra mim.

07 dezembro 2014

Almeidinha - o herói de paletó



Um folhetim burocrático

04 - Almeidinha e a santa missa


                   Acho que já disse aqui: sou católico praticante. Não faço nada aos domingos antes de ir à missa. Nem café eu tomo. Minha senhora também é católica, mas bem menos fervorosa do que eu. Só uma vez perdida é que se lembra de ir na missa. É que eu fui criado dentro de igreja. Minha mãe ia todas as noites rezar o terço com as amigas e sempre me levava junto. Eu era bonzinho, ia sem reclamar, diferente dos meus irmãos que fugiam perto da hora do terço começar. Quando fiquei mais crescidinho, o padre me escolheu para ser coroinha. Eu me achava importante com aquela bata alvíssima, enchendo a igreja com a fumaça branca do incenso no turíbulo.
                   Só tenho pena mesmo de não ter pegado o tempo da missa em latim. Minha mãe dizia que era uma coisa linda, parecia que Deus estava falando diretamente com os devotos. Como lembrança de minha mãe, guardo o seu velho missal escrito em latim e fico pensando como devia ser bom responder a missa na própria língua de Deus.
                   Hoje não tem mais latim, nem turíbulo, nem coroinha. A missa virou uma esculhambação, o povo fazendo zoada com umas músicas parecidas com pagode e sertanejo. E tome de bater palmas e dar vivas a Jesus, como se ele fosse um artista de televisão.
                   Teve um tempo que minha mãe inventou que eu devia ir estudar no seminário. Tudo o que pedia a Deus era ter um filho padre. Chegou até a falar com Padre Guido, mas ele disse que ninguém ia mais pra seminário não. Quem quisesse ser padre tinha que fazer vestibular para o curso de teologia. Minha mãe não gostou, pois ela queria mesmo era me ver vestido de batina, trancado no seminário, longe dos pecados do mundo. Nunca mais tocou no assunto. Eu não gostei nem desgostei. Ia ser meio ruim ter que estudar aquilo tudo que se ensinava nos seminários. Minha cabeça sempre foi meio fraca e eu não queria deixar de usar paletó.
                   Hoje, sempre que Padre Guido me pede, eu ajudo ele a dar a comunhão aos fiéis. Padre Guido já devia ter se aposentado, mas com essa falta de vocações, não tem quem substitua ele na paróquia. Ele às vezes até fica zangado comigo, dizendo que eu bem que devia ter virado padre, em vez de ter me casado com uma mulher que nem era lá muito católica.
                   Desde esse dia eu fico insistindo para minha senhora ir à missa comigo. Tem domingo que ela vai, mas tem domingo que não vai. Diz que prefere ir à praia com a amigas no carro do irmão da LIli. Eu me conformo, pois não gosto de contrariá-la. Tem sempre o risco de passar uma semana dormindo no sofá da sala.
                   Mesmo quando ela vai na missa, sempre arranja um jeito de me tirar do sério. Para não perder muito tempo, ela já vai com o biquíni por baixo da roupa. E teima em usar uma blusa bem decotada, que puxa como um ímã os olhos dos homens. Uma vez eu reclamei e ela respondeu que é que tem? O que é bonito é pra ser mostrado.

                   Nesse dia mesmo o Padre Guido me chamou pra ajudar na hora da comunhão. Ele entregava as hóstias para os fiéis e eu botava a salva de prata para recolher as migalhas. Para cada hóstia entregue, Padre Guido dizia, quase balbuciando: corpo de Cristo. Mas não sei o que deu nele quando minha senhora se ajoelhou para receber a hóstia. Com os olhos arregalados em cima do decote dela, falou com a voz trêmula: Cristo, que corpo... Deve ser a idade.