14 dezembro 2014

Almeidinha - o herói de paletó


Um folhetim burocrático


05 - A sogra do Almeidinha

                   Nos domingos em que não faz sol, minha senhora me convida para visitar a mãe dela. Não é bem um convite, é mais uma ordem. Na verdade, nem é uma ordem. É uma espécie de fatalidade que eu vou adivinhando desde a véspera, quando ela começa com certos preparativos. Faz uma torta de abacaxi - que a mãe dela adora-, e deixa pronta na geladeira. Já deixa estendido no espaldar de uma cadeira da sala um robezinho leve, daqueles sem mangas, feitos no Ceará, para trocar quando chegar lá. Diz que é o único lugar onde se sente realmente em casa. Compra também de véspera uma garrafa de Martini branco doce, única bebida que sua mãe tolera. Faz tempo que deixou de tomar bebidas fortes. É natural também que leve um pote de azeitonas verdes e uma lata de salsichas daquelas pequenas, próprias para tira-gosto.
                   Quando eu volto da missa, já encontro ela impaciente, de pé, com uma sacola enorme na mão. Aponta com o queixo para a torta, ainda na forma, embrulhada com um pano de prato com dois nós na parte de cima. Ajeito a torta em um dos braços e com o outro pego o guarda-chuva. Nunca se sabe quando vai chover nesses domingos cinzentos. Trabalho mesmo é conseguir fechar a porta da casa com as duas mãos ocupadas. Minha senhora já vai quase dobrando a esquina, em direção ao ponto do ônibus.
                   Não gosto muito de contar vantagem, mas acho que ninguém carrega uma torta com mais competência do que eu. Não somente competência, mas também uma certa elegância. Eu mesmo gostaria de me ver de longe, com o guarda-chuva pendurado no meio do antebraço esquerdo, as duas mãos um pouco avançadas do corpo segurando a torta como um vassalo conduz uma almofada com a coroa real.
                   Chegamos, enfim, ao prédio da minha sogra. Só mais dois andares acima e logo seremos recebidos por aquela senhora indefinidamente situada entre os sessenta e os setenta, um short branco mal cobrindo a flacidez das coxas e uma blusa esvoaçante de seda oncinha, com um decote em nada devedor ao da filha. Beijam-se e abraçam-se como se tivessem chegado da guerra e mal abrem espaço para que eu passe e deposite a torta na pequena mesa da ínfima sala.
                   Enquanto eu caminho entre os poucos móveis para descansar os braços, elas duas se instalam na minúscula varanda que dá para a parede dos fundos do prédio vizinho. Eu já sei o que devo fazer: tirar o gelo, abrir o Martini, levar os cálices e servir as azeitonas e as salsichas.
                   E esse aí, continua na mesma? É o jeito dela se interessar por mim. Nunca fala diretamente comigo, nem fala meu nome pra minha senhora. É sempre “esse aí” ou, quando o Martini já está fazendo efeito, “esse que se diz teu marido”.
                   Eu até gosto de ficar de fora da conversa delas. Levo sempre meu livrinho de palavras cruzadas e fico ali, em paz, sabendo de cor e salteado que o rio da Itália com duas letras é Pó e que o símbolo do chumbo é Pb. Só sinto falta do meu Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa para conferir as respostas mais difíceis. Detesto ter que rasurar um jogo de palavras cruzadas.
                   Pergunta a ele se já posso botar o almoço. Pode sim, ele pode muito bem deixar esse vício para mais tarde. É assim que as duas decidem sair cambaleando em direção à cozinha, enquanto eu boto a mesa para quatro. Quatro sim, pois quando ouve o barulho dos talheres, um simpático pequinês, com um lacinho de fita pregado na cabeça, sai do quarto e vem se aboletar numa das cadeiras, rosnando pra mim. Terminado o almoço, a infalível galinha à cabidela com farofa e macarrão, regada a duas ou três latinhas de cerveja, elas se recolhem no quarto e eu fico ali pela sala, esperando a hora do Faustão.

                   Já é de noitinha quando volto a ouvir o falatório no quarto. Sei que minha senhora está trocando o robezinho pela roupa de domingo. Logo-logo ela vai sair dizendo que está atrasada, já quase perdendo a hora do Fantástico. Minha sogra, ainda sonolenta, pede pra filha me dizer que, se não fosse a pressa dela, até passava um cafezinho pra mim. Eu não digo nada, mas sorrio agradecido. É nessas horas que sinto que ela é quase uma mãe pra mim.

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