21 dezembro 2014

Almeidinha - O herói de paletó - 06

Um folhetim burocrático

06 - Almeidinha e a novata  

                  
                   O Dr. Pacheco tem muita consideração por mim. Um dia ele me chamou em sua sala, me mandou sentar e disse que precisava muito da minha compreensão. Era coisa simples: uma parenta sua estava com um probleminha na repartição em que trabalhava. Ela era auxiliar de tesouraria e andaram levantando uns falsos sobre a idoneidade dela. Por isso, ela precisava passar um tempinho longe das fofocas dos colegas e, para ajudá-la, Dr. Pacheco sugeriu que pedisse uma transferência provisória para a nossa repartição. Isso, claro, ia ficar só entre a gente. O resto do pessoal não precisava ficar sabendo de nada. Era só eu desconversar se alguém quisesse entrar em detalhes sobre a presença da nova funcionária. Ele mesmo se encarregaria de dar uma informação geral sobre a rápida permanência da moça entre nós. Só mais uma coisinha, falou Dr. Pacheco. Queria que o senhor cedesse o seu birô para ela guardar suas coisas. O senhor sabe, mulher traz muita tralha para o trabalho. Como é por pouco tempo, o senhor pode muito bem ocupar somente a mesinha de apoio da sua máquina de datilografia. Faça isso por mim, Seu Almeidinha. Como já disse, vai ser por pouco tempo. É só a poeira baixar lá na repartição dela.

                   No outro dia, lá pela metade do primeiro expediente, a repartição é invadida por uma mulher de idade meio indefinida, equilibrada em duas longas agulhas parecidas com sapatos, uma faixa estreita de tecido listrado de preto e branco sugerindo uma saia e uma blusa de oncinha tentando cobrir uma fartura de seios ameaçando para já um desabamento. Nos cabelos forçosamente louros se enfiavam as hastes de uns óculos escuros enormes que a deixavam parecida com uma mosca. Não sei não, mas tudo aquilo me pareceu um ato de incontinência pública e escandalosa, digna de punição pelo que eu conheço do direito administrativo. E esta impressão aumentou quando ela fez ecoar, ainda da porta, por toda a repartição: Alôôô. Eu sou Jackeline, a nova coleguinha de vocês. Mas podem me chamar de Jackie. Por favor, onde posso encontrar o Dr. Pacheco?
                   O Ciço, que é o contador, logo, a maior autoridade depois do Dr. Pacheco, levantou-se para dar as boas vindas à nova colega e se ofereceu a acompanhá-la até a sala do chefe. Atrás dela, ia apresentando os colegas enquanto fazia uma primeira avaliação do conjunto da obra. Precisava ver a cara de Dona Marli apertando a mão da recém chegada. Mal abriu a porta para ela entrar na sala do Dr. Pacheco.
                   Os primeiros dias se passavam mais ou menos assim: Dona Jackeline chegava por volta das dez da manhã, passava sem falar por Dona Marli e entrava na sala do Dr. Pacheco. Saía de lá uma meia hora depois, com umas mechas de cabelo fora do lugar e o sutiã meio desequilibrado. Como minha mesinha de datilografia ficava do lado do corredor, junto do meu antigo birô, ela tinha de passar por trás de mim, se apertando entre minha cadeira e a parede dos fundos da sala para descansar um pouco antes do fim do expediente.
                   Mesmo me vendo abarrotado de serviço, Dona Jackeline vivia puxando conversa. Queria saber sobre minha vida, se eu era bem casado, se minha mulher trabalhava, que esse negócio de mulher viver em casa era coisa do século passado. Tive de dizer a ela que minha senhora não era nenhuma desocupada. Era promotora de vendas de uma marca famosa de bijuteria, uma dessas que fazem propaganda na televisão. Por isso ela não tinha muito tempo para cuidar de mim como gostaria. Ela escutava com um sorrisinho de quem não está acreditando muito no que ouvia. Chegou até a dizer: puxa, Almeidinha, você precisa de uma mulher que cuide melhor de você. E pousou uma mão caridosa sobre a minha. Com o tempo, ela passou a se levantar com mais freqüência e amassar minhas costas com aquela barriguinha macia, deixando meu paletó com um cheiro leve de perfume francês.

                   Não sei o que estava acontecendo comigo. Chegava na repartição e ficava impaciente esperando que desse dez horas da manhã. Errava mais na datilografia, gaguejava ao atender as chamadas de interfone do Dr. Pacheco.  Cheguei até a sentir uma ponta de tristeza quando o chefe me chamou e disse que eu já podia retomar o meu birô. As coisas tinham esfriado lá na repartição de Dona Jackeline e ela não precisava mais ficar com a gente. Melhor para o senhor, não é, Almeidinha?  Melhor para o senhor.

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