26 setembro 2012

Para Marília, depois de João



Foi muito mal para mim não ter escrito logo sobre tudo  que senti ao ler o romance de Marília Arnaud, Suíte de silêncios. Deixei o tempo passar para ir decantando meus sentimentos, pois todo mundo sabe o quanto é difícil escrever sobre qualquer coisa quando estamos dominados pela emoção.
Acontece que demorei demais. Tempo suficiente para vir o João Batista Brito e fazer o comentário definitivo sobre o livro de Marília. Resta muito pouco para mim, mas vou tentar assim mesmo.
Li a Suíte de silêncios no original, a pedido de Marília, quando o livro já estava sendo editado pela Rocco. Qualquer comentário que fizesse seria inútil, pois àquela altura os revisores já estariam triturando o texto em busca do menor deslize da autora. Trabalho inútil, por certo.
Inútil também teria sido qualquer intenção minha em encontrar o menor defeito no livro de Marília. Pois não eram olhos profissionais que o estavam lendo. Eram os olhos de um leitor comum, seduzido, apaixonado por aquela escrita de mulher. Olhos comovidos, compassivos, cuidando para que Duína chegasse inteira ao fim do livro para que eu o pudesse fechar em paz.
Quando o livro saiu, Marília me deu um exemplar que ficou exposto na mesa como a obra de arte que verdadeiramente é. Uma amiga que passava o fim de semana com a gente vinha comentar, chorando, algumas passagens, como se ainda não o tivéssemos lido. Ali estava a prova do valor poético do livro de Marília.
Pouca gente sabe, mas faço parte do grupo das Escritoras Suicidas, sob um pseudônimo que, obviamente, não vou revelar. Acho muito bom este exercício de me colocar no lugar desse ser tão próximo e tão estranho a mim. Mas quando encontro um texto como a Suíte de silêncios, em que uma mulher se revela enquanto se busca em seus ermos, vejo o quanto me falta para entender o espírito feminino.
O livro de Marília me deixou (por um breve tempo) com vontade de ser mulher. 

19 setembro 2012

Pessoas e bichos



 Entremos com cuidado no terreno desta crônica, porque é tênue a linha que nos separa da maldade e da galhofa. Quero tratar, hoje, da morte de um animal de estimação, assunto que invadiu os meios de comunicação há poucos dias. Pisemos levemente para não machucar os sentimentos de pessoas simples e amorosas que viram sua dor ser transformada em um espetáculo grotesco pelas redes sociais e pela grande mídia.

Todo mundo sabe o que aconteceu: Na cidade de Patos, na Paraíba, Genecira criava uma galinha há cinco anos. Rafinha, a galinha, era bem tratada, como todo animal de estimação: ia ao veterinário, tomava banho com sabonete de coco, dormia em berço com ventilador. Um dia, Rafinha desapareceu, para desespero de Gecenira e sua família. Uma semana depois, a polícia prendeu um suspeito que confessou ter trocado a galinha por duas pedras de crack.
A partir daí, segue-se uma série de acontecimentos que amplificaram a dor de Genecira, transformando-a em um espetáculo grotesco servido em grandes porções pelos meios de comunicação.
Foi o oportunismo de um humorista local, o Tatu, que o levou a divulgar no Youtube uma música ridicularizando a perda de Genecira. Não satisfeito, Tatu pediu a permissão dela para fazer o enterro simbólico de Rafinha. Mais de mil pessoas compareceram ao velório. Muitas delas foram prestar uma solidariedade sincera à família. Outras, foram apenas em busca de diversão. Até o prefeito da cidade passou por lá em busca de votos. Sucesso nas redes sociais, o enterro atraiu a grande mídia, com direito a cobertura pela equipe do Pânico, programa da Rede Bandeirantes. Quem viu as fotos ou assistiu aos videos pode constatar: em meio a toda a balbúrdia, a expressão da família de Genecira é de dor e sofrimento. Mas isto não interessava a ninguém.
Fechemos com cuidado esta crônica. Vamos deixar em paz a família de Genecira para fazer o luto de sua perda. Pois esta é a única coisa que ela quis fazer. Chorar sua dor pelo desaparecimento de um ente querido que foi trocado por duas pedras de crack. É aqui que reside toda a miséria e brutalidade que escapou do estardalhaço da grande mídia.  
    
Ilustração obtida em http://www.desenhosdecolorir.com.br

16 setembro 2012

Menina de Noite - lançamento EPSI

'aora

Video de apresentação do meu livro "A menina de noite", elaborado por Raija e Ivan, pais de Gabriela, minha neta, que inspirou o poema. Curtam.

11 setembro 2012

O destino dos livros



Era a experiência afetiva que me faltava. Uma sala com umas quarenta crianças, entre sete e dez anos, me fazendo perguntas sobre o meu livro “A menina de noite”, com variantes sobre minha vida pessoal. As perguntas me surpreenderam. A mais vexatória foi sobre quando eu iria escrever os livros para minhas outras netas. Nada mais natural, pois o poema “A menina de noite” foi escrito no mesmo dia em que nasceu minha primeira neta, Gabriela. Teve uma pergunta quase acadêmica: “o Sr. Acha importante usar os livros como atividade lúdica?” Concordei imediatamente e mudei de interlocutor antes que a futura doutora me perguntasse por que. E frente à dificuldade em fazer as contas sobre a minha idade, um mais atrevido sugeriu: “você devia se aposentar”.
Terminada a sabatina que durou pouco mais de uma hora, tive que enfrentar uma fila de autógrafos assinados em folhas arrancadas dos cadernos. Até minha mulher teve seu momento de celebridade, pois também oi solicitada a autografar algumas folhas. No fim, recebi um abraço coletivo e saí de lá chorando.
A experiência em um colégio de classe média no bairro de Boa Viagem, no Recife, me remeteu a outro momento, há cinco anos antes, quando o poema tinha acabado de ser escrito. Foi no Centro Comunitário de Mandacaru, onde eu ajudava Nara Limeira a monitorar um grupo de leitura de crianças e adolescentes. A garotada se apaixonou pelo poema e fez questão que minha filha, a mãe de Gabriela, ficasse junto com elas quando leram o poema num sábado de festa no Projeto Palavra Plantada, que a mesma Nara desenvolvia na Bica.
Minha própria experiência prova que as crianças, pobres, ricas ou remediadas, amam os livros. Decoram poemas, se apaixonam por personagens, escolhem seus escritores de preferência, ensaiam seus primeiros escritos. Que destino, portanto, têm os livros que eles aprenderam a amar?
A resposta é que existe todo um sistema de embrutecimento da sensibilidade destes meninos. Um arranjo entre os interesses das mídias e a omissão do poder público, resultando em uma manada que repete os mesmos refrões dos arremedos de música, os mesmos passos estereotipados das danças, as mesmas palavras de ordem das gangues e das seitas. Mas é bom saber que dentro de alguns deles existe um ou dois livros dormindo, esperando pelo toque de sensibilidade que os traga de novo para a vida. 

03 setembro 2012

Pobre barata


Sei que alguns leitores vão pensar que estou com falta de assunto, mas garanto que o tema e da maior relevância. Por conta da safra de netas, vez por outra escuto a cantiga em que acusam a barata de mentirosa porque ela diz possuir coisas que de fato não são delas. A barata diz que tem um sapato de fivela, cinco saias de balão, um anel de formatura. É mentira da barata, respondem: o sapato é da mãe dela, ela tem uma saia só, e tem a casca dura.
Conheço muito bem a distância que há entre mim e uma barata, mas consigo entender muito bem as razões de suas mentiras. Ainda era menino quando me pai arranjou para mim uma bolsa de estudos na Associação Brasil Estados Unidos. Finalmente, ia ter uma oportunidade imperdível de estudar inglês no melhor curso da época. Logo no primeiro dia, enquanto esperava o início da aula, fiquei pelos cantos escutando a conversa dos outros meninos. O assunto era a marca do carro do pai de cada um. Disfarcei até onde pude, até que perguntaram a marca do carro do meu pai. Meu pai não tem carro, respondi. E fui embora.
Se eu fosse um pouquinho mais parecido com a barata, inventava uma marca de carro para o meu pai e ia levando o curso até que alguém descobrisse que meu pai era um funcionário público à beira da miséria e que muitas vezes eu não tinha dinheiro nem para o ônibus.
Imagino que a mãe da nossa pobre barata deve ter conseguido uma bolsa pra ela em um desses colégios chiques em que os alunos são despejados de verdadeiros aviões e recebidos por uma equipe de seguranças. E quando perguntam para a barata onde ela mora, ela fala o nome do primeiro bairro nobre que lhe vem à cabeça. E quando perguntam pela marca do carro do seu pai, ela fala o nome do carrão que viu no comercial da televisão.
Melhor seria que a barata tivesse no seu bairro um colégio decente para estudar junto com as meninas pobres como ela. Melhor seria se ela convivesse com pessoas que não medissem o seu valor pelo número de saias que possui, pelas fivelas dos seus sapatos ou pela qualidade do tecido que veste.

Ilustração obtida em: g6leitura.blogspot.com